Análises

A FIFA, o Fuleco e o esquecimento do tatu de verdade

A Copa deve gerar 5 bilhões de dólares em lucros e a premiação mais baixa é de 8 milhões, mas até agora nada disso vai para o tatu bola.

Enrico Bernard ·
30 de junho de 2014 · 10 anos atrás

Em 2012, a FIFA e o Governo Brasileiro escolheram o tatu-bola como mascote da Copa. A FIFA determinara que comunicar a importância do meio ambiente e da ecologia era um de seus objetivos para o mundial, e a escolha do tatu-bola (Tolypeutes tricinctus) parecia perfeita: uma espécie tipicamente brasileira, carismática e cuja forma de bola remetia automaticamente ao futebol. Batizaram-no como Fuleco, junção das palavras futebol e ecologia, nome que embora não tenha agradado ao público brasileiro, reforçava sua mensagem ecológica. Conservacionistas comemoraram, afinal a escolha poderia trazer alguma esperança para a conservação do tatu-bola e de seu principal habitat. Além de toda a atenção da mídia, royalties provenientes da venda da imagem e dos produtos do mascote poderiam ser revertidos para programas de conservação. Através do Fuleco, o tatu tirara a sorte grande, entrando para o tão propagandeado – e hoje mal fadado- “legado da Copa”.

Os anos se passaram, a Copa foi se aproximando nem a FIFA e nem o Governo Brasileiro tinham ideia de que esta escolha lhes colocaria em uma grande saia justa. Para entender o comprimento desta saia, é preciso entender primeiro a situação do tatu-bola. A espécie Tolypeutes tricinctus é restrita à caatinga e manchas de cerrado adjacente. Ela aparece na Lista vermelha da IUCN como Vulnerável e a recente revisão da Lista Brasileira de Espécies Ameaçadas de Extinção – a ser publicada em breve- apontará que o seu status na verdade piorou, devendo ser classificada como Ameaçada. Embora não existam estimativas populacionais na natureza, relatos de pesquisadores e moradores locais apontam que a espécie vem desaparecendo de áreas onde antes era abundante, muito em função da caça e da perda da vegetação nativa da caatinga, convertida para carvão ou degradada pelo sobrepastoreio de gado. De fato, a caatinga já perdeu 46% de sua cobertura original, e o restante encontra-se sob forte pressão humana. Para piorar a situação do tatu, a caatinga tem a menor proteção entre os biomas terrestres brasileiros, com cerca de somente 1% na forma de parques e reservas. Além de poucas, as áreas protegidas da caatinga estão em mau estado de conservação, sem orçamento ideal e com “equipes” de apenas um gestor. Em suma, a FIFA e Governo Brasileiro haviam escolhido uma espécie endêmica, ameaçada, típica de um ecossistema pouco protegido, sob forte pressão humana, e sofrendo de problemas ambientais crônicos. Uma escolha delicada.

Mascote relegado

“Como quase todas as obras relacionadas à Copa, o papel esperado para o Fuleco também parecia ter sido superdimensionado.”

Com a aproximação da Copa e a falta de medidas concretas para a conservação do tatu-bola, o que era expectativa se transformou em frustração: a FIFA tinha esquecido seu mascote. Como quase todas as obras relacionadas à Copa, o papel esperado para o Fuleco também parecia ter sido superdimensionado. Havia uma sensação de algo inacabado. O legado parecia negado. Neste cenário de frustração e indignação, eu e cinco colegas, todos apreciadores do bom futebol e pesquisadores ou gestores envolvidos direta ou indiretamente com conservação da caatinga e de seus mamíferos, decidimos expor nossa opinião e fazer algum barulho. Em um artigo publicado na edição de maio da revista científica Biotropica, questionamos o abandono do tatu-bola pelos organizadores da Copa. Provocamos a FIFA e o Governo Brasileiro a honrarem compromissos previamente assumidos, e os desafiamos a assumirem mais alguns. Basicamente destacamos três pontos que se cumpridos pela FIFA e pelo Governo Brasileiro poderiam deixar algum legado de fato para o tatu bola e a caatinga:

1- Honrar com os US$668 milhões em investimentos previstos para os 46 “Parques da Copa”, anúncio feito no final de 2011, mas que na prática se transformaram em menos de 2% do valor, e para apenas um terço destes parques.

2- Expandir a área protegida de caatinga com a criação de um parque para o tatu-bola. E aproveitando o clima de competição, desafiamos a FIFA e o Governo Brasileiro a assumirem uma meta ambiciosa: 1.000 hectares de caatinga declarados protegidos para cada gol marcado durante a Copa.

3- Acelerar a conclusão e publicação do Plano de Ação para a Conservação do Tatu-bola, pondo fim a uma espera de quase 20 anos por um plano formal para retirar esta espécie da lista de ameaçadas.

