Em 2005, o gigante bancário HSBC anunciou que estava comprando voluntariamente “créditos de carbono” equivalentes ao número de toneladas de gases estufa que suas operações bombeiam na atmosfera todo ano. Em 2006, os organizadores da Copa do Mundo tomaram decisão semelhante, financiando projetos de energia limpa na África do Sul e na Índia, para “neutralizar” as emissões dos gases estufa geradas pelo evento na Alemanha. Da mesma forma, o popstar Dido, os produtores do filme Syriana, e incontáveis indivíduos na Europa, Ásia e no EUA estão tornando suas atividades “neutras em carbono”, comprando neutralizações no mercado voluntário de carbono.
Nenhum governo forçou qualquer um desses compradores a compensar suas emissões de gases estufa. Estão fazendo isso porque acreditam que é a coisa certa a se fazer e que isso atende aos seus interesses. Mas todos se defrontam com a mesma questão: o que constitui um “crédito voluntário de emissões”? Alguns compradores se submetem – e aos créditos que compram – aos padrões estabelecidos pelo Protocolo de Kyoto, da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática. Outros, porém, dedicam tanta reflexão a suas compras quanto dedicariam a uma doação ao Greenpeace feita apenas para se sentir bem. A maioria fica entre esses dois extremos.
Agora mesmo está em curso um confuso debate global sobre como se chegar a regras internacionalmente reconhecidas, regulações e procedimentos de avaliação e certificação de projetos de redução de emissões que não se enquadrem no Protocolo de Kyoto. Esses padrões darão credibilidade aos créditos voluntários e poderiam, ao fim e ao cabo, possibilitar a criação de mecanismos fungíveis para o comércio de carbono entre mercados participantes mundo afora. O perigo, contudo, é a criação de padrões pesados demais que redundariam em não mais que uma burocracia global. “Nós certamente queremos um mercado de carbono robusto”, diz Nicola Steen, vice-presidente da corretora de neutralizações de emissões CO2e. “Nós queremos que haja padrões, mas se você os torna desnecessariamente restritivos, você matará os projetos menores”.
Um grande passo na direção da sincronização foi dado em dezembro de 2005, quando o World Council for Sustainable Development (WBCSD) e o World Resources Institute (WRI) lançaram juntos o Protocolo Gases de Efeito Estufa para Contabilidade de Projetos (WBCSD/WRI GHG Protocol – Protocolo GEE). Um outro passo veio em março de 2006, quando a International Organization for Standardization (ISO) instituiu o ISO 14064, o primeiro padrão realmente global para lidar com créditos voluntários de emissões. O foco agora é em como implementar esses padrões. Duas iniciativas estão em curso atualmente: uma é o Voluntary Carbon Standard (VCS) – Padrão de Carbono Voluntário (PCV), que está ainda em desenvolvimento, e o outro é o Gold Standard for Voluntary Emission Reductions (GSV) – Padrão-Ouro para Reduções Voluntárias de Emissões (PRVE) – lançado em maio de 2006.
Um benchmark global
“Há uma série de tópicos quentes em debate e há também muita confusão”, diz Thomas Baumann, gerente local de serviços de mudança climática da Det Norske Veritas (DNV) Canadá – com certeza, a maior Entidade Operacional Designada do mundo. EOD significa uma companhia ou organização acreditada pela ONU para certificar e verificar projetos de neutralização dentro do Protocolo de Kyoto. Baumann foi um dos principais colaboradores para os novos padrões ISO e para o Protocolo GEE.
“O último encontro dos membros da International Emissions Trading Association (IETA) deixou claro que o PCV não está sendo pensado para substituir ou suplantar qualquer outro padrão existente, incluindo o ISO 14064”, ele diz. “O PCV deve avançar a partir desses esforços e criar um benchmark global”. Ele fará isso, dizem seus autores, oferecendo o protocolo e os critérios que os formuladores de projetos e os avaliadores de projetos podem usar para criar, avaliar e, por fim, registrar as assim chamadas Unidades Voluntárias de Carbono (UVCs, o equivalente a uma tonelada métrica de emissões de CO2). Uma vez em um Registro de UVC, elas teoricamente seriam instrumentos fungíveis e comercializáveis – embora ninguém esteja convencido de que isto possa ser de fato alcançado.
