Os patos formam um conjunto de espécies facilmente reconhecidas pelo seu bico único, evoluído para filtrar o alimento das águas ou do solo. Entretanto, entre os patos existe um gênero, Mergus, que especializou-se em utilizar a visão e caçar presas vivas com um longo bico serrilhado e em extensos mergulhos. Para isso, necessitam de águas límpidas, transparentes. Quase todas as espécies ocorrem na zona temperada do Hemisfério Norte e duas são exclusivas do Hemisfério Sul da Terra. Ou eram, já que uma, Mergus australis, foi extinto na Nova Zelândia após a chegada dos colonos europeus e a ocupação do solo promovida por eles. O outro, infelizmente, destaca-se entre as aves ameaçadas de extinção no continente sul-americano, o pato-mergulhão, cientificamente conhecido como Mergus octosetaceus. Ao contrário da maioria das espécies de patos da América do Sul, alimenta-se de larvas aquáticas e pequenos peixes, capturados usando a visão e em longos mergulhos em águas de rios com corredeiras.
Citado em todas as listas nacionais e internacionais de espécies ameaçadas de extinção, esse pato depende fundamentalmente de rios de águas claras e rápidas. É uma espécie refratária à presença humana, afastando-se dos locais com visitação extensa, conforme observado em pontos do Parque Nacional da Serra da Canastra, em Minas Gerais, nos últimos anos ou mais recentemente no Parque Estadual do Jalapão, no Tocantins. Na unidade de conservação mineira, onde está a principal população conhecida e com melhores estudos, essa pressão humana foi identificada em conjunto com os fatores negativos históricos conhecidos.
São eles:
1. A construção de barragens, alterando a ecologia das águas dos rios e interferindo nas condições de vida da espécie.
2. O aumento do nível de sedimentos em suspensão na água, como resultado do incremento da erosão superficial nas áreas com vegetação removida devido a atividades humanas, como a pecuária e a agricultura de larga escala sem cuidados ambientais. Com as águas turvas, a ave não consegue desenvolver suas atividades de alimentação e desaparece.
3. O terceiro fator é menos visível, mas igualmente importante. A alteração da qualidade físico-química da água do rio, via a entrada maciça de poluentes solúveis como defensivos agrícolas, adubos e esgotos, afetando toda a cadeia alimentar e determinando o desaparecimento da ave.
Na região da Chapada dos Veadeiros, em Goiás, a espécie era conhecida da ciência desde o início da década de 1950, quando uma pele coletada, onde é atualmente o município de Nova Roma, foi depositada no Museu Nacional, do Rio de Janeiro.
No Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, o pato-mergulhão foi localizado em 1987 no rio Preto e registros subseqüentes indicam uma persistência no local, positiva para a ave por ser uma unidade de conservação federal, apesar de haver visitação em parte da região utilizada.
No entorno do atual parque, também havia um registro, sem origem conhecida, do rio São Miguel, logo a sul de São Jorge, na década de 1940. Esse último local pode estar no limite norte da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Campo Alegre. Nessa unidade de conservação privada, reconhecida pelo Ibama, foi feita a filmagem de um casal de patos-mergulhões em setembro de 2004 na sua parte sul, no rio dos Couros. Posteriormente, em abril e maio de 2005 ocorreram avistamentos de um exemplar no rio Lajeado, no interior da RPPN, e no rio dos Couros, seu limite sul, próximo à sua foz no rio Tocantizinho.
Esses registros recentes representam uma nova área de ocorrência da espécie na região da Chapada dos Veadeiros e os vínculos com o rio Tocantinzinho abrem a possibilidade de uma população ainda mais extensa em todo este novo local para a ave no Brasil. Isso pode significar um grupo isolado dos patos-mergulhões em relação ao parque nacional ou tratar-se de uma extensão da população das aves existentes naquela unidade de conservação. Somente estudos futuros mais detalhados irão indicar qual a realidade desse grupamento.
Entretanto, considerando-se o atual estágio populacional da espécie em todo o continente, no Brasil e, em especial, na Chapada dos Veadeiros, a existência dessas aves na RPPN Campo Alegre tornam-na imediatamente um dos locais fundamentais para a conservação futura da ave, bem como aumenta a responsabilidade de todos os ocupantes e instituições nas bacias do rio dos Couros e Tocantizinho. É fundamental trabalhar em conjunto para a manutenção das condições ambientais ideais existentes, como atesta a presença do pato-mergulhão no local.
Infelizmente, existe uma barragem projetada para o rio Tocantizinho, Mirador, a qual irá afetar todo o baixo curso do rio dos Couros e parte dos afluentes no interior da RPPN, exatamente a área onde foi constatada a ocorrência do pato-mergulhão. Também infelizmente, para essa espécie não existe a possibilidade do estabelecimento das chamadas medidas mitigatórias, uma vez que a parte alta da bacia vem sendo ocupada por plantios mecanizados de grãos, com efeitos negativos para a turbidez das águas e a barragem altera completamente as condições ecológicas necessárias para sua manutenção.
As duas atividades ocorrem no entorno do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, da RPPN Campo Alegre e outras da região, no interior da APA estadual existente e da Reserva da Biosfera do Cerrado. Há uma evidente necessidade de avaliarmos se o uso do solo planejado irá avançar e perpetuar-se em detrimento dessa espécie e seu ambiente único, levando ambos para a extinção como na Nova Zelândia e em outras partes de sua ocorrência, ou se podemos conviver com a mesma, mantendo as condições necessárias à sua vida e mantendo uma área excepcional, como indica o número de unidades de conservação.
Leia também
Impulsionadas pelo controle do desmatamento, emissões brasileiras caem 12% em 2023
Brasil emitiu 2,3 bilhões de toneladas de CO2 equivalente em 2023, segundo dados divulgados nesta quinta-feira pelo SEEG →
Um apelo em nome das mais de 46 mil espécies ameaçadas de extinção no planeta
“Salvar as espécies sustenta a vida no planeta”, declaram especialistas que reforçam a urgência de soluções interligadas para crise do clima, da biodiversidade e o bem-estar humano →
Fotógrafo lança livro com imagens inéditas do Parque Nacional da Tijuca
Livro “Parque Nacional da Tijuca”, do fotógrafo Vitor Marigo, reúne mais de 300 fotos tiradas ao longo de oito anos. Obra será lançada neste sábado →