A ciência diz que Chen Ku, um dos pontos mais importantes na metrópole maia de Chichen Itza, é uma dolina, uma caverna cujo topo desabou formando um poço. No caso, cheio de água vinda do lençol freático. Os maias que lá moravam achavam que era um local onde podiam se comunicar com Chaac, o deus da chuva e uma das deidades mais importantes para uma civilização de base agrícola.
A região habitada pelos maias está sujeita a secas e quando estas ocorriam a opção era aplacar Chaac com sacrifícios humanos e de objetos de arte lançados em Chen Ku. Obviamente estes sacrifícios tinham impacto zero sobre as chuvas, além de piorarem a qualidade da água.
“(…)a lista de povos orgulhosos que viraram história quando o mais importante recurso limitante deixou de ser disponível é extensa.”
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A civilização maia clássica entrou em colapso quando sua estrutura sócio-política teve que encarar uma seca intensa que destruiu sua agricultura, situação muito piorada pelo desmatamento realizado pelos ruralistas daquele império. Há evidências de que a classe dirigente, que dizia ter contato direto com os deuses e fazer chover, foi massacrada por revoltas populares quando caiu a ficha que eles não iriam entregar o que prometiam.
Os maias foram apenas uma das muitas civilizações que quebraram quando faltou água. Do Mediterrâneo da Idade do Bronze passando pelo Vale do Indus, pelos Anasazi e Roma, a lista de povos orgulhosos que viraram história quando o mais importante recurso limitante deixou de ser disponível é extensa.
Erros que se repetem
É fácil fazer piada dos maias (e outros) sacrificando crianças a Chaac para trazer chuva, mas eles não são diferentes dos brasileiros católicos que pedem o fim da seca no nordeste e dos norte-americanos evangélicos que pedem a mesma coisa em sua terra.
Se há algo que a história e a ciência ensinam é que rezar tem impacto zero sobre padrões climáticos, embora mantenha as pessoas ocupadas e as faça esquecer de cobrar seus governantes. Também aprendemos que quanto maior e mais complexa uma civilização maior o tombo, e que é uma boa ideia tratar muito bem os recursos escassos das quais ela depende. Especialmente a água.
O sudeste e nordeste do Brasil vivem uma seca que reduziu dramaticamente os reservatórios das hidrelétricas da bacia do Tietê-Grande-Paraná e do São Francisco, forçou o país a usar termoelétricas movidas a combustível importado – o que custará a bagatela de R$ 66 bilhões apenas esse ano – e paralisou hidrovias (veja aqui e aqui). Não deixa de ser interessante ver como a natureza, ao secar o São Francisco, pouco se importa com as promessas feitas sobre uma certa transposição.
O problema da seca é piorado graças ao desmatamento, que afeta negativamente padrões de precipitação, a perenidade das nascentes de água, a recarga dos aquíferos e o assoreamento dos cursos d’água e dos reservatórios. Podemos agradecer aos “heróis do progresso” que desmataram o que nunca deveria ter sido cortado e seus representantes no Congresso Nacional que garantiram que eles não consertarão o estrago.
Em meio à encrenca, a maior região metropolitana do país, São Paulo, se destaca como exemplo de como tratamos o alicerce do qual depende nossa civilização.
Enquanto escrevo, zerou o volume útil do Sistema Cantareira, que abastece mais de 50% da região metropolitana. Com o aval da Agência Nacional de Águas (ANA), a empresa de abastecimento, a SABESP, raspa o fundo do tacho sugando o chamado volume morto (veja o que é aqui e aqui) e o governador paulista garante que racionamentos são desnecessários, embora ele já esteja acontecendo. Os reis maias devem ter se comportado do mesmo jeito.
O Cantareira está na bacia do rio Piracicaba e não há água suficiente para garantir a vazão desta, com impactos tanto sobre a população humana como os ecossistemas. Falta água para as pessoas e a famosa piracema do rio Piracicaba foi aniquilada.
