A Área de Proteção Ambiental (APA) da Escarpa Devoniana, que passa por 12 municípios do Paraná do sul ao norte pioneiro do estado, possui características biológicas, geográficas, históricas e culturais que lhe conferem extrema peculiaridade. Como bióloga, tenho convicções bem definidas sobre a importância de sua manutenção (e até mesmo ampliação) para garantir a proteção da biodiversidade, o fornecimento de serviços ecossistêmicos, além de auxiliar no desenvolvimento econômico da região dos Campos Gerais por meio do ecoturismo e da produção de agricultores que dela retiram seu sustento.
Enquanto docente de um curso de Licenciatura em Ciências Naturais, essas convicções se tornam praticamente um apelo, embasado, inclusive, nos objetivos específicos desta categoria de Unidade de Conservação, que inclui, além da proteção dos recursos bióticos e abióticos, a promoção da educação ambiental e a integração da população nas práticas conservacionistas.
A riqueza natural da região dos Campos Gerais pode ser utilizada como ambiente para o ensino de diversas disciplinas. Os chamados “espaços não formais de aprendizagem” incluem locais e processos diferenciados por meio dos quais é possível adquirir e compartilhar novos saberes e valores.
Atualmente, as práticas realizadas em espaços não formais são fortemente estimuladas, tanto nos cursos de graduação quanto no ensino básico. Por meio da busca constante de uma convivência saudável do homem com a natureza, procura-se promover discussões que levem a sensibilização sobre as questões ambientais e também a articulação de trabalhos práticos que permitam mudanças de comportamento. Elimina-se, assim, a antiga visão de domínio humano sobre o ambiente, propagada por vários séculos.
Esta perspectiva de convivência harmoniosa tomou corpo na década de 1960, com a publicação do livro ‘Primavera Silenciosa’ de Rachel Carson, quando a ideologia de progresso ilimitado passou a ser questionada, assim como os efeitos danosos de ações humanas contra o ambiente. Na década seguinte, com a publicação de ‘O Princípio da Responsabilidade’, do filósofo Hans Jonas, chamou-se a atenção para o papel do ser humano como único com capacidade de entendimento e liberdade para agir com responsabilidade sob as demais formas de vida. Ao ignorarmos estes preceitos éticos tão fortes, colocamos em ameaça nossa existência futura, bem como a das próximas gerações.
Percebe-se aí a singularidade da APA da Escarpa Devoniana enquanto cenário para construção de conceitos de forma interdisciplinar, buscando abranger, além das premissas teóricas fundamentais, o arsenal de práticas e estratégias que permitam ao professor promover um processo de aprendizagem significativa com seus alunos.
Ganham espaço todas as atividades que possam ser realizadas fora da sala de aula, onde a natureza se torna a vitrine de situações (boas e ruins) a serem discutidas para gerar conhecimento: desde a análise dos contrastes na paisagem, do relevo diferenciado, a luta das espécies nativas para sobreviver em meio às exóticas (como o Pinus), a existência de remanescentes de Cerrado em meio a ambientes fragmentados, os ecótonos de campo e mata, até a poluição e o desmatamento de áreas infringindo a legislação e muitas vezes prejudicando a capacidade de resiliência de espécies e recursos dos ecossistemas.
Considerando a relevância de todos estes aspectos, não é possível aceitar um projeto que diminua em 68%, ou dois terços, a área da APA da Escarpa Devoniana. A área concentra remanescentes importantes de dois ecossistemas associados à Mata Atlântica que foram altamente pressionados por décadas de exploração irresponsável. Estima-se que nos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul – onde predominaram em relação a outras partes do Brasil – 97% dessas formações vegetais já tenham sido suprimidas ou alteradas. Sobrou pouco de mata nativa em bom estado de conservação.
E recusar esse projeto de lei não se trata de ir contra o progresso. Pelo contrário, ele deve acontecer, mas comprometido com a busca pela sustentabilidade. No momento em que a crise ambiental atinge seu ápice, que os recursos naturais se tornam escassos e que as políticas públicas muitas vezes caminham na contramão, não é aceitável privilegiar o interesse econômico de poucos ignorando o direito constitucional de todos de viver em um ambiente saudável e ecologicamente equilibrado.
Defendo que a grande função educacional da APA da Escarpa Devoniana seja a de sensibilizar a sociedade, para que ela se comprometa com a preservação, conservação e recuperação do meio ambiente, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida de todas as espécies e garantindo o direito das gerações vindouras.
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É incômodo o momento atual, em que o oportunismo está em alta, representado por uma frente ampla de iniciativas para enfraquecimento da legislação ambiental, agregada a tentativas sucessivas de desafetação de Unidades de Conservação em todo o país. O cenário demonstra claramente a carência de formação conservacionista da população em geral. Deveria ser muito mais reticente a nossa percepção de perda envolvendo os descalabros que políticos e atores do executivo procuram impor à sociedade. Uma pena que orientações de educação para a conservação não sejam aplicadas aos que procuram incessantemente degradar e destruir áreas naturais como se fossem descartáveis. Entraves ao desenvolvimento, que imaginam se sustente sem os resguardos mínimos que preceitos de conservação estabelecem. A bem da verdade, o desafio se mostra ainda maior, uma vez que, no caso desses atores em específico, a má índole e não a desinformação, é a maior barreira a ser transposta.