Análises

Quanto de sapiens e quanto de grilo?

Cadê o Grilo Falante da conservação do patrimônio natural, a voz da consciência dos tomadores de decisões das esferas pública, privada, não governamental e da comunicação?

A consciência é aquela voz que nos diz o que está certo e errado e que ninguém dá ouvidos” – disse Grilo Falante a Pinóquio. 

A fábula de Pinóquio, que alterna tristeza e felicidade, satisfação e depressão, eventos fantásticos e pensamentos, sentimentos possíveis de achar em pessoas reais, já ultrapassou os 100 anos e foi adaptada inúmeras vezes. Em todas essas adaptações, encontramos algo que invejamos (não é piada!): o personagem principal tem um auxílio onipresente e espontâneo para momentos de avaliação e tomada de decisão, que reduz seu tempo de ignorância e dúvida e facilita sua vida e seus relacionamentos, quando acatado. Faz-nos pensar quão fácil seria se as respostas a todas as questões fossem dadas num estalar dos dedos, com a mesma velocidade e eficiência que resultam dessa interação Pinóquio e Grilo Falante. 

Em uma sociedade onde produtividade, agilidade e eficiência se tornam “o mantra nosso de cada dia”, o tempo dedicado a leituras e aprofundamentos (fundamentais, porque não temos aquele ente nos tutorando), se esvai entre os dedos – aqui entende-se sociedade de forma genérica, como uma sociedade moderna, competitiva, composta por uma porção da população que teve os meios e privilégios de aprender a ler, escrever, e seguir os caminhos das letras.

Cada vez mais, raras são as pessoas que de fato preparam os alicerces de suas casas teóricas. Na ânsia (e necessidade) do fazer, do solucionar, do brilhar, do influenciar e viralizar, esquecemo-nos da uma das essências do nosso ser, o pensar. Isso ou as demandas externas impedem que se busque a tão desejada profundidade do conhecimento. Em nome da honestidade da comunicação, o uso de “alicerce” e “profundidade” neste texto é absolutamente intencional: seguindo a analogia da construção de uma casa, quando a queremos sólida e durável, as primeiras operações serão de partir pedra, de triar material bruto ou sem utilidade, de deixar perfeito um lugar que receberá a estrutura e tudo e todos dentro dela, sem que vez alguma seja admirado quando vier um visitante – as fundações.

Vivemos num momento de crises – humanitária, sanitária, política, climática e ambiental. Se isso nos assusta, a coisa não melhora quando percebemos que [ainda] estamos direcionando os holofotes para o nosso ego. Será que são fatos paralelos, relação causal ou retroativa, ou tudo isso ao mesmo tempo? Se souberem, nos digam, é uma das tais perguntas que não se respondem no estalar dos dedos. Por algum motivo que talvez nem Freud explicaria, seguimos, como diria Nêgo Bispo, “personificando as lutas”, incluindo a da conservação e preservação da biodiversidade. Como ovelhas no rebanho (e que isto não desmereça o comportamento dos ovinos!), seguimos palavras bonitas, vozes cativantes, e ideias empolgantes. Sem ponderar, muitas vezes curtimos, compartilhamos e seguimos falas e imagens construídas em… areia. 

O cérebro humano já foi descrito como um órgão tão poderoso quanto misterioso. As funções e conexões de suas estruturas são ainda pouco conhecidas, e quando vamos além do físico e entramos na esfera dos pensamentos, sentimentos, memórias, juízos e reações são mais perguntas do que respostas. Se trouxermos à discussão o Grilo falante, então, só António Damásio¹ poderá dar-nos uma luz. O Grilo Falante foi esse personagem criado em 1883 para ser a voz da consciência de Pinóquio. Até hoje se busca qual a “caixinha” no cérebro humano onde ela, a consciência, se esconde, mas é mais elusiva do que bicho do mato! E entender como ela dialoga (ou se faz parte, ou se lhe opõe, ou…) ao restritivo específico de nossa espécie – sapiens, de sábio/a, com sapiência – é uma crise, pelo menos do trio que redigiu este artigo e aqui vem querendo refletir sobre consciência e conservação. 

Em 2009, Jay H. Bernstein desconstruiu o modelo hierárquico piramidal de R. L. Ackoff, proposto em 1988, de dados (na base)-informação-conhecimento-sabedoria (no topo) (acrônimo em inglês DIKW). Ackoff trabalhava com operacionalização da pesquisa e gestão da ciência. Ele definiu “dados” como produtos de observação, inúteis até que sejam processados e se tornem informação. “Informação” deve responder a questões. O “conhecimento” refina a informação e sua utilidade, permitindo o controle de um sistema, uma vez que as informações tornam-se instruções. “Sabedoria”, para Ackoff, corresponde à habilidade de prever consequências de longo prazo de qualquer ação e avaliá-la em relação ao ideal do que seria o controle total da ação. O que Bernstein faz é procurar a antítese deste modelo, identificar e conceitualizar os antônimos daquelas variáveis e tentar prever o que acontece quando temos o espelho de DIKW, algo como: o que vai sendo gerado à medida que ascendemos na pirâmide, sendo a base a ausência ou a carência de dados? Seriam a estupidez e a tolice (os melhores opostos de “sabedoria”, segundo o autor e suas fontes de pesquisa) apenas consequência direta desses “tijolos ruins da construção”? 

