O gênero Phyllomedusa inclui algumas das espécies de anfíbios mais carismáticos do Brasil. De coloração geral verde, possuem grandes olhos com pupilas verticais e apresentam belos padrões de colorido nos flancos e nas partes ocultas dos membros. A despeito de seu carisma, algumas espécies novas foram descritas na última década, dentre outros avanços no conhecimento taxonômico do gênero.
Dentre estas, o grupo de Phyllomedusa hypochondrialis é um dos que abarca a maior diversidade, com oito espécies. Estudos recentes mostraram que este grupo apresenta duas linhagens diferentes. Uma delas engloba as espécies que ocorrem em baixas altitudes na Amazônia, Chaco Paraguaio e Caatinga. Outra linhagem agrupa as espécies que ocorrem em regiões montanhosas do Brasil e uma espécie de taxonomia complexa da Mata Atlântica.
As espécies que habitam formações montanhosas no Brasil apresentam aspectos interessantes de sua biologia e ainda carecem de mais informações acerca de seu status de conservação, biologia e distribuição. Estas espécies se caracterizam por habitarem pequenos riachos em ambientes abertos no topo de montanhas e serras e pelo belo desenho reticulado dos flancos e partes ocultas dos membros, onde linhas escuras se sobrepõem ao fundo amarelo, creme ou vermelho. Em algumas espécies, este desenho se prolonga na mandíbula, maxila, ao redor dos olhos e nos dedos, conferindo às suas mãos a aparência das belas tatuagens indianas de hena.
As espécies de flancos reticulados
A primeira espécie de Phyllomedusa de flancos reticulados a ser descrita foi Phyllomedusa megacephala, a partir de um exemplar depositado no Museu Nacional, Rio de Janeiro. Esta espécie foi descrita pelo eminente zoólogo brasileiro, Alípio de Miranda Ribeiro, em 1926. A espécie é atualmente delimitada à região da Serra do Espinhaço, sendo encontrada no Parque Nacional da Serra do Cipó e no Parque Nacional das Sempre Vivas. A espécie se reproduz em pequenos riachos de montanha.
Em 1965 foi descrita a espécie Phyllomedusa centralis, da Chapada dos Guimarães, Mato Grosso. Esta é uma das espécies menos conhecidas do grupo, sendo considerada, até o momento, restrita à região da Chapada dos Guimarães. A espécie foi observada em pequenos córregos com leitos rochosos e nascentes de riachos. Existem registros na espécie na região afetada pela UHE Manso e novos registros podem aparecer em outras áreas de montanhas no Mato Grosso.
A discreta Phyllomedusa ayeaye ocorre em formações abertas nas montanhas de Minas Gerais (Poços de Caldas, Parque Nacional da Serra da Canastra, Parque Estadual do Itacolomi, Reservas Particulares do Patrimônio Natural na região de Amarantina, Ouro Branco, Congonhas e regiões próximas) e no extremo norte de São Paulo (Parque Estadual Furnas do Bom Jesus). Esta espécie foi descrita em 1966, a partir de exemplares coletados em Poços de Caldas, Minas Gerais.
Listada como criticamente ameaçada pela IUCN e MMA, seu registro em diversas localidades, incluindo unidades de conservação de proteção integral, tem levando alguns pesquisadores a questionarem o seu real status de ameaça. No entanto, antes que qualquer mudança seja efetivada, é necessário avaliar a dinâmica de suas populações nas Unidades de Conservação de Proteção Integral e cenários futuros de conservação. É sempre bom lembrar que a simples presença em unidades de conservação não garante que a espécie estará protegida no futuro, especialmente em um cenário que prevê importantes mudanças climáticas nas regiões de montanha do Brasil em um futuro próximo.
Nas terras altas dos cerrados do Brasil Central, incluindo os estados de Goiás, Distrito Federal e Oeste de Minas Gerais, é encontrada a Phyllomedusa oreades, descrita em 2002, a partir de exemplares da Chapada dos Veadeiros, Serra da Mesa, Pirinópolis e Brasília. Na mitologia grega, as oréades são ninfas que vivem nos campos e montanhas, o que reflete bem os ambientes utilizados pela espécie.
Além disso, oréades foi o nome dado à região fitogeográfica do Brasil Central, segundo a classificação que o iminente botânico alemão Carl Friedrich Philipp von Martius propôs para a vegetação brasileira em 1840. De todas as espécies de Phyllomedusa de flancos reticulados, esta é a espécie que apresenta a maior distribuição conhecida. A espécie já foi registrada em diversas áreas protegidas do Cerrado, como os Parques Nacionais de Chapada dos Veadeiros, Grande Sertão Veredas e Brasília, além dos Parques Estaduais da Serra dos Pirineus e da Serra de Caldas.
É interessante perceber que muito do que se sabe sobre tais espécies foi aprendido nos últimos anos, incluindo aí uma percepção mais fina da distribuição, relações de parentesco e uso de ambientes reprodutivos. Este acúmulo de conhecimento nos últimos anos deve-se ao aumento de pesquisadores de campo interessados em anfíbios no Brasil, o crescente interesse pelo grupo e pelo apoio à pesquisa por instituições, como a Fundação O Boticário de Proteção à Natureza. Por outro lado, a falta de informações mais finas sobre tais espécies em meados e fins do século XX também recai sobre os hábitos discretos de tais organismos. De especial atenção são os seus sítios reprodutivos pouco usuais para o gênero.
