Há poucos dias assisti a uma matéria televisiva no RJ TV, da Rede Globo, que tratava de discutir a questão do campo de golfe olímpico sob a ótica das possibilidades de sustentabilidade ambiental e financeira do projeto para uma unidade de conservação, no caso o Parque Natural Municipal (PNM) de Marapendi. O diálogo era travado entre o jornalista André Trigueiro e dois especialistas, o economista Sérgio Besserman e o oceanógrafo David Zee. Claro que senti a ausência no diálogo de profissionais atuantes e especialistas no tema planejamento, implantação e gestão de unidades de conservação.
A argumentação central era de que o projeto do campo de golfe, que compreende a desafetação de uma área preservada e a construção de prédios (com maior ou menos densidade de ocupação e espaço entre eles), resultaria em sólidos e consistentes benefícios financeiros para a gestão do PNM Marapendi, ou seja, a curto e médio prazos terminariam os problemas de recursos para a efetiva implantação da unidade. Bem, sob tal ótica os empreendimentos imobiliários em área, ou no entorno imediato, de uma unidade de conservação seriam uma estratégia eficiente para a proteção e o manejo de um Parque, Nacional, Estadual e/ou Natural Municipal. O primeiro questionamento que se faz é: qual a razão de uma estratégia tão eficiente não está inscrita em nenhuma Resolução internacional derivada dos Congressos Mundiais de Parques Nacionais e Outras Áreas Protegidas, como Durban (2002) e Barcelona (2008), e/ou na Lei Federal 9.985, de 18 de julho de 2000, que criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC)? O segundo questionamento é: vale estimular a especulação imobiliária, ou ações que gerem externalidades negativas sobre os recursos naturais, em função de possíveis compensações financeiras para gestão de uma unidade de conservação?
Ora, tais argumentos não encontram suporte em nenhuma teoria qualificada que trate do tema unidades de conservação, ao contrário. A gestão eficiente de qualquer unidade de conservação, um Parque Nacional, Estadual, Natural Municipal, uma Área de Proteção Ambiental (APA), uma Estação Ecológica, e demais categorias de manejo inscritas na Lei do SNUC depende, primordialmente:
- de instituições fortalecidas que administrem tais áreas, ou seja, que considerem as regras do jogo claras e publicizadas, e não difusas;
- de instrumentos de sustentabilidade econômica subsidiados, e comprovados, por estudos técnicos e acadêmicos sobre viabilidade financeira e proteção dos recursos naturais;
- da observância das normas contidas em Planos de Manejo elaborados de forma participativa (a APA e o PNM Marapendi não possuem Planos de Manejo elaborados);
- de mecanismos que assegurem a interlocução com a sociedade em termos de uma efetiva governança democrática na tomada de decisão, com consulta pública que indique de modo claro as implicações de um projeto para as populações residentes e no entorno da unidade, o que implica na sinergia com vários segmentos sociais e não, e tão somente, entre os poderes executivo e legislativo, como foi o caso da instalação do campo de golfe olímpico.
A desafetação de uma unidade de conservação é permitida mediante Lei específica, conforme apregoa a Lei do SNUC. Contudo, a mesma legislação, em seu artigo 28, estabelece que “são proibidos, nas unidades de conservação, atividades ou modalidades de utilização em desacordo com seus objetivos, o seu Plano de Manejo e seus regulamentos”. E, no seu parágrafo único que “até que seja elaborado o Plano de Manejo, todas as atividades e obras desenvolvidas nas unidades de conservação de proteção integral devem se limitar àquelas destinadas a garantir a integridade dos recursos que a unidade objetiva proteger”.
Sem conselho e sem plano de manejo
“tais unidades estão sob regras do jogo absolutamente difusas, e com mandatos em aberto, o que as fragiliza”
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O PNM e a APA Marapendi não possuem Planos de Manejo elaborados e nem Conselhos instituídos e operacionais, nos quais os membros contemplem representantes das três esferas de governo, entidades de pesquisa, organizações não governamentais, associações de moradores e demais atores sociais, ou seja, não são unidades de conservação geridas sob a ótica da governança democrática. Portanto, sem Conselhos e sem Planos de Manejo elaborados tais unidades estão sob regras do jogo absolutamente difusas, e com mandatos em aberto, o que as fragiliza.
