“Eles o chamavam de Pancho”. Eu escuto com atenção e incredulidade enquanto o cientista venezuelano Eduardo Álvarez Cordero continua a contar a história. “Pancho” não sabia ou se importava com seu novo nome. Ele era um filhote de harpia, a impressionante águia também conhecida como gavião-real, e havia nascido há alguns meses na floresta de Imataca, na Venezuela. Quando recebeu o carinhoso apelido, em 1991, Pancho havia acabado de escapar vivo de uma tragédia: a árvore onde ficava seu ninho havia sido derrubada por acidente, por um grupo de madeireiros que estavam abrindo caminho para a construção de uma estrada. Quando os homens viram o ninho, já era tarde demais. E, entre os destroços de galhos e folhas de árvores, estava uma pequena ave branca de olhos curiosos.
“Ele ainda era bem pequeno”, continua Eduardo. “Então eles o levaram de volta para o acampamento, e nós guiamos todo o processo de cuidado e alimentação do animal, até ele voltar para a natureza. Mas os madeireiros fizeram todo o trabalho.”
Era a primeira reabilitação de uma harpia selvagem de que se tinha notícia em todo o planeta. Um filhote da maior águia do mundo, alimentado e protegido pelos trabalhadores braçais que derrubaram seu ninho. Uma história impensável e corajosa, do tipo que Eduardo conhece — e vivenciou — aos montes.
Eduardo não é apenas um homem que conhece as harpias: tendo iniciado um dos maiores e mais antigos estudos sobre elas e participado da formação de vários especialistas em harpias do mundo, ele é um dos principais responsáveis por muito do que a humanidade conhece sobre esse fascinante animal. Atualmente professor na City College de Gainesville, Flórida, Eduardo trabalhou monitorando harpias na Venezuela e Panamá desde o final da década de 80, movido por um grave senso de urgência. “Havia apenas dois artigos científicos publicados a respeito das harpias em todo o globo, se conhecia muito pouco sobre elas. Não se sabia a localização de um único ninho em toda a Venezuela, eram animais difíceis de encontrar. E quando a população local as via, tendia a atirar nelas. Eu percebi que nós iríamos perder todas as águias muito antes de perdermos as florestas.”
Foi com o peso dessa compreensão que Eduardo começou seu doutorado, em 1988. E com a resolução pessoal de fazer alguma coisa para mudar os fatos. Quando é essa a urgência que move uma pessoa, descobrimos o quanto a criatividade humana pode ser vasta. “Eu encontrei um escalador profissional, que também se tornou um grande amigo. ‘Kike’ Arnal. Ele nos ensinou a escalar até um ninho. A primeira harpia que eu capturei e marquei, nós capturamos a partir do chão. Eu inventei uma armadilha, e uma maneira de colocá-la na árvore. E na primeira vez que alguém realmente subiu num ninho, bem… Isso é bem louco, mas nós utilizamos uma corda comum de fibra de cânhamo, o tipo que se usa para amarrar barcos grandes. Eu atirei a corda com um arco e uma flecha, e nós amarramos uma pessoa do outro lado. Nós não tínhamos arreios de escalada ou algo assim, então nós o puxamos com um jipe. Subimos a corda até o ninho, onde ele coletou os ossos de presas que precisávamos coletar. Então nós movemos o jipe para frente, para que ele descesse do outro lado.”
Era o princípio do que viria a se tornar o Programa Internacional para a Conservação da Harpia (iniciado na Venezuela). Era também o princípio de outra história impensável e corajosa, na qual um programa de ecoturismo constrói um cenário mais próspero para harpias, habitantes locais e as florestas das quais ambos dependem.
Ideias ousadas
É 2017, e no país em que antes não se conhecia nenhum ninho, hoje temos mais de cem. Os primeiros vinte e nove foram encontrados por Eduardo, que dedicou sua carreira a “livrar-se do carma” de ter sido uma criança com um estilingue hiperativo na década de 50. Em um esforço que envolveu a ajuda de alguns profissionais de campo e uma colaboração imensa da população local, Eduardo descobriu a localização de um ninho atrás do outro, tornando visíveis pela primeira vez as harpias que ninguém conseguia monitorar. A partir daí, as pessoas começaram a colaborar, fornecendo localizações, contatos e ajuda no campo.
O caso icônico de Pancho, a harpia criada por madeireiros, ilustra bem a ideia de Eduardo de que mesmo as pessoas mais improváveis podem se tornar aliados. “Eu era amigo de um madeireiro chamado Eduardo, e ele levava galinhas de casa. Um dia eu perguntei sobre o Pancho. Ele disse: ‘Pancho está me deixando louco. Não importa quantas galinhas eu traga de casa, se eu não depenar as galinhas, ele não desce pra comer.’ Isso era o que os pais dele faziam, então Eduardo tinha de depenar as galinhas, e os madeireiros colocavam em cima de um trator. Então a águia descia das árvores, pousava em cima do trator e comia. Se eles moviam o acampamento, Pancho os seguia. Então os madeireiros saíram da área, porque eles tinham de continuar o trabalho em outro setor da floresta, e Pancho foi abandonado.
