Ao receber a incumbência de escrever sobre as Caatingas, tive medo. Como eu, filho do litoral, nascido entre os mares de morros e a exuberância da Mata Atlântica, poderia conseguir expressar a “majestade branca” expressada no nome por nós incorporado dos povos Tupi, do Caa – traduzido como mato/matas – e Tinga tradução de branco, relacionado ao aspecto de suas árvores durante o período seco, quando a maioria das árvores perdem suas folhas e os troncos esbranquiçados e brilhantes dominam a paisagem, em contraposição as matizes de verde durante o período chuvoso. A Caatinga não é sempre branca e nem sempre tão seca, a Caatinga explode de vida.
Antes que pudesse expressar a riqueza de sentidos, histórias e vidas, precisava me colocar no papel do “outro”, daquele que olha para as caatingas e crê que seja o sinal da desolação, sem movimento, onde a morte ronda entre sombras e lamentos. Encontrei no naturalista Karl Friedrich Martius, companheiro de viagem de Johann Baptist von Spix, autores do clássico Viagem pelo Brasil, a primeira impressão de quem pela primeira vez adentrava aquele bioma
“Em toda a parte somente se observa o quadro desolador da lenta destruição. Assim nós vimos essas caatingas medonhas quando, com numerosos companheiros, as atravessamos nos primeiros meses do ano de 1818, entre o rio Paraguaçu e o rio de São Francisco. Durante cinco dias nenhuma fonte, nenhum orvalho ofereceu refrigério aos viajantes extenuados; acossados pelo medo e terror da morte, percorremos dia e noite através da solidão abrasada, e invadidos por pressentimentos ameaçadores, parecia-nos que a fantástica brenha ameaçava arremessar-se sobre nós: uma estranha assombração causada pela miragem.”
Esta visão desoladora resume a decepção de alguém que, passando primeiro pela Mata Atlântica, apenas atravessava as Caatingas, sem, contudo, lhe dar sua majestade no meio em que se colocou. Entender não significa concordar, e eu entendo Martius dois séculos depois, mas suas impressões iniciais não traziam a compreensão de suas minúcias. Para um lugar majestoso é preciso conhecer os detalhes.
Caatinga é resiliência
Caatinga são os primeiros registros humanos nas Américas, é Serra da Capivara no Piauí. São os registros do Boqueirão da Pedra Furada, em São Raimundo Nonato, que descrevem ao menos 50 mil anos de história da interação humana no ambiente, de um Brasil de superlativos, quando a Caatinga era povoada por gigantes como as preguiças terrícolas (Eremotherium sp), manadas de mastodontes (Haplomastodon waringi), tigres-dente-de-sabre (Smilodon populator), ursos (Arctodus sp) e outros animais fantásticos. Mas não só no Piauí, mas em toda extensão da Caatinga. Seguindo pelo Piemonte da Chapada Diamantina, pelas planícies do rio Jacaré em direção a Irecê/BA e ao rio São Francisco, com a história registrada nos desenhos da arte rupestre nos paredões e abrigos rochosos, com até 12 mil anos. São os registros de festas, danças, sexo, caça, animais e outras coisas que, sem entender o pensamento daqueles humanos, perdemos seus significados.
Caatinga é resistência humana. São os povos indígenas resistindo há mais de 500 anos de genocídio. Foi a Guerra dos Bárbaros, denominação errônea e preconceituosa dada pelo invasor à luta contra a expansão das fronteiras coloniais, quando os sertões, entre 1651 e 1704, foram palco de conflitos dos povos originários e os invasores portugueses. A luta dizia respeito à defesa da cultura, histórias e aos seus mundos. Duas grandes frentes de batalhas foram documentadas, entre a Caatinga e o Recôncavo Baiano (1651-1679) e as Guerras do Açu (1687-1705) pelas terras do Rio Grande do Norte e Ceará. Mas eles resistem, vivem e permanecem na luta pela terra dos sertões.
Caatinga é história. Caatinga de Antônio Conselheiro e o massacre de Canudos, quando tropas de uma recém-instalada República, de caráter militar, massacrava camponeses para reafirmar seu poder, descritos no relato detalhista e revoltante que nos deixou Euclides da Cunha em sua obra-prima “Os Sertões”. Andar pelos sertões hoje em dia é escutar das populações campesinas suas histórias da guerra, das visagens dos soldados se organizando ou em descanso nas sombras dos umbuzeiros, do mito do beato Conselheiro.