Se conseguimos manter você conosco até aqui, eis que lhe perguntamos: como diria que está nosso desempenho como sociedade no quesito “vamos garantir que nossos filhos e os netos de  seus netos tenham uma vida digna e de qualidade”? Para não complicar mais ainda o Tico e o Teco do Pinóquio, vamos pensar só em água-energia-alimentos-floresta. Como estão a quantidade e qualidade da água para consumo humano, para dessedentação animal (silvestre e doméstico), para os ecossistemas manterem suas funcionalidades? Quem tem acesso à energia? Quem está vulnerável a sofrer os impactos da sua produção e distribuição? Comida: diversa, abundante, limpa, boa, justa… ou nem por isso? E as florestas, até quando vão continuar de pé, diversas, funcionais e saudáveis? Mas a pergunta que não quer calar  é: nosso modus operandi faz jus ao sapiens que carregamos em nosso nome? Se a resposta for não, seria a ausência ou a carência de dados? Seria falta de informação ou excesso de desinformação? É ignorância em relação ao todo que nos cerca e suas interrelações?

Voltando ao tal do Grilo, a consciência de Pinóquio. Sempre que Pinóquio mentia, leia-se, tinha conhecimento do que era “certo”, mas escolhia o erro, seu nariz crescia como sinal externo e denunciador de que, ciente do erro, optou por ele.

Os humanos (espécie Homo sapiens) – pensando naqueles que têm conhecimento da importância e capacidade de uso (e de suporte) dos recursos naturais; naqueles que têm conhecimento da ciclagem dos nutrientes; naqueles que têm conhecimento dos serviços prestados pelos ecossistemas; naqueles que têm conhecimento das funções de muitos componentes e das estruturas dos ecossistemas; mais do que isso, naqueles que têm sabedoria, a tal dimensão que falamos acima, definida por Ackoff como a habilidade de prever consequências de longo prazo de qualquer ação e avaliá-la em relação ao ideal do que seria o controle total da ação – também têm narizes. Porém, seus narizes não crescem quando “mentem”. Isto é, quando praticam a incoerência entre o que sabem e o que fazem, quando seus comportamentos são dissonantes com o conhecimento científico, empírico e tradicional, cientes das consequências disso no curto, médio e longo prazo. Podemos tomar como exemplo as Conferências das Partes (Biodiversidade, Clima… para mencionar apenas duas). Em quantas edições já estamos? Quanto conhecimento e sabedoria já foram expostos e partilhados, ao mesmo tempo em que incontáveis metas já foram adiadas para camuflar nossa incoerência e dissonância entre sabedoria e comportamentos (des)favoráveis à conservação? 

Cadê o Grilo Falante da conservação do patrimônio natural – o meu Grilo, o seu Grilo… o Grilo dos tomadores de decisões das esferas pública, privada, não governamental e comunicação (como quarto poder)?

Incontáveis são os e as sapiens que têm pelejado para servar, “manter”, “guardar”, (do latim) o todo e as partes neste Planeta. As crises, mais frequentes, mais intensas e mais globais, são indicadores de que é preciso conservar, sendo “con-” um prefixo intensificativo no idioma original. Ir mais além, incluindo regenerar, restaurar e refaunar (que já estamos no movimento!), demanda sapiência (na fundação) – e consciência (na construção).

Diga a verdade, Pinóquio, nunca nem sonhou que tinha de saber de História ou de Ética para “melhor” manter “suas” joaninhas ou recuperar “seu” mangue, hein? Até a próxima!

Nota

¹ Uma breve biografia (e bibliografia) de António Damásio, em sua página na Universidade do Sul da Califórnia: https://dornsife.usc.edu/profile/antonio-damasio/

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  • Claudia S. G. Martins

    Engenheira agrônoma e ecóloga. Pesquisadora nas temáticas desertificação em áreas rurais e vulnerabilidade aos conflitos humanos-fauna silvestre, no semiárido brasileiro.

  • Mônica Engel

    Bióloga e Geógrafa. Doutora em Dimensões Humanas do Manejo e Conservação dos Recursos Naturais, é Chefe de Pesquisa na Bath and Associates Consulting Firm (Canadá), e membro dos Grupos Translocação para Conservação, e Rewilding, da União Internacional para Conservação da Natureza (UICN).

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