O Decreto nº 52.216, de 6 de agosto de 2025, assinado pelo governador do Amazonas, Wilson Lima, e coassinado pelo secretário-chefe da Casa Civil, Flávio Cordeiro Antony Filho, e pelo secretário de Meio Ambiente, Eduardo Costa Taveira, é apresentado oficialmente como uma medida de “regularização ambiental” e recomposição florestal. Na prática, porém, o decreto abre uma brecha perigosa para legalizar desmatamentos ilegais já consolidados, inclusive em áreas próximas a Terras Indígenas e Unidades de Conservação. Ao permitir a regularização de passivos ambientais com base exclusivamente no Cadastro Ambiental Rural (CAR) – um sistema autodeclaratório, sem verificação em campo – o governo favorece diretamente a grilagem, ou seja, a apropriação e venda ilegal de terras públicas no estado do Amazonas, aponta estudo científico publicado no periódico Discovery Sustainability, editado pelo grupo Springer Nature.
O artigo científico apontou que a justificativa oficial, de que o decreto não autoriza novos desmatamentos, é enganosa. Embora não permita cortes futuros, ele “perdoa” o desmatamento já realizado, transformando áreas degradadas e ocupadas ilegalmente em propriedades “regularizadas” perante o Estado. O dano ambiental é irreversível e os responsáveis são premiados com o reconhecimento da posse e o direito de manter a área desmatada, um sinal claro de impunidade que estimula novas infrações. Os dados do estudo também indicam que essa cadeia de desmatamento e grilagem está fortemente vinculada à expansão da pecuária no estado do Amazonas. Dessa forma, não é possível dissociar a produção de carne dos processos de desmatamento, queimadas e apropriação ilegal de terras.
Um histórico de favorecimento à grilagem
Estudos científicos publicados nos periódicos Land Use Policy e Environmental Conservation demonstram que há um padrão recorrente de atuação de agentes públicos e estruturas governamentais no Amazonas que facilita a grilagem e o desmatamento ilegal. Fiscalizações frouxas, licenciamento ambiental irregular e uso indevido do CAR têm sido empregados para legitimar ocupações ilegais. No caso da rodovia BR-319 – eixo central dessa dinâmica – estes estudos documentaram a participação de servidores do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) e do INCRA na emissão de autorizações e títulos para áreas que haviam sido invadidas e desmatadas após 2015, muitas delas destinadas a pastagem.
O avanço da grilagem nessas regiões não é mero acaso. Municípios abrangidos pelo decreto, como Tapauá, Humaitá e Autazes, tiveram, nos últimos cinco anos, período do governo de Wilson Lima, um aumento acelerado das áreas de pastagem: 73,29%, 51,77% e 34,45%, respectivamente, de acordo com dados do MapBiomas. Trata-se de um indicativo claro de que áreas desmatadas ilegalmente vêm sendo incorporadas à pecuária, consolidando um ciclo de ocupação ilegal e transformação do uso do solo.
Em 27 de agosto do ano passado, enviei ao Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (CENSIPAM) e a membros da Polícia Federal (PF) um relatório detalhando a expansão da grilagem de terras no Amazonas, especialmente voltada a grilagem de terras e desmatamento ilegal para a abertura de novas pastagens. O documento alertava para a fragilidade da fiscalização ambiental no estado e para o discurso oficial que, em vez de enfrentar as áreas mais pressionadas pelo desmatamento, buscava desviar a atenção da sociedade. O objetivo era subsidiar ações da PF no combate à grilagem e ao desmatamento ilegal. Exatos 105 dias após o envio do relatório, uma operação de grande porte resultou na descapitalização de mais de R$ 1 bilhão de uma organização criminosa atuante no estado. A ofensiva também levou à exoneração do diretor-presidente do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM), Juliano Valente, após a Polícia Federal revelar um esquema de corrupção ligado a fraudes fundiárias, além de venda irregular de créditos de carbono.

O papel do CAR e a autodeclaração
O uso do CAR como único requisito para regularização é um dos pontos mais críticos do decreto nº 52.216. Por ser autodeclaratório e não exigir vistoria prévia, o sistema permite que grileiros inscrevam áreas invadidas e desmatadas como se fossem legítimas. Essa fragilidade institucional já foi explorada em outras regiões da Amazônia, como mostram os estudos da Land Use Policy e Environmental Conservation, permitindo que ocupações ilegais sejam “esquentadas” documentalmente e vendidas no mercado imobiliário rural.