A menos de um mês da Copa, e contando com uma excepcional cobertura de mídia – confesso que muito maior do que poderíamos imaginar- nosso desafio rapidamente estava estampado pelos maiores veículos de comunicação do Brasil e do mundo. Dezenas de jornais e sites estampavam o esquecimento do Fuleco. As redes Facebook e Twitter ajudaram a espalhar nossa mensagem a uma velocidade impressionante. Sites de cyber-ativismo nos procuraram e propuseram que a criação do parque para o tatu-bola se transformasse em campanhas públicas (e enquanto escrevo, uma destas campanhas ultrapassou as 140 mil assinaturas). Recebemos dezenas de mensagens de colegas pesquisadores e conservacionistas nos parabenizando pela iniciativa. A Association for Tropical Biology and Conservation, a maior organização científica do mundo dedicada a assuntos de conservação tropical, transformou nosso desafio em uma resolução oficial, agregando uma voz de peso ao coro que pedia à FIFA e ao Governo Brasileiro ações concretas pela conservação do tatu-bola.

Fuleco: quanto será que ele arrecadou?
Fuleco: quanto será que ele arrecadou?

Uma resposta pífia

“Pressionada por uma agência de notícias britânica, que queria um posicionamento, a FIFA simplesmente declarou que a escolha do Fuleco “ajudou a aumentar a consciência sobre o tatu-bola e seu status de espécie vulnerável no Brasil”

Toda essa cobertura causou uma propaganda bastante negativa para os organizadores da Copa. A situação do Fuleco era agora ainda mais constrangedora. E com todo esse barulho, o que fizeram FIFA e o Governo Brasileiro? Pressionada por uma agência de notícias britânica, que queria um posicionamento, a FIFA simplesmente declarou que a escolha do Fuleco “ajudou a aumentar a consciência sobre o tatu-bola e seu status de espécie vulnerável no Brasil”, complementando que seu mascote não seria “usado para promover mensagens ambientais específicas”. Já o Governo Brasileiro, talvez preocupado com sua imagem como país anfitrião, acelerou seus trabalhos e anunciou no dia 22 de maio a publicação do Plano de Ação para a conservação do tatu-bola. De fato, entre as 38 ações previstas neste plano está a criação de áreas protegidas específicas para a proteção integral do tatu. A onda positiva repercutiu em outros níveis administrativos, e o Governo do Estado de Pernambuco se solidarizou com o tatu-bola e se comprometeu a criar um parque estadual para proteger a espécie e a caatinga.

Fim do jogo? Vitória? Não. Longe disso. Sabemos que ainda há um longo caminho pela frente até que a situação do tatu-bola possa ser considerada melhor. Sabemos também que a falta de recursos financeiros tem o poder de destruir boas intenções conservacionistas. Executar as ações previstas no Plano de Ação e criar áreas protegidas têm um custo, e o orçamento do Ministério do Meio Ambiente vem sendo reduzido ano após ano. Por isso, o silêncio da FIFA ainda nos incomoda bastante, principalmente considerando o volume de dinheiro envolvido.

Dinheiro sobrando

“94 minutos jogados, ou uma partida dos times mais mal colocados, pagariam o Plano de Ação do Tatu.”

Esta é a Copa mais rentável da história, com um lucro estimado de cerca de 5 bilhões de dólares. Em dezembro a FIFA anunciou a criação de um fundo fiduciário que deverá ser destinado às causas sociais, o World Cup Legacy Trust, com um aporte inicial de 20 milhões de dólares. O valor arrecadado com o licenciamento de produtos do Fuleco até agora não foi divulgado pela FIFA. Tanto o fundo fiduciário quanto os royalties são recursos que poderiam ajudar na criação e implementação dos parques previstos no Plano de Ação do tatu.

Indo mais além, bancar todo o plano de ação não sairia caro para a FIFA. A premiação total na Copa soma US$ 576 milhões. As seleções que ficarem mais mal colocadas (do 17º ao 32º lugares) receberão US$ 8 milhões só por participarem. Fazendo uma conta rápida: se uma seleção fizer apenas três jogos e for desclassificada, e considerando cada partida com 90 minutos, cada minuto jogado vale U$ 29,629.00. O custo total estimado da execução do Plano de Ação para a Conservação do Tatu é de R$ 6,3 milhões (ou cerca de US$ 2.81 milhões). Então, 94 minutos jogados, ou uma partida dos times mais mal colocados, pagariam o Plano de Ação do Tatu. Dona FIFA, não seja mesquinha! Banque o Plano de Ação para a conservação do batu-bola e coroe com um verdadeiro legado ambiental esta Copa que, até aqui, vem sendo um sucesso dentro de campo.

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  • Enrico Bernard

    Biólogo, professor do Departamento de Zoologia da UFPE, trabalha com biologia, ecologia e conservação de morcegos. É presidente da Sociedade Brasileira para o Estudo dos Quirópteros.

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