Quando os madeireiros voltaram, ele estava mais velho. Eles disseram: ‘Nós vimos Pancho atacando alguns bugios, mas os macacos meio que espantaram ele.’ Mas finalmente ele foi visto carregando presas.
No que diz respeito à conservação da biodiversidade, Eduardo é uma pessoa de ideias ousadas. Se a colaboração com madeireiros para reabilitar um filhote ainda não te convenceu disso, talvez outros aliados do projeto convençam. “Muitos caçadores que haviam abatido harpias no passado se tornaram nossos aliados mais fortes. Alguns investiram muito de seus recursos escassos para cuidar de águias resgatadas.”
Quando fui entrevistá-lo, o objetivo era o de discutir outra ideia ousada relacionada a seu trabalho. Em seu fantástico artigo “O País onde alimentar passarinhos é crime”, Fábio Olmos sugere que um dos possíveis caminhos para a conservação de espécies ameaçadas está na propensão humana de pagar para ter experiências únicas e emocionantes envolvendo a vida silvestre. Olmos nos mostra o quanto o ecoturismo responsável tem proporcionado fotos e momentos de deslumbramento para seres humanos, em troca de dinheiro. Esse dinheiro, por sua vez, favorece não apenas a conservação dos animais e plantas, mas também movimenta as economias locais e coloca um novo valor — no sentido econômico — para a natureza. Nas palavras de Olmos: “Na pior das hipóteses, bichos são conservados porque são mais valiosos vivos do que mortos. Na melhor, há o salto civilizatório e eles passam a ser companheiros de nossa jornada neste planeta, com os mesmos direitos à existência.”
Seria possível salvar harpias através de iniciativas de ecoturismo que as integrassem à economia e à vida das pessoas que vivem próximas delas?
Vivendo com harpias
No Brasil, as harpias são cada vez menos numerosas, ocorrendo em cada vez menos lugares. Onde elas ocorrem, estão ameaçadas pelo abate e pela derrubada de florestas movida por setores econômicos como agropecuária e geração de energia. Para quem vive e trabalha próximo a elas, as harpias não são mais valiosas vivas do que mortas. Como é comum em casos de predadores coexistindo com pessoas, a ameaça de que harpias poderiam atacar crianças e gerar prejuízo ao se alimentar de animais como galinhas e leitões muitas vezes leva a conflitos compreensíveis. Não há casos registrados de harpias atacando crianças, eles só existem no imaginário popular. Mas o resultado desses conflitos, baseados na eventual captura de animais domésticos, é que as águias levam a pior. Sem que haja um benefício direto para a presença das harpias, a tendência é que esse cenário se mantenha até a inevitável extinção dos animais em todas as localidades em que existam pessoas. Pelo que Eduardo me diz, a situação na Venezuela não era muito diferente.
“Eu recebi uma ligação uma manhã, de um trabalhador que eu tinha conhecido na Represa Guri, na Venezuela. Ele havia atirado em uma harpia jovem a alguns quilômetros da casa de força principal. Quando eu perguntei por que ele tinha matado a águia, ele disse que havia se assustado com aquela grande ave empoleirada tão perto, à altura dos olhos. Ele achou que ia ser atacado.” Na realidade, era apenas um animal juvenil, curioso e explorando o ambiente em torno de seu ninho, que ficava próximo às obras da represa. Eduardo percebeu que esse tipo de abate deveria estar acontecendo com certa frequência, mas havia uma outra informação a ser aprendida com essa história: as águias eram tolerantes à presença dos tratores, máquinas e explosões de dinamite necessários para a construção do que era a maior represa de hidrelétrica do mundo. Dessa forma, se fatalidades como aquela fossem impedidas, havia chance de se salvar as águias.
“A única maneira de preservar a harpia é identificando o território onde ela nidifica, e transformando as pessoas que vivem próximas a esse território em parceiros no processo de impedir que matem as águias ou derrubem árvores. Também é importante educar as pessoas, porque elas são compreensivas e interessadas no trabalho de conservação. Quando elas veem biólogos escalando árvores e se esforçando, elas respeitam isso, e começam a cooperar. E se você consegue trazer pessoas de fora interessadas em observar as harpias e tirar fotos, trazendo também dinheiro para a economia local, isso cria algo muito positivo. Porque você só pode atirar numa harpia ou comer um papagaio uma única vez. Mas você pode mostrá-los para as pessoas toda semana, e isso pode ajudar a população local a prosperar.”
E isso, como o exemplo da Venezuela nos mostra, é um caminho e tanto para salvar águias e suas florestas.
