Há poucas semanas, o físico e ambientalista Germano Woehl chamou novamente nossa atenção para o saque de ovos de tartarugas-oliva (Lepidochelys olivacea) na praia de Ostional da Costa Rica. Esse caso veio à público no ano passado e se espalhou rapidamente pelas vias internéticas com fotos impactantes de grupos pessoas recolhendo sacos e sacos de ovos, à luz do dia e sob olhares atônitos das tartarugas que se encontravam nas praias para cumprirem a empreitada da desova em ninhos praieiros. Sem maiores detalhamentos na mensagem original, a notícia ganhou várias versões alternativas que, entre outras coisas, sugeriam que o ocorrido se passava na margem esquerda do Solimões/AM.
Pouco depois, mas não antes de muita indignação, veio a explicação. Tratava-se de uma coleta autorizada, em regime de exceção, pelo sistema de manejo daquela espécie na Costa Rica. Lá ocorre um fenômeno muito peculiar– a Arribada – no qual as tartarugas fêmeas rumam aos milhares para um pequeno trecho da costa a fim de desovar durante um pequeno intervalo de dias. Pela mais pura falta de espaço, aquelas que chegam depois reviram os ninhos das que chegaram antes, tornando o sucesso reprodutivo dessas quase nulo.
“Assumir a sustentabilidade ou a ruína a priori é negligenciar o papel central que tem a Ciência nesse debate.” |
Baseados nessa constatação os manejadores decidiram permitir as comunidades locais coletar de ovos nas primeiras noites da Arribada para consumo próprio e venda aos restaurantes turísticos locais. O texto de Germano voltou a questionar a sustentabilidade do manejo que é feito em Ostional. Em sua opinião sistemas de exploração de recursos comuns (os commons como são tratados na literatura internacional) conduzem necessariamente à destruição da base natural, pela simples natureza humana maximizadora no curto prazo, querendo sempre mais consumo e mais lucros agora, a despeito das conseqüências em longo prazo.
Esse argumento me remete diretamente ao clássico artigo “Tragédia dos Comuns” de Garret Hardin (1968). Hardin dizia que, num mundo de população crescente e recursos finitos, usuários racionais agindo individualmente tenderiam a aumentar a exploração de um recurso de base comum pois, com isso, receberiam sozinhos os benefícios dessa intensificação, dividindo com todos os demais usuários as perdas consequentes da super-exploração. O conjunto de usuários estaria preso a uma armadilha que os conduz inexoravelmente à ruína coletiva. Assumindo essa racionalidade egocêntrica, os argumentos de Hardin tinham um forte apelo lógico e tornaram-se influentes no debate sobre gestão de recursos e conservação da natureza.
A decisão sobre os objetivos de manejo cabe à sociedade (cientistas inclusos), pautada por seus valores morais, pelo seu contexto social, ambiental e econômico. Na prática podemos manejar uma população de animais ou plantas com o propósito de fazê-la aumentar, diminuir, explorá-la de forma sustentável, ou deixá-la seguir seu curso sem maiores intervenções. A partir daí, a questão é essencialmente técnica, e irá depender do monitoramento da população manejada. Por monitoramento me refiro ao acompanhamento de indicadores do tamanho da população ao longo do tempo. É com esse tipo de trabalho que emergem os sinais de que as coisas vão bem ou não e, mais importante ainda, que as regras de manejo precisam se adaptar para que os objetivos inicialmente traçados sejam respeitados. Portanto, assumir a sustentabilidade ou a ruína a priori é negligenciar o papel central que tem a Ciência nesse debate.
Jacaré-do-pantanal
Para ilustrar meus argumentos, recorro ao caso do jacaré-do-pantanal, o maior réptil da planície pantaneira. Até o ano de 1969, ele foi livre e legalmente explorado no Brasil, Paraguai e Bolívia. Segundo os dados dos Anuários Estatísticos do IBGE, entre 1956 e 1969 o Brasil exportou 17,8 mil toneladas de peles, sendo que 5,5% desse volume foram de peles de crocodilianos predominando o jacaré-do-pantanal, os amazônicos jacaré-açu e jacaretinga, e o jacaré-de-papo-amarelo que ocorre na Mata Atlântica e Cerrado. Estima-se que os lucros correspondentes da exploração destes répteis chegaram a US$92 milhões (31% do total). Os moradores mais antigos da cidade de Corumbá/MS, situada as margens do Rio Paraguai, citam que as peles eram comercializadas no porto da cidade, onde prosperaram casas de comércio especializadas nesse produto.