Os ambientes das espécies de flancos reticulados
A maior parte das espécies de Phyllomedusa se reproduz em poças e isso não é exceção para as espécies do grupo de Phyllomedusa hypochondrialis. Já a reprodução em riachos é uma exclusividade das espécies de flancos reticulados. Esta peculiaridade passou a ser entendida muito recentemente, esclarecendo questões confusas na literatura especializada.
Mas por que os ambientes de reprodução destas espécies são especiais? Nos ambientes onde estas espécies ocorrem (áreas abertas no topo de montanhas e serras no Cerrado e zonas de transição entre Cerrado e Mata Atlântica), poças são ambientes raros ou ausentes. A declividade do terreno e o solo raso limitam o acúmulo de água e a formação de poças adequadas para estes animais. Por outro lado, as serras e montanhas do Brasil Central são repletas de nascentes, que correm por regos e regatos até alimentarem riachos e córregos de maior porte. Nestes riachos de maior porte, existem condições para o desenvolvimento de matas de galeria, ambientes não utilizados por estas espécies. Este aspecto limita a ocupação do espaço pelas pererecas de flancos reticulados.
De forma mais geral, estas espécies utilizam regos permanentes ou temporários nas encostas das montanhas. Estes regos e pequenos riachos, presentes nas linhas de drenagem das encostas, possuem água em quantidade durante os meses chuvosos. Alguns são intermitentes mesmo na estação chuvosa, mas mantêm água nos seus poços. E geralmente apresentam leito rochoso. Devido à inclinação do terreno, pequenas quedas estão presentes, formando poços profundos ao longo de seu percurso, onde os machos de concentram para vocalizarem e atraírem as fêmeas. Ao redor destes poços, os casais formam ninhos com folhas de arbustos de espécies lenhosas. Estes ninhos são apenas uma folha dobrada e colada por substâncias produzidas juntamente com a desova, onde os ovos ficam protegidos no interior, contra a dessecação e a predação. Quando ocorre a eclosão dos ovos, os pequenos girinos caem nas poças, onde ocorre o seu desenvolvimento até a metamorfose.
De forma grosseira, os machos destas espécies podem ser encontrados nestes regos desde o primeiro poço até o início da mata de galeria, mais abaixo. Não é muito, mas alguns regos podem ter mais de 400 metros de comprimento e formarem mais de 10 poços. No entanto, estes ambientes lineares não são sempre ocupados. Regatos com alta declividade, por exemplo, não são ocupados. No Morro do Ferro, a região de Poços de Caldas (MG) e localidade tipo de Phyllomedusa ayeaye, de seis regos e pequenos riachos vistoriados, a espécie estava presente em apenas três. Na Serra da Canastra, a espécie estava em três de oito regatos. Um padrão de ocupação semelhante foi observado para outras espécies estudadas por nossa equipe, como P. oreades, P. megacephala e P. centralis.
Dois aspectos destes ambientes são relevantes no entendimento da ecologia destas espécies. O primeiro é a necessidade de percepção por parte dos pesquisadores de que esses regos e pequenos riachos são interessantes ambientes naturais para a reprodução de anfíbios de áreas abertas e não apenas aspectos da paisagem das serras. Na literatura, aparecem descrições tentativas destes ambientes que são incompletas para captar a especificidade e complexidade estrutural de tais ecossistemas, como “trincheiras de erosão” ou “poças em enxurradas”.
Mas, além de serem ambientes especiais na paisagem das áreas abertas e de fundamental relevância na dinâmica das nascentes e dos sistemas hídricos que alimentam, estes ambientes são de uma incrível fragilidade. Por estarem localizados na linha de drenagem das encostas, em solos rasos e por não contarem com uma cobertura vegetal densa, são facilmente erosíveis. O pisoteio por gado, por exemplo, facilita a abertura de valas e aumenta a velocidade de enxurradas, que acabam por assorear tais ambientes ou formam grandes voçorocas que engolem estes hábitats.
Outra prática comum em propriedades rurais é o barramento de tais drenagens para criar pequenas represas para o gado, causando o completo desaparecimento destes ambientes. Em alguns lugares, é possível encontrar alguns indivíduos tentando viver em ambientes completamente degradados. No entanto, o sucesso reprodutivo destes animais nestas situações é extremamente reduzido e a espécie desaparece em poucos anos. Isso está ocorrendo em diversas regiões do Cerrado, afetando populações das diferentes espécies destas pequenas pererecas nas áreas que não estão protegidas por unidades de conservação de proteção integral.
As frágeis cabeceiras de riachos de montanha, com suas abençoadas nascentes, são a moradia destes peculiares e interessantes anfíbios. A presença destas espécies de Phyllomedusa nestes locais indica boa qualidade de hábitats e das águas. E, como diria Guimarães Rosa, “perto da água, tudo é feliz”.
A Fundação O Boticário de Proteção à Natureza apoiou o Projeto “Ecologia, Conservação e Taxonomia das Espécies de Phyllomedusa do grupo hypochondrialis”, o que permitiu a geração de dados relevantes sobre estas espécies e seus hábitats.
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