Na prática, o CAR acaba servindo como instrumento para dar aparência de legalidade a ilícitos ambientais. Uma vez inscrita no sistema, a área ganha um registro oficial que pode ser usado para obter crédito, autorizações de manejo florestal e até licenciamento para atividades econômicas. Sem fiscalização em campo, o risco de fraude é elevado e a regularização deixa de cumprir seu papel de proteger a floresta.
BR-319 e a lógica da ocupação
A relação entre o decreto e o histórico da BR-319 é direta. Os estudos mostram que a melhoria da rodovia – mesmo sob o rótulo de “manutenção” – provocou um aumento expressivo no desmatamento e na grilagem nas áreas próximas, especialmente após 2015. No chamado “trecho do meio” e no “Lote C”, os estudos com base em monitoramento do desmatamento via satélites registraram invasões, abertura de ramais ilegais e exploração madeireira dentro de Terras Indígenas e Unidades de Conservação, muitas vezes com a conivência ou omissão de órgãos públicos.

Esse cenário demonstra que, sem governança ambiental efetiva, medidas de regularização como o decreto de Wilson Lima tendem a reforçar o ciclo de ocupação ilegal: primeiro ocorre a invasão e o desmatamento; depois, uma ação estatal “legitima” a posse, seja por meio de titulação fundiária, seja por regularização ambiental.
A resposta do governo e a realidade em campo
O governo estadual afirma que o decreto é restrito a imóveis com passivo ambiental pré-existente, que estejam inscritos e validados no CAR e que se localizem em municípios com mais de 50% do território ocupado por áreas protegidas. Argumenta também que não haverá autorização para novos desmatamentos e que o objetivo é apenas recuperar a vegetação nativa.
No entanto, a realidade observada em campo e documentada pelos estudos científicos contradiz essa narrativa. A legalização de áreas desmatadas ilegalmente – ainda que com a promessa de recomposição – não reverte a perda de biodiversidade, não restaura os serviços ecossistêmicos e envia um sinal político e econômico de que o crime compensa. Além disso, não há garantias de que a recomposição será efetivamente realizada ou monitorada como demonstraram nossos estudos. Na prática fiscais do INCRA e do IPAAM tem assinado laudos que destoam da realidade.
Risco de agravamento da crise ambiental
O decreto também deve ser analisado no contexto mais amplo de políticas que enfraquecem a governança ambiental no Amazonas. O estudo publicado no periódico Environmental Conservation mostrou que, mesmo sem a pavimentação da BR-319, já ocorre intensa atividade ilegal de exploração madeireira e mineração na região, sem fiscalização adequada pelos órgãos ambientais e fundiários que operam no estado. A reconstrução da rodovia e a abertura de ramais planejados poderiam ampliar o desmatamento em mais de 1200% até 2100.
Diante desse cenário, o decreto funciona como um catalisador: ao oferecer uma via de regularização para áreas degradadas, estimula novas invasões com a expectativa de futuros “perdões” ambientais. Essa expectativa é um dos motores da grilagem, conforme já demonstrado pelo estudo da Land Use Policy ao analisar os efeitos de programas federais de titulação de terras.
Padrão repetido
O decreto de Wilson Lima não é uma medida isolada, mas parte de um padrão histórico de políticas que favorecem grupos econômicos interessados na expansão da fronteira agropecuária sobre a floresta amazônica. Ao se apoiar em mecanismos frágeis como o CAR e ao legitimar desmatamentos passados, ele fortalece redes criminosas, fragiliza a proteção de Terras devolutas (terras públicas que nunca pertenceram a particulares e não foram destinadas pelo poder público), Terras Indígenas e Unidades de Conservação e ameaça acelerar a degradação de um dos ecossistemas mais importantes do planeta.
Se mantida, a medida poderá consolidar a conversão de vastas áreas públicas em propriedades privadas, alimentando um ciclo de destruição que põe em risco não apenas a biodiversidade amazônica, mas também o clima e o equilíbrio ambiental em escala global e com sérias consequências para a cidade de Manaus.
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