Em 2017 fui ao Parque Nacional da Serra do Cipó para coleta de solos e variáveis ambientais. Ainda no início do mestrado, não sabia muito o que esperar de um ambiente campestre e pouco divulgado na comunidade científica. Minha primeira impressão ao ver a paisagem ampla e amarelada foi a de um local inóspito, mas eu mal sabia que a vida se escondia na verdade nos interstícios das rochas, aqui e ali. Rochas essas que saltam do chão, em variados tamanhos e formas, espantando os que passam por aquelas bandas de Minas Gerais. Andando por oito dias naquelas terras peculiares, desvendei a Serra do Cipó e o verdadeiro potencial das ondulações suaves das suas montanhas, que apesar de não tão altas, são incrivelmente diversas – em cores, solos, texturas e aromas.
A Serra do Cipó fica localizada no sul da Cadeia do Espinhaço, uma cadeia de montanhas que se estende de Minas Gerais até a Bahia, por aproximadamente 1200 km. Nas áreas mais baixas temos a predominância do Cerrado e nas áreas mais altas (acima de 900 m), temos um tipo de vegetação chamada de ‘campos rupestres’. Os campos rupestres são, grosso modo, um mosaico de diversas fisionomias que contam com uma abundância de gramíneas, herbáceas e arbustos, geralmente expostos em afloramentos rochosos de quartzito e arenito. As rochas dos campos rupestres são em geral muito resistentes aos processos de erosão e também muito antigas, podendo datar do Pré-Cambriano. Sendo assim, os solos associados à campos rupestres costumam ser muito rasos, arenosos, ácidos e com baixíssimos níveis de nutrientes.
Sendo resultante da combinação de uma evolução tão rápida quanto lenta, os campos rupestres apresentam uma diversidade vegetal incrivelmente alta. Já foi estimada a presença de mais de 5000 espécies de plantas, e esse número é possivelmente subestimado. Apenas na Serra do Cipó, uma amostragem já verificou a presença de 1590 espécies, fazendo deste local um grande centro de biodiversidade terrestre no Brasil.
Devido à história muito antiga dessas rochas, a estabilidade climática propiciou um ambiente para que essas espécies vegetais pudessem permanecer por longos períodos, definindo a paisagem desses locais e os inserindo no que os botânicos e ecólogos chamam de “OCBIL” (do inglês old-climatically buffered infertile landscapes). Esses ambientes são classificados como muito antigos, inférteis, e intrinsecamente associados à estabilidade do clima e das rochas.
Ameaças
Dentre as ameaças que assolam os campos rupestres estão a mineração, os incêndios antrópicos, a extração de madeira, a construção de estradas, a invasão por espécies exóticas e a colheita de plantas para fins ornamentais e artesanato. Essas perturbações antrópicas começaram um pouco ‘tarde’ se comparado às das florestas, apenas no século XVIII, sendo associadas principalmente a mineração de ouro e pedras preciosas. Devido ao solo raso e pobre, a agricultura, no entanto, não está entre as maiores preocupações no local. O turismo desordenado e a expansão urbana, por outro lado, ganhou muita força nos últimos tempos e se tornou um outro obstáculo à conservação do Cipó, principalmente pela pequena distância de Belo Horizonte (100 km).
No que se diz respeito à mineração, os recentes desastres de Brumadinho e Mariana (também em Minas Gerais) apenas confirmam a negligência administrativa para com o meio ambiente neste país. Não apenas estes, mas muitos outros rompimentos de barragens já levaram à degradação ambiental em diversos pontos de MG (Itabirito, em 1986; Macacos, em 2001; Zona da Mata, em 2003; Zona da Mata (Miraí) em 2007; Itabirito, em 2014).
E a Serra do Cipó, infelizmente, não está imune ao problema: a região vem sendo invadida por mineradoras, como as instaladas em Conceição do Mato Dentro e Morro do Pilar. Ambas as áreas são consideradas prioritárias para a conservação. Um registro de 2017 mostrou também que o rompimento de uma barragem de uma fazenda na Serra do Cipó levou rejeitos e lama para o rio Picão (afluente dos rios Preto e Santo Antônio), o qual fica localizado dentro da Área de Proteção Ambiental Morro da Pedreira.
As ameaças antrópicas para os campos rupestres são ainda potencializadas, uma vez que ali ocorrem espécies endêmicas e de distribuição geográfica restrita, fazendo com que sejam muito mais suscetíveis à extinção. Ainda assim, falta uma legislação específica para controlar a perda da biodiversidade nessas áreas. As lacunas no conhecimento sobre restauração e regeneração natural criam maiores impedimentos para a conservação, fazendo-se necessários uma investigação maior e estudos mais completos sobre a vegetação e sobre possíveis técnicas para restauração de áreas já danificadas, além da criação de mais parques e áreas de proteção ambiental.
Para mostrar a importância dos campos rupestres de uma forma mais palpável, é possível calcular os valores dos serviços ecossistêmicos que são prestados por esses ambientes. Estudos já mostraram que, apenas na Serra do Cipó, o valor relacionado aos serviços ecossistêmicos providos pela diversidade de plantas pode chegar a 25.26 milhões de dólares por ano. Alguns desses serviços são relacionados à alimentação (polinização, controle de pragas), provisão de água, controle de erosão, provisão de plantas medicinais e compostos farmacêuticos, além dos valores culturais associados à essas terras e essas comunidades. E claro, além dos serviços que vem da diversidade de plantas (relacionada ao valor acima), existem também uma infinidade de outros organismos que podem entrar nessa conta, como bactérias do solo e fungos.
É uma pena que sejamos obrigados a atribuir um valor monetário aos serviços ambientais para conseguirmos estimar o que esses ecossistemas nos provêm, mas muitas vezes não há outra saída. Quando não é fácil explicar a importância da biodiversidade apenas pela comoção, nos resta calcular seu valor real na economia. Hoje em dia, a valoração de serviços ecossistêmicos se faz essencial para a conservação, uma vez que permite que a tomada de decisões seja mais coerente com as necessidades de preservação de determinado local.
Apesar de ainda termos um longo caminho na jornada de conservação da Serra do Cipó e dos campos rupestres como um todo, eu não posso deixar de querer espalhar essa notícia. A notícia de que nós temos, em pleno Brasil central, um ecossistema tão diverso quanto negligenciado. Um ecossistema não tão famoso quanto às nossas lindas florestas, mas que merecem a mesma atenção e o mesmo apreço. Dos meus poucos relatos, eu só posso deixar o que vi com meus próprios olhos: um pedaço magnífico do Brasil que poucos conhecem mas que precisa de mais atenção. No momento precisamos de esforços também no sentido de aumentar o conhecimento sobre os campos rupestres, para que assim haja uma maior mobilização por esses ecossistemas fantásticos.
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Ambiente pouco conhecido e pouco divulgado na comunidade científica? Negligenciado?
Vai me desculpar, mas acho que a autora chegou meio atrasada…
Belo texto, muito bem escrito. A serra do espinhaço merece toda a nossa atenção e cuidado.