A proibição da caça em todo território nacional no final dos anos 1960 (Lei 5.197 de Proteção à Fauna) não só foi pouco efetiva no combate a exploração, como também desestruturou o sistema de obtenção dos dados referentes à sua exploração. É sabido, contudo, que a indústria da caça do jacaré-do-pantanal permaneceu ativa, utilizando rotas de tráfico pelo Paraguai, até o início da década de 1990. As estimativas da TRAFFIC (Rede de Monitoramento do Comércio de Vida Selvagem) apontam para exportações de cerca de um milhão de peles por ano na década de 1970 e 1980.
Instaurou-se uma verdadeira indústria da caça, fortemente estruturada com pequenos aviões, muitos barcos e um verdadeiro exército de coureiros profundos conhecedores dos labirintos de canais que se formam naquelas terras em épocas de água. Entre 1987 e 1990, os pesquisadores da Embrapa Pantanal Guilherme Mourão, Zilca Campos e Marcos Coutinho, interessados em entender mais sobre a os efeitos da caça do jacaré, localizaram vinte acampamentos de coureiros (como são conhecidos os caçadores de jacarés) numa área de apenas 270 km2 no Pantanal da Nhecolândia, onde recolheram mais de 1.300 crânios e 2900 peles de jacaré, fato que evidenciava a intensidade da caça.
Engana-se, porém, quem acha que o Pantanal fosse terra de ninguém. Sua estrutura fundiária é bem definida, todo dividido em grandes latifúndios sob propriedade de famílias tradicionais que ali chegaram há pelo menos dois séculos. Mas nem o poder das oligarquias locais, desagradadas pela movimentação estranha em usas terras, foi capaz de fazer frente às ameaças dos coureiros para não se intrometerem nos seus negócios.
A caça ilegal foi contida no início dos anos 90, com a conjunção de dois fatores que agiram em sinergia: (1) a estruturação de uma força policial de repressão armada que por uma década combateu a guerrilha do couro naquelas terras; e (2) mudanças no mercado internacional, com a emergência de uma moda avessa a produtos derivados da exploração desregrada do meio ambiente. Em conjunto, esses dois fatores elevaram os custos da produção e reduziram a valoração dos produtos derivados a um ponto em que a atividade se tornou cronicamente inviável.
O Pantanal testemunhou pelo menos meio século de exploração regulada exclusivamente pela ganância dos coronéis do tráfico de peles. Passamos 50 anos tentando fazer tudo de errado, furando todas as premissas para um sistema de gestão de recursos comuns eficiente, e nem por isso fomos capazes de expor aquela população a reais riscos de extinção. Os dados obtidos por Mourão, Campos e Coutinho nos acampamentos indicaram que o único critério adotado era objetivamente orientado pelo mercado: a caça era voltada para os indivíduos grandes, por serem as peles maiores as mais valiosas. Em conseqüência caçavam mais machos do que fêmeas e quase sempre indivíduos que já atingiram a idade reprodutiva. Como poucos machos podem fecundar muitas fêmeas, os efeitos demográficos podem ter sido minimizados. Na opinião desses pesquisadores, pode ainda ter sido beneficiado pela dificuldade de acesso que seu ambiente natural impõe aos caçadores e pelo desenvolvimento de um comportamento de “evitação” ao homem, conhecido para populações de crocodilianos sob forte pressão de caça.
É possível que a população de jacarés-do-pantanal tenha ido ao fundo do poço e se recuperado fortemente após o fim da caça, ajudada pelas grandes cheias que ocorreram no fim dos anos 80 e começo da década seguinte. De fato, várias outras espécies de crocodilianos de todo o mundo apresentaram grande recuperação depois que cessou a atividade de caça, conquanto fossem mantidos conservados seus respectivos habitats. O fato é que, já no início da década de 90, os levantamentos aéreos feitos pela equipe da Embrapa Pantanal, indicaram populações vigorosas com estimativas de abundância na casa dos milhões de indivíduos e nenhuma tendência clara de aumento populacional.
O caso do jacaré-do-pantanal é exemplar para traduzir o argumento central desse texto: não há como assumir que um sistema de manejo é fadado ao fracasso ou ao sucesso. A cientista política Elinor Ostrom, premiada com o Nobel de Economia no ano passado, expõe um pensamento interessante sobre esse assunto: “permitir que sistemas de governança se engajem em um processo de aprendizado baseado na tentativa e erro não reduz a probabilidade de erro para um recurso específico, mas reduz grandemente a probabilidade de erros desastrosos para todos os recursos de uma dada região”(ver revista Science, vol 284 de 1999). Temos evidências suficientes de que para o jacaré e talvez outras espécies brasileiras, o usufruto sustentável de uma parte da população é factível e que um processo adaptativo de tentativa e erro não envolveria tanto risco assim.