“As Cotas da União Européia (CUEs) têm a expectativa de serem fungíveis, mas UVCs não são CUEs porque as pessoas não as estão comprando pelas mesmas razões”, diz Steen. “O PCV faz sentido porque as pessoas querem fazer uma diferença, e não porque têm que obedecer a cotas”. A IETA, o Climate Group e o Fórum Econômico Mundial estão liderando o esforço por trás do PCV. Os três divulgaram um rascunho para consultas em março de 2006, e a versão final estava marcada para outubro. Mark Kenber, diretor de políticas do Climate Group é uma das forças que impulsionam a iniciativa do PCV e também ajudou a montar o Padrão-ouro para créditos de reduções compulsórias de emissões, quando estava na WWF. Ele diz que o PCV não é para competir com o Padrão-ouro, mas para complementá-lo.
“O Padrão-ouro olha para os 10% ou 20% no topo do mercado”, ele diz. “O Padrão-ouro (PRVE) só reconhece projetos de energia renovável ou de eficiência no uso final, e impõe requisitos rigorosos em relação a contribuições ao desenvolvimento sustentável”. A oferta de projetos PRVE é restrita, mas a demanda está crescendo. “Muitas empresas que estão assumindo compromissos voluntários estão buscando 25% no PRVE e o resto em outros tipos de projetos”, diz Kenber. “Nós podemos, um dia, oferecer um módulo ‘ouro’ no PCV para atender a essa demanda, mas nosso objetivo é oferecer um benchmark para todos os projetos, de modo que a UCV se torne algo que todos os esquemas utilizem e não uma coisa apenas para um segmento do mercado”.
Fixando o ponto de corte
Mas onde, – ou mais corretamente, “como” – fixar o ponto de corte? Há, por exemplo, tanta controvérsia sobre o tipo de projetos que podem se enquadrar no padrão quanto sobre quem pode certificar ou avaliar os projetos que se enquadram no padrão. Para ficar em um só exemplo: no primeiro rascunho do PCV, todos os projetos que neutralizam emissões por meio de seqüestro de carbono em árvores (o que na linguagem de Kyoto é mencionado como projetos de “uso da terra, mudança no uso da terra, e florestas”, ou LULUCF) ficariam de fora dos padrões e não seriam admitidos.
Isso provocou uma enxurrada de comentários de parte de um grande número de grupos ambientalistas que vêem o LULUCF como a principal avenida aberta à participação dos países em desenvolvimento no mercado voluntário de carbono. Ainda não está claro como os documentos finais do PCV tratarão essa questão. Kenber diz que o PCV cobrirá projetos combinados de calor e eletricidade a gás, mas agrega que não está seguro de que seqüestro e armazenagem de carbono serão cobertos pelo padrão. Esse debate certamente continuará até que saia um padrão final e, possivelmente, mesmo depois. Ao mesmo tempo, num outro ramo de disputa, Steen gostaria de ver entidades locais nos países em desenvolvimento autorizadas a certificar projetos, enquanto Baumann preferiria ver mais ênfase em setores e ninguém, aparentemente, consegue concordar em como medir a adicionalidade (isto é, a medida que permite dizer se um projeto está realmente criando novas reduções ou apenas recebendo por reduções que aconteceriam de qualquer forma).
Há, também, a questão de admitir qualquer coisa que envolva combustíveis fósseis. A versão atual do PCV exclui projetos subsidiados pelos governos. Mas muitos países dão ajuda rotineiramente para os setores de energia. Todos esses projetos devem ser excluídos? Um dos pontos principais de discordância no desenvolvimento do padrão está na diferença entre aqueles que querem ver o PCV evoluir como um padrão em si mesmo e aqueles que o vêem como um conjunto de procedimentos consensuais para apoiar ações voluntárias de redução de GEE usando a experiência concreta e reforçando práticas existentes.