Além do exposto, cabe também destacar que vários mecanismos financeiros estão sendo utilizados na gestão de unidades de conservação, com sucesso, em especial no tocante à concessão de bens e serviços públicos para a população, em termos de serviços de alimentação, de transportes, de arrecadação de ingressos, de equipamentos de lazer e recreação etc, visando uma visitação qualificada, e naquilo que o Estado pode terceirizar mediante um processo público licitatório. Para tanto há de se elaborar Planos de Manejo, com a participação da sociedade, e realizar estudos de viabilidade financeira para terceirização de serviços de uso público, o que já é realizado em vários Parques Nacionais desde a década de 90, desde o início das discussões sobre a reforma do Estado que, no âmbito político, entenderia a governabilidade como a capacidade política do governo de intermediar interesses, garantir legitimidade e governar, de maneira a adequar as instituições políticas à mediação desses interesses. A discussão do tema em demais sistemas internacionais é ainda mais antiga.
Com efeito, a sustentabilidade financeira nos processos de planejamento, implantação e gestão de unidades de conservação não é um tema novo, mas as instituições devem estar mais fortalecidas e qualificadas para a promoção de discussões aprofundadas sobre o tema, o que é mais difícil em Secretarias Municipais de Meio Ambiente que apresentam carência de técnicos com currículo específico e experiência qualificada no assunto (unidades de conservação), como é o caso observado em alguns municípios, inclusive na Secretaria Municipal de Meio Ambiente da Cidade do Rio de Janeiro no qual o assunto é incipiente – diferente do aparato institucional mais fortalecido e qualificado para tratar da questão como o Instituto do Ambiente do Governo do Estado do Rio de Janeiro (INEA) e/ou o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Uso público x privatização
“o norteamento é fazer com que o turismo seja desenvolvido de maneira harmônica entre um uso público de qualidade e a manutenção dos processos ecológicos, respeitando as peculiaridades locais e regionais, não se tratando de privatização”
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O tema sustentabilidade financeira de unidades de conservação é complexo, tanto que seus mecanismos envolvem discussões ambientais, sociais, econômicas, sobre interlocução entre políticas públicas setoriais, questões relativas à proteção dos recursos naturais, incremento da visitação, porém mais qualificada, desenvolvimento local e regional, inclusão social, fortalecimento e apropriação das unidades pela sociedade, incentivo para a economia, promoção e geração de emprego e renda para as populações locais, além de outros temas correlatos. Além do aparato institucional fortalecido, o que envolve a coordenação do processo por técnicos devidamente qualificados e multidisciplinares, engloba estudos específicos e bem fundamentados que, em geral, levam anos para uma conclusão mais sólida – e mesmo assim algumas vezes podem ocorrer inconsistências. Contudo, o norteamento é fazer com que o turismo seja desenvolvido de maneira harmônica entre um uso público de qualidade e a manutenção dos processos ecológicos, respeitando as peculiaridades locais e regionais, não se tratando de privatização, mas de terceirização de bens e espaços públicos para o bom atendimento aos visitantes e usuários, nos termos estabelecidos no artigo 25 do Decreto Federal nº 4.340/2002, que regulamenta a Lei do SNUC.
Ressalta-se, ainda, que vários trabalhos acadêmicos aprofundaram a discussão sobre o tema ao longo de mais de uma década, desde a produção técnica do IBAMA, na década de 90, até as discussões realizadas pelo ICMBio, passando por Planos de Sustentabilidade Financeira, como o elaborado pelo Parque Nacional da Tijuca, em 2002, dissertações e teses de doutorado qualificadas, além de vários estudos produzidos na área de economia ambiental e unidades de conservação, como os realizados pelos doutores e economistas Carlos Eduardo Young e Peter May, para citar apenas, e tão somente, alguns dos pesquisadores que trabalham com a temática há anos.
Portanto, sem desmerecer qualquer profissional que debata um assunto tão complexo, a argumentação realizada no presente texto aponta para o fato de que a discussão sobre sustentabilidade financeira para a gestão de unidades de conservação é ampla, complexa e comporta uma gama de visões, principalmente de especialistas que atuam com foco em planejamento e gestão de unidades de conservação, o que envolve conhecimento derivado da práxis e da teoria acadêmica. Tais especialistas devem e merecem fazer parte de qualquer discussão aprofundada sobre a instalação do campo olímpico em um Parque Natural Municipal e, fundamentalmente, a sociedade.
Terceirização
Finalmente, nesses termos, se entende que a capacidade de fazer valer os contratos (custos de transação) reflete a efetividade das instituições. Em outras palavras, “o custo de fazer negócios depende da capacidade de mensurar o que está sendo transacionado e garantir o cumprimento dos termos contratuais, ao longo do tempo e do espaço” Bonfim (2007: 21) , o que dificilmente pode ser constatado no processo de instalação do campo de golfe, sem participação da sociedade. Mas tal observação apenas um breve futuro comprovará.
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