A capital do desperdício
São Paulo e suas cidades-satélites sempre tiveram uma relação complicada com a água. Uma cultura que acha que progresso é sinônimo de concreto canalizou e retificou os rios da região, transformados em esgotos a céu aberto e inutilizados como mananciais. Isso obriga o uso de bacias distantes como a do Piracicaba, que pagam o pato.
Sucessivos governantes, incluindo o atual prefeito de São Paulo, obsessivamente impermeabilizaram a maior área possível, deixando poucas áreas verdes. Um resultado é a mudança no clima local, que fez a antiga “terra da garoa” ser hoje mais adequada a árvores do cerrado do que da mata atlântica, além de enchentes quando chove para valer, já que a água não é absorvida pelo solo.
A isso se soma a pressão populacional. Válvula de escape para problemas sociais de outras partes do país, a imigração para a Região Metropolitana de São Paulo fez com que a população explodisse de 8,17 milhões em 1970 para 19,7 milhões em 2007, o que aconteceu na ausência de planejamento urbano e políticas de habitação. O resultado é que, só na cidade de São Paulo, a população favelada foi de 72 mil pessoas (1,1%) em 1973 para 1,07 milhão (11,3%) em 1992. Gente que, em geral, foi morar onde não deveria.
A demanda por moradia tanto por pobres como por ricos cobrou um preço pesado das “áreas de proteção de mananciais” da região metropolitana. As áreas “de proteção” ocupadas por “assentamentos irregulares” sofreram uma urbanização mais rápida do que áreas sem proteção legal, o que mostra quão interessadas estavam autoridades que deveriam cuidar das mesmas.
Áreas vitais para o abastecimento foram e são presas de loteamentos e ocupações que sempre acabam legalizados graças ao “interesse social” e o dos políticos que cultivam seus currais nestas áreas.
O tal “interesse social” garante que o entorno dos reservatórios continue sendo ocupado e reservatórios como a Guarapiranga sejam um caldo de plantas aquáticas dominado por cianobactérias potencialmente produtoras de toxinas que afetam o sistema nervoso e causam câncer de fígado (veja aqui e aqui) Eu só tomo água que tenha passado por um filtro de carvão ativado.
Enquanto as opções de mananciais são limitadas e sua qualidade vai para o ralo, a SABESP, considerada “um padrão” entre as empresas brasileiras de saneamento e abastecimento, desperdiça 31% da água captada no trajeto entre a represa e a caixa d’água . Um desempenho que dificilmente pode ser justificado.
Um problema estrutural
“A gestão dos recursos hídricos no país mostra como é desastroso ter políticos apenas interessados em eleições e para os quais longo prazo é sinônimo de dois mandatos à frente de questões que demandam visão de longo prazo.”
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A má gestão da água na região metropolitana não é só culpa do governo estadual e dos municipais. A Agência Nacional de Águas (ANA) é a responsável por autorizar quanta água de cada manancial pode ser retirada e para qual fim, mediando os diferentes interesses.
Infelizmente a ANA tem um mau histórico. No final de 2003, quando vivíamos outra grande seca e o volume útil do sistema Cantareira zerou, ela tanto autorizou o uso do volume morto como, pior, usou uma canetada para transformar parte deste em volume útil (veja a história aqui), abrindo a possibilidade de lambanças futuras. Agora, ao invés de obrigar medidas de economia, que já deveriam ter começado há muito tempo, a ANA autorizou novamente o uso do volume morto, que é metade do que era em 2003.
Isso significa não só o uso do fundo do tacho, onde estão concentrados contaminantes, mas também que os reservatórios vão levar muito mais tempo para recuperar um volume útil que possa ser considerado seguro. É uma aposta que só dará certo se as chuvas voltarem a cair em abundância e um risco que não precisaríamos correr se houvesse planejamento (de novo).
