Essa é a história de dois Richards, um homem e um pássaro. Não por coincidência, ambos tinham o sobrenome Henry, e ambos viveram a maior parte de suas vidas na Nova Zelândia. Mas, principalmente, esses dois Richard Henrys foram essenciais para a sobrevivência da maior e uma das mais ameaçadas espécies de papagaio do mundo.
Tudo começou em 1830, quando coelhos europeus foram introduzidos em território neozelandês para alimentação e caça esportiva. E não é surpresa alguma que esses coelhos prontamente se puseram a fazer aquilo que coelhos fazem de melhor. Em poucas décadas a população introduzida atingiu números astronômicos, causando prejuízos econômicos enormes, especialmente relativos à pecuária, por conta da competição com ovelhas por pastagem. Apenas na província de Otago, na ilha sul, mais de 500 mil hectares de terras pastorais foram abandonados entre os anos de 1877 e 1887. Mas o verdadeiro desastre ambiental veio na década de 1880, quando três espécies de mustelídeo – doninhas, furões e arminhos – foram introduzidas nas ilhas para tentar o controle biológico dos coelhos.
Esses pequenos carnívoros não apenas se mostraram particularmente ineficientes no cumprimento de sua pretendida função; eles encontraram uma fauna de aves endêmicas que possuíam pouca ou nenhuma capacidade de voo, faziam seus ninhos no chão, e sequer eram capazes de reconhecer ou reagir a predadores mamíferos. O massacre resultante foi, mais uma vez, pouco surpreendente. Arminhos em especial pareciam preferir preencher seus cardápios com Kiwis, Takahē e outras aves neozelandesas que hoje se encontram seriamente ameaçadas de extinção. Dentre essas aves, se encontrava o kakapo.
O kakapo (Strigops habroptilus) é uma ave excepcional. Ele é um membro da ordem dos psitacídeos, que agrupa papagaios, araras, periquitos e afins, mas difere da maioria de seus primos em aspectos essenciais. O kakapo é o maior papagaio do mundo, com machos podendo chegar a até 4 quilos, e estima-se que ele possua uma longevidade média de 90 anos. Ele é noturno e também completamente incapaz de voar, mas ironicamente é um excelente escalador. Acaba cumprindo um papel ecológico parecido com o que gambás cumprem no Novo Mundo, como gentis comedores de frutas arborícolas.
Chegada dos humanos
Há pouco mais de 700 anos, quando nenhum ser humano havia posto os pés na Nova Zelândia, kakapos eram uma das aves mais comuns da região. Com a colonização dos Māori, o primeiro povo a chegar às ilhas vindos da Polinésia, veio a primeira onda de devastação da avifauna nativa, caçada por alimento e para o uso ornamental de suas penas. Mas foi com a chegada dos europeus e seus arminhos que a situação tornou-se realmente crítica. As já severamente reduzidas populações de kakapo começaram a diminuir ainda mais, e o animal começou a se tornar raro. E uma das primeiras pessoas a atentar para a iminente tragédia que estava a se formar foi Richard Treacy Henry.
Nascido na Irlanda em 1845, Richard Henry emigrou ainda jovem para a Austrália, onde passou muito de sua juventude caçando, pescando, conversando com aborígenes e observando o mundo natural. Em 1874 ele chegou à Nova Zelândia, passando os anos subsequentes viajando por suas ilhas, obtendo sustento de qualquer trabalho que achasse. Nove anos depois, ele se estabeleceu às margens do Lago Te Anau, na borda do que hoje conhecemos como Fiordland National Park, o maior dos parques nacionais do país, localizado no extremo sudoeste da ilha sul. Lá, Richard teve um assento privilegiado para observar o resultado da introdução dos coelhos. Observador e estudioso das aves locais, ele percebeu o declínio das populações de kakapos, wekas, kiwis e outros, e, em pleno século XIX, previu a extinção do kakapo, tornando-se uma das primeiras vozes em favor da conservação das aves neozelandesas.