Os principais instrumentos e práticas são dados pelo ISO 14064 e pelo Protocolo GEE. “O Protocolo GEE diz ‘deveria’, enquanto o ISO diz ‘deve’”, explica Kenber. “Um é um protocolo descrevendo ‘como fazer’, e o outro é um padrão que define ‘o que fazer’ em um texto claro e verificável”. Tanto o ISO quanto o Protocolo GEE são documentos “gerais”, de alto nível de abstração, enquanto o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) do Protocolo de Kyoto inclui metodologias de projeto específicas.
Tanto o ISO 14064 e o Protocolo GEE também se classificam como neutros em termos de políticas e tecnologias, no sentido de que não favorecem parques eólicos em relação a energias renováveis, por exemplo. Mas prescrevem princípios de precisão, transparência, integridade, consistência, conservação e relevância, entre outros. “Eles não dizem em que áreas investir, ou qual é o nível apropriado de adicionalidade”, diz Kenber. “Eles apenas oferecem regras básicas de como contabilizar emissões para organizações e projetos de diferentes tipos e dimensões”.
Os padrões ISO são usados como um modelo para projetos voluntários em todo o mundo. A DNV, por exemplo, está trabalhando com a Agência Australiana para o Efeito Estufa (AAGEE) no programa de redução voluntária denominado Greenhouse Challenge Plus, que usa os padrões ISO como base.
O ISO 14064 tem três partes – o primeiro, ISO 1406-1, contém requisitos e recomendações para desenhar e desenvolver um inventário organizacional de emissões de GEE. Ele define claramente onde uma empresa ou organização começa e termina. Um ponto crucial na definição de que emissões são responsabilidade de cada entidade, tornando possível para as empresas medir suas emissões com precisão.
O ISO 14064-2 especifica os processos e requisitos para desenhar e quantificar as reduções de emissões de projetos de neutralização de GEE. Isso permite a um projeto quantificar suas reduções de emissões – ou, em termos de mercado, quantos créditos de redução ele pode vender.
Finalmente, o ISO 14064-3 especifica procedimentos e requisitos para validação e verificação de projetos de redução de GEE ou de inventários de GEE. Esta é a peça final do quebra-cabeças que diz a empresas de auditoria como elas devem proceder para verificar e certificar que os projetos estão, de fato, reduzindo emissões na forma em que dizem estar reduzindo (e podem, portanto, vender essas reduções), ou que companhias ou entidades mediram e relataram acuradamente seus inventários de emissões.
O ISO 14065, correlato do 14064, divulgado em abril de 2007, especifica os requisitos para designar entidades certificadoras de reduções e inventários de GEE – essencialmente estabelecendo-as como verificadoras e certificadoras ou EODs, como a DNV.
Incerteza certificada
Claramente, os padrões ISO são minuciosos e completos, mas o que preocupa a alguns é que podem ser muito pesados, muito burocráticos, e também, talvez, caros demais. O mesmo tipo de preocupação afeta o PCV como está sendo proposto. Por exemplo, o primeiro texto para consulta dizia que projetos UCV teriam que ser certificados por uma EOD acreditada pelo Conselho Executivo do MDL ou uma Entidade Independente (EI) acreditada pelo Comitê Conjunto Supervisor para Implementação. Vários comentadores ecoaram as objeções de Steen de que o custo de recorrer a esses auditores mataria os pequenos projetos. “Está se falando de algo em torno de US$ 15.000,00 para levar essas pessoas, digamos, à Jamaica, para que possam auditar um projeto”, ela diz. “Eu defendo que universidades ou consultores locais possam fornecer essa auditoria – o que além de economizar dinheiro, gera capacitação local e expertise para projetos futuros”.
