Na Europa a natureza intacta é cada vez menor, os espaços virgens praticamente deixaram de existir e a pressão sobre os que ainda contam a verdadeira história é realmente enorme. Se somarmos a esta equação o fenômeno turístico e imobiliário associado às temperaturas do sul europeu e aos mais belos areais, percebemos que apenas subsistem pequenas amostras do que a Europa poderia ser, as suas paisagens, a sua natureza, a sua cultura, a sua essência.
No Sudoeste da Europa está Portugal e no Sudoeste de Portugal está a Costa Alentejana e Vicentina, que corresponde ao pedaço de Europa continental mais próxima do Brasil – e talvez por isso seja tão bela! Esta costa atravessa duas regiões, o Alentejo e o Algarve, e é tão diferente do Algarve tradicional quanto o Atlântico é diferente do Mediterrâneo. Estes mais de 110 km de litoral encontram-se protegidos pelo Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina e são hoje uma costa selvagem, composta por dezenas de praias de todos os tamanhos e feitios, aninhadas entre falésias, dunas, rochas e uma vida natural realmente rica e inspiradora.
O turismo chegou recentemente a esta costa e ainda assim em doses muito moderadas. A oferta turística é limitada, como é limitada a possibilidade de construção. Assim, antigas casas de agricultores e pescadores foram recuperadas, ampliadas e reinventadas para albergar os visitantes. Estas, juntamente com restaurantes, empresas de atividades e esportes de natureza, desenvolveram uma cultura de trabalho conjunto que resultou na implementação de uma grande rota pedestre com 350 km, que atravessa toda a região unindo, a pé, os vários agentes e atrativos turísticos.
Em estreita parceria com as entidades públicas do ambiente, do turismo e de gestão local, a trilha de longo curso “Rota Vicentina” foi lançada em 2012; é ainda um projeto recente e em plena afirmação, mas já com a certeza de que veio para ficar. Hoje reúne mais de 100 micro-empresas familiares numa rede de trabalho que pretende afirmar o Sudoeste de Portugal como destino internacional de turismo de natureza, garantindo a sua sustentabilidade econômica, social, cultural e, sobretudo, ambiental.
A opção foi fazer duas trilhas complementares: a Trilha dos Pescadores, que segue sempre junto à costa e aproveita os caminhos estreitos que os pescadores usam até hoje para aceder às praias e pesqueiros, e o Caminho Histórico, um itinerário rural que percorre as principais vilas e aldeias num percurso que foi utilizado historicamente por locais e peregrinos, alguns provenientes do Cabo de S. Vicente (Finisterra portuguesa!) em direção a Santiago de Compostela, na vizinha Espanha.
Ecoturismo com cultura
“Os turistas são atraídos pela beleza da costa selvagem e acabam rendidos à cultura serrana.”
|
Os turistas são atraídos pela beleza da costa selvagem e acabam rendidos à cultura serrana. Esse é o princípio que pretende chamar os que não se desesperam pelos dias de sol e idílicos mergulhos nas povoadas praias de Agosto; os que procuram a autenticidade cultural que o Alentejo e o interior do Algarve oferecem, mas com vista, cheiro, som, sabor e toque de mar, como só quem caminha pode apreciar. São estes que poderão sustentar as empresas locais durante todo o ano, hoje tanto quanto daqui a dez, vinte ou cinquenta anos.
Na escolha do traçado muitos critérios foram ponderados: beleza das paisagens e dos caminhos, proteção de trilhas secundárias, autorizações, praticabilidade técnica, apoio da oferta turística, proximidade com os habitantes, etc. Este foi um processo duro e em permanente evolução, que vai sendo avaliando em cada momento, hoje com o contributo inestimável dos caminhantes.
Redução de impacto
O primeiro estudo de incidências ambientais diz-nos que as trilhas marcadas não têm impacto ambiental negativo, prevendo-se até que o mesmo possa ser positivo, pelo efeito de sensibilização e combate ao pisoteio livre. Para isso, contribui uma marcação exemplar, que no caso da Rota Vicentina é hoje assegurada pelos padrinhos das etapas, pessoas e instituições voluntárias que cuidam da sua etapa e ajudam a equipe central a resolver problemas e falhas na sinalização, que vão surgindo pontualmente e sendo reportadas pelos próprios caminhantes.