Observando ninhos
Existem muitas pessoas dispostas a pagar por experiências envolvendo a vida silvestre. Sem dúvida, um dos mais apaixonados é o dos observadores de aves. Os birders ou passarinheiros, como são chamados, tendem a valorizar esforços de conservação e não economizar na hora de viajar. Especialmente quando as aves a serem vistas são raras, endêmicas ou extremamente carismáticas. As harpias atendem aos três critérios.
Segundo um estudo de 2015 do CREST (Centro para o Turismo Responsável), a indústria do turismo de observação de aves movimenta aproximadamente 41 bilhões de dólares por ano, só nos Estados Unidos. Em países emergentes, como a Guatemala e Belize, estima-se que cada turista gaste um valor superior a US$ 100 por dia. O significado disso para as comunidades locais é que novas possibilidades de emprego surgem, não apenas diretamente no atendimento e acompanhamento dos turistas em campo, mas também para garantir acomodação, alimentação, souvenires e artesanato e outros serviços relacionados à cultura local. E, aos poucos, os animais e plantas vivos começam a se tornar muito mais interessantes.
“Nós colocamos as harpias no mapa. Antes, não existia nenhuma maneira de se ver uma águia. Mas uma vez que você vê algo, todo mundo consegue ver também. Então as pessoas tinham a garantia de que poderiam levar turistas até os ninhos.” Com pesquisadores começando a monitorar harpias em diversos países — muitos deles treinados pelo próprio Eduardo e sua equipe — a localização de vários ninhos tornou-se conhecida, abrindo espaço para organizar visitas que eram momentos de verdadeiro êxtase para passarinheiros e fotógrafos de vida selvagem.
Eduardo, percebendo o valor das visitas para a conservação das águias, não se opôs à presença deles. “A experiência que eu tive no Brasil quando eu fui até aí é a de que alguns pesquisadores são muito territoriais sobre seus ninhos, e eles acham que podem colocar algumas restrições: Você só pode chegar a essa distância, as águias são muito frágeis, etc. Isso não é verdade. As águias são muito tolerantes ao tipo certo de visitantes, você só tem de ser cuidadoso e conduzir bem as visitas. Se o ninho já estiver construído e as etapas de cortejo, acasalamento e postura dos ovos já tiverem passado, as harpias não vão abandonar o ninho com um filhote. Quanto ao filhote, minha impressão é de que… Bem, é uma ave nova, ele nem sabe que não deveria ter um grupo de dez turistas com binóculos ou algo assim por perto. Claro que se você subir diretamente no ninho e interferir, elas ficarão estressadas. Deixarão de comer por um tempo e isso pode atrapalhar o desenvolvimento. Mas nós não passamos por isso com os turistas.”
O sucesso do programa venezuelano de conservação das harpias estava intimamente relacionado com essa abertura à chegada das pessoas. A melhor saída nesse tipo de cenário é exatamente o trabalho conjunto entre (1) quem trabalha com pesquisa e conservação das águias, (2) quem vive no entorno e (3) quem vem de longe para ver os animais. Territorialidade em qualquer dos três grupos prejudica os animais.
“As harpias são tolerantes, e vão sobreviver se você proteger o ecossistema. Quando eu comecei o trabalho em campo, eu fiz o contrário do que um pesquisador típico faria, ou seja, ir para um Parque Nacional onde não há ninguém para perturbar as águias. Isso teria garantido os melhores dados possíveis sobre elas, mas esse não era o meu objetivo. Meu objetivo era descobrir a interface entre a intervenção humana e as águias, e ver como elas estavam lidando com isso. Se você não protege a fronteira, o impacto vai avançando mais e mais profundamente na floresta, e aí perdemos mais águias. Eu me foquei em áreas de concessão madeireira, onde muito do que se estava fazendo era destrutivo. Mas, ainda assim, as águias sobreviviam. Alex expandiu esse trabalho para locais onde trechos inteiros de mata foram derrubados e transformados em pasto. É uma paisagem muito fragmentada, e tem muitas pessoas. É em lugares assim que você pode começar a combinar educação ambiental de verdade e conservação com a pesquisa de campo que você está fazendo.”
Alex é o Dr. Alexander Blanco, herdeiro do manto de Eduardo e, portanto, atual diretor nacional do Programa para Conservação da Harpia. Formado em medicina veterinária e munido de uma grande paixão pela biodiversidade, Alexander Blanco é hoje uma das maiores autoridades no estudo e na conservação de harpias. Alexander, Eduardo garante, teria bastante a dizer sobre o encontro entre o turismo e a conservação das harpias. Ele tem levado turistas até os ninhos há mais de uma década.
Confira amanhã a segunda metade da reportagem, na qual Alex e Eduardo continuam a partilhar as histórias e lições aprendidas durante esse tempo.
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muito bom