Em 1891, Resolution Island, uma ilha a oeste de Fiordlands, foi apontada como uma reserva com o intuito de preservar a avifauna não-voadora da Nova Zelândia em um ambiente livre de predadores. Henry, já conhecido por suas ideias conservacionistas, foi apontado como “curador” desse novo santuário, posto que assumiu em 1894, munido de seu barco, um assistente, suprimentos e material para construir toda a estrutura (incluindo uma casa) necessária para a operação que viria a seguir. O objetivo era bem simples: translocar o maior número possível de aves ameaçadas para a ilha, de forma que elas pudessem estabelecer populações livres de predadores e garantir sua existência ao longo do próximo século.
É importante mencionar que translocar animais entre ambientes dessa forma pode parecer uma tarefa simples, mas não é. Mesmo hoje, com todo o avanço técnico e científico no manejo de vida silvestre, mais da metade de projetos de reintrodução de fauna terminam em falha ou sem certeza de sucesso. Ainda assim, em poucos anos, Richard conseguiu capturar e transportar mais de 500 aves (incluindo kakapos) para Resolution Island, experimentando, de forma pioneira, métodos de captura com redes e cães rastreadores. Nos primeiros anos tudo pareceu caminhar maravilhosamente bem. Populações de aves foram, conforme o pretendido, estabelecidas na ilha.
A queda
Na virada do milênio, nos anos de 1900 e 1901, arminhos começaram a ser avistados na ilha. O “inimigo” havia chegado. Foi apenas uma questão de tempo até que todo o esforço de Richard Henry fosse desfeito e as aves da ilha aniquiladas. O homem esperançoso que assumiu o cargo de protetor de Resolution Island em 1984 foi transferido em 1908, desolado, para uma segunda ilha, Kapiti Island, mas só permaneceu lá por três anos. Pouco depois, em 1912, se aposentou. Em 1922 fez sua última mudança para Helensville, ao norte de Auckland, a mais populosa cidade neozelandesa. Em 1929 Henry faleceu um homem senil e solitário, e apenas uma única alma, o responsável local pelos correios, compareceu ao seu funeral. Um desfecho melancólico para um homem que dedicou sua vida à conservação, e um mau presságio para a espécie que ele lutara para proteger.
O kakapo se tornou uma espécie esquecida no início do século XX, abandonada à própria sorte pelas décadas que se seguiram aos esforços em Resolution Island. Ninguém sabia qual era a situação da espécie. Apenas em 1950, com a criação do New Zealand Wildlife Service (serviço de vida selvagem da Nova Zelândia), novos esforços foram desprendidos para encontrar kakapos nos cantos mais remotos e inacessíveis do país. Mais de 60 expedições foram lançadas entre 1949 e 1973, e em todas essas expedições, seis indivíduos foram capturados. Isso mesmo, só seis, em 24 anos. Eles foram levados para cativeiro, onde se pretendia iniciar um programa de reprodução, mas todos os indivíduos capturados eram machos, e a maioria morreu após alguns meses. Ao início de 1974 não se sabia da existência de nenhum kakapo vivo na natureza. Novas buscas intensivas foram feitas em Fiordlands, num esforço que envolvia outra notória figura da conservação neozelandesa: Don Merton. Em três anos, outros 18 indivíduos foram localizados. Mais uma vez, todos eram machos. Desses novos indivíduos, apenas um viveu durante vários anos seguintes: um macho que recebeu o nome de “Richard Henry”.
Segunda chance
A turbulenta maré de azar finalmente deu algum sinal de amanso em 1977, quando uma nova população de kakapos foi localizada em uma terceira ilha, Stewart Island, ao sul do país. Três anos adicionais de busca foram necessários para que uma fêmea (junta a um ninho e um pequenino filhote) fosse enfim encontrada. Finalmente, uma população reprodutiva, que foi estimada à época em cerca de 150 animais. Stewart Island nunca chegou a ser colonizada por arminhos, mas possui uma população de gatos ferais. Gatos normalmente não predam kakapos, mas alguns poucos indivíduos podem, ocasionalmente, aprender a abater essas aves, algo que foi rapidamente aprendido pelos conservacionistas locais. Alguns anos após o descobrimento dessa nova população insular, uma onda de predação ocorreu. Após alguns meses, no entanto, os gatos foram eliminados e os abates pararam, mas a população de kakapos caira para cerca de 60 indivíduos. Era óbvio que as aves não podiam continuar ali.
