Análises

O Conservacionista embrionário

A labuta no laboratório é meticulosa, no campo, florestas têm espinhos e o equipamento é pesado. Porque dedicar-se a ciência da conservação?

Bruno Moraes ·
22 de janeiro de 2015 · 10 anos atrás
Cutia flagrada por armadilha fotográfica durante trabalho no projeto de refaunação do Parque Nacional da Tijuca.

Estou carregando uma armadilha de metal que abriga uma cutia, andando a pé pelas estradas que cortam a noite da Floresta da Tijuca. O cansaço de uma semana inteira de campo se acumula nas articulações e transforma meus músculos em brasa. Para além disso, o calor da noite carioca é insensível e marcante, especialmente durante o esforço físico. O peso da armadilha me machuca as mãos, e os tendões doem.
Nem por um momento, porém, questiono o fato de estar feliz com essa vida.

Uma brisa fresca me alcança o rosto suado, e eu observo um vasto horizonte, onde as árvores do Parque Nacional da Tijuca se entremeiam com a malha de luzes da cidade. Esse cenário onírico me traz uma sensação de pequenez. Toda aquela vida, de fungos e plantas, de bichos, bactérias, pessoas. Ela segue em todos os lugares, independente da minha ínfima existência, e isso é maravilhoso. Guardo minha felicidade cética e acerto a gaiola nas mãos. A cutia me olha, sente meu cheiro na lufada de ar frio e acerta-se dentro da gaiola, com os pelos eriçados, enquanto continuamos nosso curso pelas estradas do Parque.

Escolhas e histórias

“Por que fazer ciência?”. Ou mais especificamente: “Por que trabalhar com Biologia da Conservação?”

As respostas são, claro, possivelmente tão numerosas quanto o são os biólogos da conservação. A situação pessoal descrita no prólogo é apenas uma ilustração, que simboliza parte dos meus motivos, e das minhas respostas a essa questão. Eu sou um jovem cientista, e me graduei em microbiologia. Comecei a trabalhar com Conservação há pouco mais de um ano, motivado por uma insatisfação pessoal com o trabalho de bancada, e certamente não sou o colaborador de ((o))eco com maior arcabouço teórico na área de Ecologia. Mas minha intenção ao escrever esse texto não depende tanto disso.

Minha ambição é que esse relato sobre a minha escolha possa servir como inspiração para outros jovens perdidos que se interessam por Conservação, mas ainda não sabem o que os espera e, portanto, o porquê de trabalhar na área.

“Quando me convenci da ideia de que ninguém a imaginou ou escreveu, senti-me mais compelido a descobrir as nuances e entrelinhas desse conto grandioso”

É comum que eu reavalie constantemente as minhas motivações para estar fazendo alguma coisa. Enquanto carregava aquela cutia, e vivenciava o pequeno deleite da brisa noturna, uma súbita série de pensamentos me ocorreu. Estávamos lá eu, a gaiola e o pequeno roedor, e logo eu comecei a perceber de fato porque nós três estávamos ali, e porque eu escolhera estar no Parque Nacional da Tijuca em uma noite de sexta-feira. Esse tipo de epifania não é raro em saídas de campo.

A minha relação com a ciência começa em um ponto que nada tem a ver com a biologia. Eu sempre gostei de histórias. Sempre gostei de ouvir histórias, de vê-las na televisão e imaginá-las na minha cabeça. Quando aprendi a ler por mim mesmo, percebi que essa era a minha primeira grande liberdade: eu não dependia mais que me contassem histórias, eu poderia persegui-las sozinho. O que mais me encantava é que havia sempre uma aura de aprendizado, nenhum conto serve apenas para divertir. Fui percebendo que alguns livros eram mais difíceis do que outros, e quanto mais trabalho eles me dessem, mais eu sentia estar aprendendo. Mas o que isso tem a ver com ciência?

Bem, Carl Sagan propôs certa vez que “nós somos uma maneira do Cosmos de conhecer a si mesmo”. Quando comecei a ter aulas de ciências na escola, vi que estava de frente para uma das mais impressionantes histórias que poderiam ser imaginadas. Mais tarde, quando me convenci da ideia de que ninguém a imaginou ou escreveu (uma visão totalmente pessoal), senti-me ainda mais compelido a descobrir as nuances e entrelinhas desse conto grandioso e maravilhosamente incidental.

Alguns anos depois, comecei minha graduação em Ciências Biológicas. Foi como aprender a ler novamente, porque a história mais fascinante precisa de método e raciocínio científico para ser explorada. Ela não se baseia na imaginação com a qual lemos ficção, mas em fatos que tentamos decifrar e expor numericamente. Nas histórias de ficção, existe um artifício chamado “suspensão da descrença”, no qual o narrador te convence de que aquilo que está no papel é verossímil, que poderia estar acontecendo, por mais absurdo que pareça. Em ciência, porém, a suspensão da descrença está sistematizada na forma de gráficos, tabelas e modelos matemáticos. Não é o narrador que tem de convencer o leitor de um artigo: São os dados.

