Análises

A Triste Beleza do Saara

 Fui enviado de volta ao continente africano onde deverei viver e trabalhar durante os próximos anos. Embarquei no avião, fixei os olhos na janela e acompanhei o trajeto do vôo.

Pedro da Cunha e Menezes ·
6 de março de 2010 · 15 anos atrás

“O Saara é infinito. Não há estradas, não se vê casas, não se vislumbra o verde de uma vegetação nem o azul de uma água. Nâo há nada, só as intermináveis planícies cor de areia” (imagem de satélite: NASA).

Recentemente terminei meu período profissional em Lisboa e fui enviado de volta ao continente africano onde deverei viver e trabalhar durante os próximos anos. Foi com certa tristeza que embarquei no avião em cujas asas deixei a terrinha. Para espantar as saudades precoces, fixei os olhos na janela e acompanhei o trajeto do vôo.

A decolagem foi soberba, com direito ao casario lisboeta refletindo seus telhados na aurora, o azul do Tejo fluindo incontinente em direção ao Atlântico e as belíssimas arribas da Caparica e da Serra da Arrábida que forneceram o chão que meus pés mais gostaram de trilhar nos últimos dois anos e meio.

Logo, contudo, o solo ressequido e monótono do Alentejo e da Andaluzia espanhola encheram a paisagem, incentivando-me a procurar distração em um livro. Só voltei a dar atenção à janela algumas horas mais tarde. Sobrevoàvamos o Saara. Não desgrudei mais os olhos. Fiquei fascinado. O computador de bordo na telinha à minha frente informava que cruzávamos os céus a 805 km por hora. Mesmo assim o deserto parecia ignorar a distância descomunal que venciámos a cada girada dos ponteiros. O Saara é infinito. Durante uma eternidade vi passar sob nossas asas um terreno amarelo escuro aparentemente desprovido de qualquer vida humana.  Não há estradas, não se vê casas, não se vislumbra o verde de uma vegetação nem o azul de uma água. Nâo há nada, só as intermináveis planícies cor de areia.
 
De repente quebra-se o marasmo, surgem montanhas imponentes, picos altaneiros, penhascos verticais, quilômetros de bem desenhadas e profundas gargantas que meandram entre escarpas erodidas. A 12.200 metros de altitude é possível  divisar o conjunto de grandes bacias hidrográficas, com vales largos servidos por outros mais estreitos, escavados por um sem número de afluentes e tributários, mas não há uma gota d´água sequer. Só o chão amarelo e suas variações em tons pastéis.
Depois de meia hora a cadeia de montanhas é domada, perde relevo e se aplaina. Eleva-se, então, do terreno uma sequência de dunas com a aparência de um formidável covil de serpentes orientadas na mesma direção, que muda conforme o vento. Corcova, vale, corcova, vale, corcova, vale, corcova, vale. O padrão é repetitivo. As dunas parecem ter todas a mesma altura e comprimento, os vales a mesma profundidade.
 
Mais quarenta minutos e vem outra cadeia de montanhas tão impressionante quanto a primeira- tão esturricada e estéril quanto tudo à volta. Consulto o relógio. Já se vão mais de duas horas sobre esse areal interminável. Fecho a janela. Não adianta, a beleza da paisagem não sai da minha cabeça. O problema é que vem acompanhada da consciência de sua desolação e, quando a gente sabe que o processo de desertificação é um dos maiores problemas do mundo moderno, é impossível não ficar triste.

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