Baumann diz que essa preocupação é exagerada. “Eu concordo que os custos de auditoria podem matar um pequeno projeto”, ele diz, “Mas projetos muito pequenos podem ser agregados para dissolver o custo, e/ou a auditoria simplificada, de modo que o custo pode cair 20-30%”. Ele agrega que a validação e a verificação podem, em média, representar até 30% dos custos totais de transação para registrar um projeto (dependendo do que é colocado na planilha de custos de transação). No rascunho para consultas, Kenber e seu grupo apresentaram duas soluções: entidades certificadoras poderiam ser tanto EODs quanto agentes não-especificados de certificação, designados pelo comitê de direção do PCV. Eles apresentaram critérios gerais para verificadores e estabeleceram doze critérios de pisos para UCVs e estão, atualmente, finalizando as especificações.
“Não é tão fácil quanto parece”, ele diz. “Uma coisa é verificar um projeto florestal na Jamaica, outra totalmente diferente é auditar um projeto de análise agronômica de solos no mesmo local. Pode ser que a mesma organização não tenha capacidade para fazer as duas coisas, e o desafio é como encontrar uma forma que não seja excessivamente burocrática de permitir que quem esteja propondo um projeto use o verificador de sua escolha, desde que tenha credibilidade. O que estamos dizendo hoje é que se um verificador não é uma EOD, deve ser pelo menos certificado por uma entidade do MDL. Isso, entretanto é algo para o que o comitê diretor estará olhando em detalhe para garantir que se tenha a solução mais efetiva e eficiente, levando em consideração o trabalho do ISO”.
O PCV está atualmente estruturado num processo em dois estágios: verificação e certificação. Uma entidade acreditada pelo MDL está qualificada para realizar qualquer um deles ou ambos, enquanto uma entidade não acreditada só pode fazer a verificação, a não ser que o PCV a habilite para certificar. Baumann acredita que os formuladores de projetos estão pedindo padrões de quantificação mais específicos setorialmente ao invés de um padrão geral. “É um verdadeiro ato de equilíbrio”, ele admite. “No passado, se estava desenvolvendo todos os diferentes tipos de metodologia, mas elas não obedeciam a qualquer padronização. A comunidade de padrões desejava um padrão-matriz aplicável em geral ao qual todos se conformassem em um nível mais alto e, depois, que se desenvolva padrões setorialmente específicos consistentes com o padrão-matriz”. O Protocolo GEE desenvolveu vários instrumentos de quantificação para diferentes setores. “Associações industriais também desenvolveram manuais baseados no Protocolo GEE”, ele informa. “Esses esforços têm sido uma ajuda tremenda no desenvolvimento da contabilidade de GEE”.
À medida que essas discussões avançam, os mercados voluntários de carbono continuam fazendo transações e crescendo. Kenber disse que em 2005 o mercado voluntário deve ter comercializado perto de 20 milhões de toneladas de equivalentes de dióxido de carbono em todo o mundo, e este número deve dobrar em poucos anos. Grandes firmas financeiras, como o fundo de hedge Cheyne Capital criaram fundos para comprar créditos voluntários de carbono. Do seu ponto de vista, o que elas precisam é de uma forma de comparar alhos com alhos e de trocar bugalhos por bugalhos. Eles precisam de padrões. Iniciativas como a do PCV buscam fornecer esses padrões e criar uma unidade fungível, intercambiável, de carbono (UCV). O problema é que alguns projetos ficarão necessariamente de fora na definição desses padrões e independentemente de que padrão se adote, ele será ou rigoroso de mais ou de menos para o desejo de alguns.
O que nos traz de volta à questão inicial levantada por Steen: como criar um padrão que seja suficientemente rigoroso para permitir a troca e a confiança, sem ao mesmo tempo ser tão pesado que frustre o comércio em um mercado que é essencialmente voluntário de ações que em última instância ajudem o planeta? É possível encontrar esse ponto de equilíbrio que não seja nem tão restrito, nem tão frouxo? São muitas as questões e a única coisa que parece clara é que a padronização irá requerer um esforço continuado de desenvolvimento, revisão e gestão por muito tempo ainda. A clareza demanda tempo, mas compradores e vendedores ansiosos para que o mercado cresça lembram a quem possa interessar: não há tempo a perder.
*Este artigo foi originalmente publicado no Ecosystem Marketplace sob o título “Comparing Apples & Oranges”.
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