O que eu busco na pesquisa é transcrever as entrelinhas mais difíceis para tornar, aos poucos, a história da qual fazemos parte um pouco mais clara. Os desafios que surgem diariamente, porém, vão além de forçar os tendões com o peso de uma armadilha, ou de passar calor numa floresta tropical.

Autocontrole e motivação

“Um cientista, em qualquer área, não tem apenas de aprender a conviver com isso, ele tem de aprender a amar os empecilhos”.

Seja trabalhando em um laboratório de genética ou indo para o campo fazer armadilhagens, há sempre um senso intrínseco de desafio. Florestas têm espinhos, o trabalho é árduo, o equipamento pesa e é incômodo. Dois dias antes daquela sexta-feira, uma das cutias havia urinado na minha perna, e esse é apenas um dos tipos de desconforto dos quais estou falando.  Não achei, por nenhum momento, que a mudança de área viria sem frustrações ou cansaço, só porque não mais estava trabalhando com bactérias. É importante para qualquer biólogo de campo saber manejar o cansaço e a dor. E é importante para qualquer cientista saber manter o controle frente à frustração.

Em minha primeira experiência de campo,  eu ajudei Patrícia Mendonça, aluna de mestrado do Laboratório de Ecologia e Conservação de Populações (LECP/UFRJ), em seu projeto que usa câmeras automáticas para saber quantas jaguatiricas vivem na Serra do Mar. Por mais que eu goste de sustentar uma visão romântica do trabalho de campo, a verdade é que foram quatro dias acordando antes do sol, fazendo refeições rápidas, andando por paisagens desafiadoras (embora lindas para além da definição) e lutando contra câmeras que não funcionavam e atoleiros de barro. Um cientista, em qualquer área, não tem apenas de aprender a conviver com isso, ele tem de aprender a amar os empecilhos, enquanto parte do processo rígido que é a coleta de dados.

O desafio permeia todas as etapas da ciência. Ele está na imersão em uma literatura vasta e complexa, para entender o que você estuda e formular boas perguntas. Está na decisão dos melhores métodos para responder a essas perguntas, e na aplicação criteriosa dos mesmos para a obtenção dos dados. Dados são, no fim das contas, um bando de números complicados que tentam representar uma realidade ainda mais complicada. Um cientista também precisa saber lidar bem com os números, porque a ciência é construída sobre o que é quantificável.

Até agora, eu respondi à primeira pergunta. As questões discutidas acima são gerais, e podem ser adaptadas para qualquer campo da ciência. O resto do texto responde melhor à pergunta “Por que trabalhar com Biologia da Conservação?”. A resposta estava nos olhos daquela cutia, nascida na natureza, em uma população de animais reintroduzidos no Parque Nacional da Tijuca. Até 2010, não havia mais cutias no parque, extintas localmente pela degradação da Mata Atlântica e sua conversão em cafezal. Em 2014, porém, graças aos esforços dos membros do LECP/UFRJ, estávamos na quarta semana de captura viva das cutias, importante para colocar colares de rádio, que facilitam na etapa vital de monitoramento da população reintroduzida.

O pensamento que me ocorreu foi extremamente compensador: A maioria das vidas do mundo passaria bem sem o Bruno, é verdade. Mas naquele momento eu carregava uma cutia que, não fosse por conservacionistas como aquele que estou tentando me tornar, sequer estaria ali. A população de cutias é apenas o primeiro passo de um projeto de refaunação em larga escala do LECP, voltado para o restabelecimento de interações ecológicas. Quando populações animais são extintas, em decorrência da perda de hábitat e outros processos como caça, introdução de espécies exóticas e poluição de solos e água, perdem-se também diversas interações ecológicas que essas populações desempenhavam no ecossistema. Um bicho, no fim, é muito mais do que só um bicho.

Reintroduzir uma espécie é um processo complexo, e precisa ser aliado a ciência bem feita. Os efeitos disso, porém, são mais amplos do que a existência de cutias onde elas já não existiam mais. As interações desempenhadas pelas cutias são importantíssimas para a arquitetura e a saúde da floresta. O mesmo se pode dizer de diversas espécies e ecossistemas. Mais do que morar em florestas, lagos, campos, várzeas e desertos, os animais são parte deles, e dos processos que os mantêm saudáveis.

Quando eu me decidi por direcionar meu foco acadêmico para a Conservação, fui alocado no projeto de reintrodução do bugio-ruivo, também no Parque Nacional da Tijuca. Inocentemente, achei que seria apenas um tipo diferente de ciência, apenas um trabalho. Mas venho descobrindo cada vez mais que há poucas coisas na vida que proporcionam tanta satisfação quanto dedicar a sede de descobertas, o rigor e os esforços necessários à boa ciência em prol de conservar a biodiversidade. Essa é, para mim, uma das mais prazerosas maneiras de se conectar ao mundo.

 

 

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  • Bruno Moraes

    Bruno é microbiologista e ecólogo de formação, mas tem atuado na comunicação de ciência para não-especialistas desde 2015.

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