Análises

Decreto “enxuga gelo“ para comemorar o dia mundial da água no Mato Grosso do Sul

Governo do estado propõe solução mágica (e errada) para o problema dos rios de Bonito. Trata-se de uma mera resposta vazia à sociedade

Miguel Milano ·
24 de março de 2019 · 6 anos atrás
Os rios de Bonito estão ameaçados e governo finge que está fazendo algo. Foto: Divulgação.

Fato risível se a realidade não fosse de chorar! Mas totalmente pertinente como algo esperado, a considerar os atores da piada de mau gosto: o governo do estado do Mato Grosso do Sul, através do governador, Reinaldo Azambuja, e de seu secretário da agricultura, Jaime Verruck. Afinal, nada como um decreto enxuga gelo para só fazer de conta enquanto se continua não fazendo nada pelas águas de Bonito e Jardim, tremendamente ameaçadas, da qual depende a socioeconomia dos referidos municípios, em particular o segundo, reconhecido mundialmente como destino ecológico sustentável, situação que hoje já não se aplica.

Não obstante o clamor local, demonstrado por setores sociais que vão de empresários aos  guias de turismo, passando por integrantes da academia, do Ministério Público, de organizações da sociedade civil e de “meros” cidadãos conscientes e preocupados, tudo fartamente noticiado na mídia (níveis regional e nacional), o governo insiste em se fazer de surdo, cego e agora também de tetraplégico, pois a não ouvir e nem ver se soma não se mover! Qualquer movimento não passa de soluço sem consequências.

A preocupação com a situação, além de consistente, é antiga, de pelo menos uma década, como demonstra farta documentação disponível na Fundação Neotrópica do Brasil e no Ministério Público Estadual. Mais recentemente, com a situação já dando sinais de elevada gravidade, em 2015 uma iniciativa de proteção dos banhados dos rios Formoso e Prata, essencial passo em qualquer iniciativa minimamente séria para conter o desastre (não me refiro a solução completa do problema), através da criação de unidades de conservação municipais, foi abortada via liminar judicial em ação do sindicato rural e da Famasul contra a realização das consultas públicas formalmente agendadas. O processo estancou! Desse processo contam-se pelo menos três anos de um abaixo assinado com centenas de assinaturas recebido por Reinaldo Azambuja em Bonito, junto com camisetas da campanha para salvar os banhados. De lá para cá nada foi feito e tudo piorou. Encerrados os mandatos, novos prefeitos empossados e renovado o mandato de Reinaldo, consolidou-se politicamente o interesse individualista do pior do agronegócio contra os interesses coletivos de Bonito e nada mais foi nem mesmo tentado.

Governador Reinaldo Azambuja, em Bonito, MS. Foto: Divulgação.

O problema se agigantou e o governador vem sendo confrontado sistematicamente pela população preocupada com a situação, tendo vindo duas ou três vezes a Bonito tratar do desastre, que é maior a cada ano. A última, no final de 2018, em audiência pública, mais vez prometeu ação concreta, mas nada, nada, nada, a não ser o enxuga gelo de hoje!

Faz três anos o banhado do Prata foi literalmente arrasado por cerca de trinta quilômetros de canais de drenagem, cujos resultados foram a inviabilização do rio para mergulho, de maneira geral por mais de trinta dias após chuvas intensa. Como a estação das chuvas coincide com as férias de final de ano, que são a alta temporada turística, o negócio de mergulho no Prata morreu! Ações inconsequentes e mal feitas do estado não resolveram em nada o problema: multas foram dadas e suspensas, embargos da área não foram sustentados e, o mais importante, os drenos não foram fechados e o ambiente não foi restaurado.

O banhado do rio Formoso segue o mesmo destino trágico. Já foi totalmente sitiado pela agricultura intensiva e está sendo, ao mesmo tempo assoreado e corroído ano a ano – comido pelas beiradas, como se diz no popular. Junto com o crescimento da agricultura na região, cujo aumento é de mais de cinco vezes em termos de território ocupado em meia década, está em curso, de forma associada, um processo intenso de desmatamento (tanto legal como ilegal). Desmatamento e agricultura significam mais escorrimento superficial da chuva, mais velocidade de drenagem, rios enchendo e vazando mais rápido. E os resultados, assustadores para os mais afetados, são conhecidos e estão sendo registrados.

Os banhados, agindo como esponjas naturais, eram o freio no processo de vazão e o filtro no processo de qualidade, contendo velocidade e nível de turbidez. Agora, danificados por drenos, sitiados e assoreados, já não conseguem cumprir tais funções!

É esse o contexto em que é anunciado o decreto 15.197, pra se fazer de conta que alguma ação está sendo feita quando de fato não se faz nada! Uma mera resposta vazia à sociedade que espera por uma ação do estado. Se distraídos, cola. Alerta Bonito!

Desmatamento e agricultura ameaçam banhados de Bonito. Foto: Divulgação.

