É comum que nos estudos de conservação e ecologia da paisagem – ciência interdisciplinar que estuda a paisagem e os fatores ecológicos associados –, as condições ambientais e ecológicas mais estudadas para avaliar distúrbios causados pelo homem são o uso e cobertura de solo, efeito de borda, cobertura vegetal e presença de espécies exóticas invasoras. No entanto, a chamada bioacústica também pode ser eficiente para entender como está aquela paisagem.
A paisagem acústica é composta pelos sons que são emitidos em uma paisagem, como sons bióticos (biofonia) – como as vocalizações dos animais –; geofísicos (geofonia), como o som do vento, chuva e das ondas e; antrópicos (antropofonia), ou seja, gerados pelo homem. A ecologia da paisagem acústica se aproxima da ecologia da paisagem e deve ser considerada um ramo desta área do conhecimento ainda em construção. O estudo da bioacústica é relativamente novo e vai além de estudos focados em espécies que emitem vocalização (sinais acústicos), possibilitando compreender a biodiversidade, que é composta de várias espécies que podem emitir sinais acústicos em determinado ambiente. O uso de gravadores autônomos, os gravadores que são programados e ficam no campo gravando o som do ambiente e a utilização de análises automáticas em softwares, sem a necessidade de análise manual das gravações, estão sendo cada vez mais utilizados, podendo fornecer valiosas formas de registrar a biodiversidade e identificar pontos críticos e ameaças a esta.
A bioacústica tem sido muito utilizada em estudos sobre aves e mamíferos, para os quais as vocalizações são importantes para defesa territorial, comunicação entre indivíduos da mesma espécie (intraespecífica) e entre indivíduos de espécies diferentes (interespecífica), além da atração de parceiros sexuais e orientação durante deslocamento de grupos. O repertório de vocalizações é submetido a pressões de seleção e pode ser alterado em situações estressantes, como é o caso da poluição acústica, causada principalmente por ação humana.
Os gravadores autônomos disponíveis no mercado são principalmente o AudioMoth, produzido pela empresa europeia Open Acoustic Devices, e o Song Meter, produzido pela empresa americana Wildlife Acoustics. Este último é atualmente o mais moderno. Existem Song Meters específicos para capturar vocalizações de aves e de mamíferos, incluindo morcegos, cujas vocalizações são compostas de ultrassons. Os espectogramas [visualização das gravações] são gerados por meio de softwares a partir das gravações feitas em campo, os quais nos espectogramas nos permitem detectar padrões nas vocalizações de diversas espécies que vocalizam em uma determinada área de estudo (Figura 1).
Percorrer percursos de distâncias lineares [transecções], com velocidade relativamente constante, para realizar levantamento de espécies e sua abundância por meio de observações e fazer uso de playback – emissão da vocalização de determinada espécie para atraí-la ao local no qual se encontra o pesquisador, permitindo sua detecção – são métodos tradicionais e muito utilizados em estudos com aves e mamíferos, principalmente primatas. Além disso, para aves e mamíferos é muito utilizado o método de captura-marcação-recaptura, no qual os animais são capturados, individualmente marcados e liberados em seguida.
Espécies que apresentam movimentos mais restritos e comportamentos mais silenciosos são de difícil visualização em transecções, sendo importante o uso de playback. Entretanto, a capacidade cognitiva de algumas espécies permite, após certo tempo, a distinção entre playback e uma vocalização de um indivíduo de sua espécie, e assim acabam não respondendo mais. Adicionalmente, é preciso fazer uso controlado do playback para não estressar os animais, particularmente os muito territoriais. Os três referidos métodos geralmente exigem grande investimento de tempo e recursos investidos em campo, principalmente o de captura-marcação-recaptura. Desta forma, é importante o uso de ferramentas menos onerosas e que possam acessar a biodiversidade mais rapidamente, como é o caso dos gravadores autônomos.
Estudar a distribuição de espécies e detectar uma espécie na natureza pode ser difícil e novas tecnologias, como o uso de gravadores autônomos, é uma importante ferramenta que contribui para estudos científicos, principalmente no caso de mamíferos e aves, para os quais a vocalização é tão importante para a comunicação entre indivíduos da própria espécie como para indivíduos de espécies diferentes.
Índices
Existem diversos índices bioacústicos utilizados nas análises dos estudos em bioacústica e para estas análises é necessário utilizar uma combinação de índices, pois um único índice bioacústico não é capaz de explicar os padrões da paisagem sonora. Um índice bastante utilizado é o índice de complexidade acústica (ACI), que é capaz de estimar uma quantificação direta das vocalizações de aves e é útil para o levantamento da diversidade destas em uma determinada área, sendo utilizado para estimar quantitativamente o número de espécies e número de vocalizações por espécie. Um exemplo do uso deste índice foi realizado em uma área de floresta no Parque Nacional Tuscan-Emilian Apennine, na Itália, que possui pouca perturbação antrópica, mas com rota de aviões que interferia negativamente nas vocalizações de aves. Os pesquisadores Pieretti, Farina e Morri (2011) foram capazes de encontrar, por meio do índice ACI, um impacto negativo do ruído dos aviões para a avifauna. O índice ACI é uma aproximação da complexidade acústica das aves e ficou menor quando havia interferência do ruído de aviões, ou seja, as aves passaram a vocalizar menos quando os aviões passavam.
No século XVIII e XIX, grandes naturalistas e cientistas aprimoraram conceitos e fizeram grandes descobertas no estudo da ecologia. Na ecologia contemporânea, não há dúvida que ainda existem muitas questões científicas a serem abordadas e hipóteses a serem testadas. Com o grande avanço da tecnologia, talvez a principal inovação atual da ecologia seja o uso de novas ferramentas de coleta de dados mais rápidas, menos onerosas, assim como análises cada vez mais robustas e integradas, que permitam avançar no conhecimento e subsidiar ações mais direcionadas em favor da conservação da biodiversidade e do uso sustentável dos recursos naturais. Destaca-se também, a importância da interdisciplinaridade na ciência como um todo, que nos faz enxergar a natureza com múltiplas visões de diferentes áreas do conhecimento, assim como a transversalidade. Essas talvez sejam grandes chaves para refletirmos e discutirmos ciência, não apenas no presente como no futuro.
Agradecimentos: Agradecemos à Dra. Laurence Culot, Dra. Mariana Vale e Dra. Helena Bergallo pela revisão de alguns dos trechos deste artigo. M.Z. agradece à bolsa de Pós-Doutorado Nota 10 da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). M.A.S. Alves agradece à FAPERJ pela grant de pesquisa (CNE, # E-26/201.126/2022), ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (bolsa PQ e grant, #308.615/2022-0) e à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (bolsa de produtividade Prociência).
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Excelente ver uma matéria divulgando ia ferramenta ainda tão recente que promete seguir avançando para estudos de diversos fins. Usávamos para estudo de comportamento, como bem revisado na matéria, e hoje já se pode aplicar para avaliação ambiental, e até respostas ao estresse no próprio sinal acústico emitido e.g. em ou perto de centros urbanos. Em Balbina, AM, temos feito diversos estudos com a metodologia, dêem uma olhada nos artigos de Anderson Bueno, Thiago Bicudo (aves), Paulo Bobrowiec (morcegos), Igor Kaefer (anuros) e Carlos Peres multitaxa.
Parabéns Maria Alice, Mariana, Marina e demais do grupo. Saudações remotas e saudosas, Marina.