Ressurgia o desafio. Os números totais de kakapo já não eram como os do final do século XIX. Não havia centenas de aves a serem encontradas e translocadas. Existiam cerca de 60 aves, as últimas existentes no planeta Terra. Cada perda colocaria o kakapo um largo passo mais próximo de sua extinção. Mas os envolvidos na conservação do kakapo não estavam no escuro, pois o conhecimento sobre a espécie e as técnicas de manejo necessárias para o resgate já haviam sido desenvolvidas no final do século XIX.A turbulenta maré de azar finalmente deu algum sinal de amanso em 1977, quando uma nova população de kakapos foi localizada em uma terceira ilha, Stewart Island, ao sul do país. Três anos adicionais de busca foram necessários para que uma fêmea (junta a um ninho e um pequenino filhote) fosse enfim encontrada. Finalmente, uma população reprodutiva, que foi estimada à época em cerca de 150 animais. Stewart Island nunca chegou a ser colonizada por arminhos, mas possui uma população de gatos ferais. Gatos normalmente não predam kakapos, mas alguns poucos indivíduos podem, ocasionalmente, aprender a abater essas aves, algo que foi rapidamente aprendido pelos conservacionistas locais. Alguns anos após o descobrimento dessa nova população insular, uma onda de predação ocorreu. Após alguns meses, no entanto, os gatos foram eliminados e os abates pararam, mas a população de kakapos caira para cerca de 60 indivíduos. Era óbvio que as aves não podiam continuar ali.
Chegamos em 2016. Há um ano havia 123 kakapos no planeta Terra, todos cuidadosamente protegidos em tempo integral. O início desse ano viu o mais bem-sucedido evento reprodutivo dessa espécie das últimas décadas, que gerou mais 38 filhotes. Todos esses kakapos estão distribuídos em três ilhas santuário diferentes: Codfish Island, Little Barrier Island e Anchor Island. Kakapos não se encontram, de forma alguma, fora de perigo, e ainda são considerados criticamente ameaçados pela União Internacional para a Conservação da Natureza. Mas suas chances de sobrevivência são agora muito melhores do que elas eram no século passado. De fato, uma das maiores ameaças à espécie no momento é sua falta de variabilidade genética, uma consequência de todos os indivíduos sobreviventes serem provenientes de uma pequena população insular em Stewart Island. Ou quase todos.
Um único kakapo proveniente das Fiordlands sobreviveu até o início do século XXI. O kakapo conhecido como “Richard Henry”. Esse Richard já era provavelmente uma ave de idade avançada quando chegou ao seu novo santuário insular. Mas ainda assim, ele deixou um presente vital para sua espécie: três filhotes. Pode não parecer muito, mas a presença continuada dos genes de Henry é de prima importância para a população de kakapos. É um caminho para o aumento da variabilidade genética, e para a cura dos frequentes problemas de baixa fertilidade e falha no desenvolvimento dos ovos que derivam do cruzamento de indivíduos que são, inevitavelmente, parentes próximos.
Há quem diga que a batalha pela conservação é uma batalha perdida. Mas histórias como esta provam que vitórias existem, mesmo quando uma reviravolta positiva parecia impossível. As lições tiradas dessas vitórias podem ser antigas – e um tanto piegas – mas são inegavelmente verdadeiras. As únicas batalhas que podemos verdadeiramente considerar perdidas são aquelas que não são lutadas.
Em dezembro de 2010, o mundo perdeu seu segundo Richard Henry, dessa vez o kakapo. Como o homem de mesmo nome, Richard teve uma vida longa e dura, mas que deixou para trás um legado.
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Nossa que matéria estupenda!!!
Excelente matéria Bernardo. Triste mas, ao mesmo tempo, encorajadora. Obrigada.
A Nova Zelândia dá exemplos de conservação mão na massa que humilham o Brasil, onde gente demais prefere olhar as coisas acontecerem. Figuras como Don Merton, que desafiaram a burocracia inerte e fizeram o que era preciso salvaram espécies que hoje não existiriam se não fosse pelas translocações, reintroduções e abate de predadores introduzidos. E muitas das áreas protegidas onde estas espécies estão são acessíveis a visitantes, como é o caso de Kapiti.
Quem sabe chegamos lá.