A gestão dos recursos hídricos no país mostra como é desastroso ter políticos apenas interessados em eleições e para os quais longo prazo é sinônimo de dois mandatos à frente de questões que demandam visão de longo prazo.
Agências reguladoras como a ANA deveriam ser técnicas e evitar que chegássemos a situações assim, mas a gestão política as considera como moeda de troca… política. A tomada de decisões comumente passa ao largo do tecnicamente correto e/ou do interesse comum. Enquanto escrevo há uma disputa entre a ANA, o Operador Nacional do Sistema Elétrico e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários porque não há água suficiente para todos os interessados. Além de água faltou competência.
Nossos políticos preferem realizar grandes e caras obras para trazer água de centenas de quilômetros (a “solução” para São Paulo é trazer água da bacia do rio Ribeira de Iguape e a “solução” para o nordeste é a transposição do São Francisco…) e dão pouca atenção à água desperdiçada por canos furados e coisas simples como plantar árvores e proteger as bacias de captação, embora esta seja a estratégia seguida por metrópoles como Nova York, Tóquio e Quito. Será devido ao apetite por grandes obras das empreiteiras que bancam campanhas eleitorais?
A gestão política também acha que as coisas vão dar certo mesmo quando se faz tudo errado, fato também visível na nossa economia. Hoje precisamos de um milagre (ou desastre) climático, talvez temporais no final do ano trazidos por um El Niño que está se formando no Pacífico.
O Brasil glorifica a ignorância desinibida (basta olhar nossos dirigentes mais populares) e tem o jeitinho como sua maior característica cultural. Outros povos já perceberam que encostas que caem, rios que secam, hidrelétricas que não geram, crianças sem cérebro e universidades interditadas por causa de contaminação no solo são sinais de que meio ambiente é coisa séria, não perfumaria.
Infelizmente, aqui não é assim e não damos valor aos recursos dos quais nossa sociedade depende. O resultado é que somos mais vulneráveis do que acreditamos. Vemos isso a cada morro que despenca e a cada torneira que seca.
Uma saída
Muita gente já sugeriu o que deveria ser feito a respeito da atual crise de abastecimento de água. É consenso, pelo menos entre os técnicos, que as perdas no sistema de distribuição devem ser reduzidas, a vegetação nativa das bacias de captação dos reservatórios deve ser recuperada, e todo esgoto deve ser coletado e tratado possibilitando o reuso da água.
Tenho uma modesta contribuição.
“É duro ver empresas de limpeza urbana lavando calçadas e particulares fazendo o mesmo com seus carros durante uma estiagem, bancando o Nero enquanto Roma pega fogo.”
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Concessionárias como a SABESP deveriam pagar uma taxa por metro cúbico (m³) de água captada dos reservatórios. A taxa seria duplicada para cada m3 perdido ao longo do sistema de distribuição, esse valor punitivo não podendo ser transferido ao consumidor final. Assim a água perdida por ineficiência do sistema passaria a ter um valor que incentivaria a redução de perdas.
A arrecadação dessa taxa deve suprir tão somente três finalidades: 1) compra de terras em áreas de mananciais visando sua transformação em unidades de conservação; 2) recuperação da vegetação em áreas de proteção de mananciais, margens de rios e nascentes; e 3) pagamentos a proprietários de terras que sejam produtores de água e suprem mananciais de abastecimento (nos passos do Projeto Oasis, da Fundação Grupo Boticário).
Isso implica em maior custo para o consumidor? Talvez, mas o fato é que ninguém valoriza o que é de graça ou barato demais. Água mais cara seria um estímulo ao consumo consciente. É duro ver empresas de limpeza urbana lavando calçadas e particulares fazendo o mesmo com seus carros durante uma estiagem, bancando o Nero enquanto Roma pega fogo.
O El Niño talvez traga alívio para esta estiagem, mas outras certamente virão. Será que daqui a poucos anos estaremos falando, de novo, em volumes mortos e agências reguladoras desreguladas?
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