Segundo, José Pacheco, Diretor do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e da Costa Vicentina, “A Rota Vicentina veio trazer uma dimensão de usufruto, visibilidade e sensibilização que são muito úteis à conservação da natureza e da biodiversidade. O Instituto de Conservação da Natureza e Florestas de Portugal defende o usufruto regrado das áreas protegidas em parceria com os agentes privados que partilhem dos mesmos interesses de desenvolvimento sustentável. Trata-se de um excelente exemplo de ordenamento a favor da economia local e da conservação da natureza”.
O objetivo de sensibilizar a população, os usuários, as empresas e as instituições para práticas essenciais ao desenvolvimento da Rota e da região, bem como da sua proteção ambiental, tem sido prioritário. Hoje, algumas escolas do entorno começam a trabalhar este tema de forma autônoma e o projeto começa a assumir contornos de transversalidade e unificação de toda a região, seus setores, agentes e interesses. A visibilidade que o projeto dá à Costa Sudoeste lusa vai trazendo visitantes menos informados (no meio de uma esmagadora maioria que visitou dezenas de outros parques naturais) mas também esses vão sendo contagiados por uma onda de cultura conservacionista que vai progredindo entre todos e que, no médio prazo, defenderá os valores naturais como seus.
Clique nas imagens para ampliá-las e ler as legendas | ||
Promover a Rota junto do alvo certo é crucial para não atropelarmos os nossos objetivos, ainda que o retorno seja mais lento e moderado. O “visitante certo” vai querer adquirir os produtos e serviços de que a região já dispõe, vai partilhar a sua experiência e garantir novos “visitantes certos”. A comercialização sustentável é um desafio constante que traduzirá, no final, o sucesso ou insucesso do projeto: o equilíbrio entre a oferta e a procura em um mercado livre e em constante mutação, onde o poder se concentra cada vez mais nos distribuidores, requer um investimento e monitorização constantes, se em causa estiver a sustentabilidade de um parque natural.
Gestão privada
A responsabilidade da gestão e promoção da Rota Vicentina é hoje de uma entidade privada, a Associação Rota Vicentina, que tem na sua gênese a dependência absoluta das contribuições dos inúmeros agentes de toda a cadeia de valor. Apesar de ser um modelo pouco comum, ele tem garantido a resistência do projeto a fatores diversos que são, no limite, as variáveis do mercado. O futuro será centrado na coordenação e afinação do papel de cada um desses agentes, numa espécie de jogo de marionetes em que as regras são claras e votadas por todos.
Instituições públicas, ambientalistas, empresários, moradores e turistas unidos em um interesse comum: garantir boas condições de visitação a esta costa sem por em risco o que a torna tão especial: o meio ambiente conservado e sadio. Este chavão guia os esforços para o desenvolvimento sustentável nos quatro cantos do mundo. Mas como ir além do tal quase? Como em tudo, falamos de pessoas, de processos de contágio de energia e esperança, numa linguagem que é tão humana quanto universal.
O resultado em cada momento resulta do esforço permanente de muitas pessoas, não só na concretização das diversas dimensões técnicas e comerciais do projeto mas sobretudo no tal processo de liderança e contágio. Mais do que num qualquer produto de mercado, um projeto comunitário e inovador como a Rota Vicentina tem que ser um caminho sem volta, custe o que custar e doa a quem doer. Neste texto ficaram realçados alguns méritos do projeto, mas as limitações e fragilidades são igualmente dignas de partilha e reflexão. Porque sem elas, o homem poderia mesmo salvar o planeta!
Vídeo
Saiba Mais
Rota Vicentina
Leia Também
Trilha Transcarioca: da ideia ao grande mutirão para sinalizá-la
Waitakubuli: a trilha de longo curso de Dominica
Tirar o lixo da trilha não impede o lixo que vem de longe
Leia também
Garimpos ilegais de ouro podem emitir 3,5 toneladas de carbono por hectare e concentrar mercúrio no solo
Pesquisadores da USP e colaboradores analisaram amostras de áreas de mineração em quatro biomas, incluindo Amazônia →
Esperançar com Arte e Cultura: Um chamado à ação climática
Uma fotografia de uma floresta em chamas, um documentário sobre povos indígenas ou uma música que fala de destruição ambiental são mais que expressões artísticas; são convites à ação →
Fim dos lixões, uma promessa reciclada
A implementação de uma política ambiental robusta, focada no encerramento definitivo dos lixões, não é apenas uma imposição normativa, mas um imperativo ético e estratégico →