O decreto, publicado nesta sexta-feira (22) e comemorativo do dia mundial da água, “determina que as ações mecanizadas de preparo do solo nas propriedades rurais localizadas nos municípios de Bonito e Jardim apresentem à SEMAGRO (Secretaria de Meio Ambiente, Desenvolvimento Econômico, Produção e Agricultura Familiar) um projeto técnico de manejo e conservação do solo e água antes de serem executados. A medida, segundo a SEMAGRO, tem por objetivo preservar a integridade dos recursos hídricos na região, reduzindo o impacto do carreamento de sedimentos aos rios e córregos, principalmente no período de chuvas e evitar maiores prejuízos ao meio ambiente e atividades econômicas coexistentes em Bonito e Jardim, como a agricultura e o turismo. Uma Câmara Técnica com a atribuição de emitir pareceres e recomendações foi estabelecida, composta por representante da própria Semagro, Agraer, Imasul, Agesul, Famasul, Fundação MS, Embrapa, e prefeitura municipais de Jardim e Bonito.

Nada de novo e nada de solução! Primeiro, o decreto chega tarde, pelo menos quatro ou cinco anos atrasado. Nesse período foi instalada a desgraça cujos resultados sentimos hoje. E lei (decreto, no caso) não retrocede! Pergunta-se: como fica o problema instalado? Serão os responsáveis pelas áreas estabelecidas responsabilizados por regra que não existia à época? Essas são perguntas, cujas respostas são por demais óbvias, fazem soar uma primeira conclusão: o ato não passa de resposta vazia, daí o “enxuga gelo” que atribuo. Outro ponto está associado ao conceito e forma genérica de agir do estado, ou de não agir, o que parece um vício nacional. Deixa-se destruir e depois se tenta reparar, reconstruir, restaurar, levando-se a prejuízo social duplo, primeiro pela perda do benefício e depois tendo de pagar para “tentar” resgatá-lo.

Esta é a paisagem que querem pra Bonito? Foto: Divulgação.

Há ainda outros aspectos. Se considerarmos que o ato é sério (eu não creio!), o estado age errado por não focar a solução no conjunto das causas do problema, que são a degradação dos banhados, a perda e degradação das matas ciliares, a falta de reservas legais e o desmatamento ilegal, entre outros, mas focando apenas em um deles: o escorrimento superficial da chuva. Não que estradas, lombadas e caixas de contenção não sejam importantes. São! Mas não a essência da solução. Se fosse assim, os piscinões dariam conta de conter as enchentes em São Paulo e todos sabemos que não dão. Por sinal, fico na dúvida se tudo isso, camuflando de resposta a uma necessidade premente de Bonito e Jardim, não é apenas mais um jeito de gastar dinheiro público bom em negócio ruim, com aquisição ou arrendamento de máquinas e equipamentos. Por fim, o negócio é tratado com e por quem nunca resolveu o problema, acho que sequer o viu e o reconhece, quando não é a própria essência dele. Estou me referindo à câmara técnica: Semagro, Agraer, Imasul, Agesul, onde estavam e o que faziam para o problema chegado no nível que está? Quanto a Famasul não se faz necessário comentar, afinal, como já posto, a organização lutou para inviabilizar as unidades de conservação para proteção dos banhados!

Tudo considerado, pergunto: por que não fiscalizar a implementação do Código Florestal, senhor secretário, senhor governador? Por que não regulamentar e fazer cumprir a lei estadual que proíbe agricultura nos 150 metros das margens dos rios cênicos de Bonito e Jardim, senhor secretário, senhor governador? Por que não criar as necessárias e esperadas unidades de conservação dos banhados dos rios Prata e Formoso, senhor secretário, senhor governador? Se fizessem isso, não apenas sairia mais barata a ação do estado como teríamos motivos para comemorar o dia mundial da água… nos próximos anos. Como está, não dá! A história, ainda que apenas localmente, vai cobrar-lhes a responsabilidade por tamanha omissão num processo que tende a levar à destruição de Bonito como modelo de turismo ecológico e sustentável, e junto mais de 50% dos empregos locais! Senão vocês, creio que ao menos seus descendentes sentirão vergonha de como agiram, deixando de fazer o que podiam e deviam!

 

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  • Miguel Milano

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Comentários 4

  1. Fernando Fernandez diz:

    Obrigado, Milano, por seu excelente texto. Não só por mostrar a situação alarmante de Bonito e Jardim, mas também por desmascarar as autoridades que por ignorância, por má intenção, ou por ambos, só nomeiam mais gente para viver do problema, ao invés de tentar resolvê-lo. Apoiamos seu apelo e esperamos que tenha efeito, não precisamos de mais discursos ou comissões, precisamos que a lei seja cumprida e de ações concretas em Bonito, urgente.


  2. Paulo diz:

    A velha maxima, de reinventar a roda.

    Conhecendo os politiqueiros a decadas, vejo que esta ação do governo estadual é apenas uma cortina de fumaçã.

    Bando de enganadores.


  3. Thomaz Lipparelli diz:

    Parabéns Milano. O Estado, novamente, se mostra inepto e inapto nas questões ambientais. A exemplo, também, com os atropelamentos dos animais em nossas rodovias.Fica a pergunta: a que mais recorrer?


  4. Carlos Bertão diz:

    Parabéns pelo artigo, Miguel. Na mosca. Concordo com sua análise. Se quisessem realmente resolver a questão, os governos estadual e municipal deveriam começar a agir com a efetivação de medidas básicas como a fiscalização do cumprimento da legislação vigente. Este Decreto não vai resolver nada, pois não ataca os problemas de forma efetiva. Muito pelo contrário. Tradicionalmente no setor público, criam-se Comissões, Forças Tarefas, entre outras, para NÃO se resolverem as questões.