Voltando à mortal praia de Ostional
A Costa Rica tomou a decisão de explorar a população de tartarugas de modo sustentável. Uma decisão particularmente polêmica porque reúne fortes argumentos antagônicos sobre qual estratégia adotar. Com base no conhecimento prévio que se tem da espécie, a lógica interna da liberação da coleta de ovos nas primeiras noites da arribada é muito bem estruturada. Pesquisadores sabem que essa espécie adota uma estratégia reprodutiva para lidar com as incertezas do ambiente baseada na produção de uma prole extremamente numerosa, da qual boa parte morre antes de atingir a idade reprodutiva. Por conta da arribada, para as tartarugas precoces, praticamente toda mortalidade concentra-se já na fase inicial da reprodução, logo após a postura dos ovos. Se morte para aqueles ovos era praticamente certa, há uma forte evidência de que a coleta pouco irá afetar a dinâmica dessa população.
O sistema de exploração da tartaruga oliva em Ostional apresenta características relevantes para o seu sucesso em longo prazo. Entre outras coisas, a restrição de acesso ao recurso é muito clara (definindo quem pode e como deve ocorrer o acesso) e, muito relevantemente, os usuários são envolvidos nos mecanismos de exclusão dos não usuários. Há legimitização e empoderamento da comunidade local por parte da autoridade governamental, bem como a participação conjunta de órgãos de pesquisa e da autoridade na tomada de decisão sobre o manejo. Por fim, o recorte espacial particularmente restrito, torna muito mais fácil garantir que as normas de manejo sejam cumpridas.
“Até agora, nem pesquisas com evidências negativas e nem os dados do monitoramento realizado pela Universidade da Costa Rica apareceram para substanciar a discussão. Há, portanto uma lacuna significante no debate. “ |
Além disso, a comercialização deve ser feita em sacos selados produzidos por uma única associação local, a ADIO (Associación de Desarollo de Ostional), propriciando um gargalo na cadeia produtiva que facilita o controle sobre a atividade.
Por outro lado, mas não menos relevante, não há como se esquecer que a espécie se encontra ameaçada e tem nas praias da Costa Rica o seu principal ponto de desova. Um erro de percurso, ou um vacilo em identificar tendência de declínio no número de indivíduos visitando o local anualmente pode conduzir rapidamente à extinção da espécie… e extinção é irreversível.
O que precisa ficar claro, é que diante da decisão tomada, jamais podemos prescindir do contínuo monitoramento para avaliar os resultados das ações postas em prática. É para os resultados do monitoramento que nossa atenção deve se voltar. Qualquer outro debate é excessivo gasto energia com especulação no vazio.
O Germano põe lenha na fogueira e tem o grande mérito de chamar a atenção de que não é por ser legalizado que a prática adotada é sustentável. Foi dito que há estudos indicando a redução das populações de tartarugas oliva, porém entendo que pouca ênfase foi dada para a demonstração dos dados.
Em sua coluna em O Eco no ano passado, Fernando Fernandez apresentou dois exemplos bastante contundentes de como a ciência pôde contribuir para avaliar sustentabilidade de manejos tidos como sustentáveis – o extrativismo de castanha-do-pará e a exploração de madeira de baixo impacto em áreas amazônicas. Mas no que se refere às tartarugas, estamos ainda atados ao “há estudos…”. Até agora, nem pesquisas com evidências negativas e nem os dados do monitoramento realizado pela Universidade da Costa Rica apareceram para substanciar a discussão. Há, portanto uma lacuna significante no debate.
Por fim, vale expor uma percepção simplificada das dificuldades em se discutir a gestão de recursos comuns, tanto em escala local como em nacional. O dilema básico por trás dos commons, é que as pessoas na busca do seu interesse privado imediato produzem resultados que não atendem ao interesse no longo prazo de ninguém. A superação desse dilema desenhando, testando e adaptando sistemas de governança para gestão dos recursos, vai depender da percepção dos benefícios resultantes e dos custos envolvidos em negociação, monitoramento e fiscalização das normas.
Ou seja, manejo de recursos comuns dá trabalho. Há um custo de negociação muito alto. Ignorar o problema ou simplesmente banir o acesso a todos é sempre mais fácil. Qualquer alternativa só faz sentido se for conduzida de modo inclusivo e participativo. E isso mexe num problema basal da estrutura social brasileira: não temos a cultura política do processo participativo. Preferimos delegar essa função à classe política.
Mesmo assim, me considero um sujeito esperançoso de que experiências locais nessa ceara podem nos trazer importantes lições. Acho já temos exemplos de gestão participativa, integrando usuários e cientistas no mesmo debate. Mas avalio que o ceticismo de pessoas sérias e comprometidas como o Germano são fundamentais para equilibrar nossos avanços em lidar com essa questão.
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