É história de domínio e opressão dos coronéis que impunham seu poder sobre os povoados, mas também de resistência contra esses poderes, do cangaço, dos bandos armados, de Lampião, Maria Bonita, Corisco e Dadá, que ora eram vistos como heróis, ora como algozes, ora como joguete dos coronéis. O cangaço foi produto de um meio.
Caatinga é vida, é majestade nas mais de 1.000 espécies botânicas, sendo mais de 300 exclusivas deste bioma e com 1/4 delas com algum grau de ameaça de extinção. Caatinga é a imponência do Mandacaru (Cereus jamacaru) e seus largos troncos nas brenhas do sertão, são os cabeças-de-frade (Melocactus sp) em flor, são os campos de bromélias, por vezes únicos locais de reservatório de água para os pequenos animais, são as orquídeas e a beleza desvelada por Burle Marx nas suas expedições paisagísticas por Morro do Chapéu/BA e em outros sertões mais. Caatinga é a palmeira de Licuri (Syagrus coronata), constantemente visitada por papagaios e maritacas e sua gritaria característica ou ainda pela rara arara-azul-de-Lear (Anodorhynchus leari), endêmica dos sertões do Raso da Catarina. Caatinga é a árvore sagrada do sertanejo, o umbuzeiro (Spondias tuberosa), de sombra e umbus, alimento nos sertões.
Caatinga é bicho. São mais de 1.300 espécies e pelo menos uma quarta parte dela exclusiva desses sertões. São os “gatos brabos” do sertanejo, de onças-pintadas e pretas (Panthera onca), pardas/suçuaranas (Puma concolor), jaguatiricas (Leopardus pardalis), gatos-mouriscos (Puma yagouaroundi), gatos-do-mato-pequeno (Leopardus tigrinus) e o gato-maracajá (Leopardus wiedii). São os tatus, o peba (Euphractus sexcinctus), o galinha (Dasypus novemcinctus), o rabo de couro (Cabassous unicinctus), o china (Dasypus septemcinctus) e o emblemático bola (Tolypeutes tricinctus). São as preguiças (Bradypus variegatus) e tamanduás, o bandeira (Myrmecophaga tridactyla) e o mirim (Tamandua tetradactyla). São pássaros e suas revoadas, a asa branca (Patagioenas picazuro), o cancão (Cyanocorax cyanopogon) e o carcará (Caracara plancus) (pega, mata e come, carcará não vai morrer de fome, diria a música de João do Vale). São as tão ameaçadas araras azuis, a ararinha (Cyanopsitta spixii) e a de Lear (Anodorhynchus leari), com seus gritos estridentes ecoando entre os paredões de arenito. São os pequenos pássaros canoros, camuflados nas cores secas da Caatinga, entre galhos e ramas. São as mais de 40 espécies de lagartos, 9 espécies de cobra-cegas, 114 serpentes (11 delas endêmicas do bioma), quatro quelônios, três espécies de jacaré e 50 espécies de anfíbios. É a enigmática Amphisbaena arenaria, cobra-cega de vida fossorial, são os pequenos calangos do gênero Tropidurus sp ou Phyllopezus periosus, o maior geco (lagartixa, osga) descrito para o Brasil.
Caatinga também são peixes, num total de 425 espécies. São peixes como o Nego D’agua (Hyphessobrycon negodagua) da Chapada Diamantina, o Pintado do São Francisco (Pseudoplatystooma corruscans), o Cascudinho do Jaguaribe (Parotocinclus spilurus) ou os Peixes-das-Nuvens dos gêneros Hypsolebias e Cynolebias. Das 34 espécies ameaçadas de extinção do bioma, 20 são espécies de Peixes-das-Nuvens, os peixes que os sertanejos acreditam cair nas primeiras chuvas da invernada e que povoam os brejos temporários. Caatinga é a resiliência dos Peixes-das-Nuvens, com seus ovos enterrados na terra e resistindo períodos secos que perduram anos. É o espírito sertanejo.
A Caatinga é o espaço de luta e identidade, de humanos e não-humanos, de sensações, de medos, sonhos e vida. Euclides soube resumir numa única frase o que é a Caatinga e o que são os que a habitam, pois, “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”.
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