O filme Dr. Fantástico (1964), de Stanley Kubrick, um ex-cientista nazista fugido para os EUA é convocado para uma reunião de emergência devido à eclosão iminente da Terceira Guerra Mundial. Ao aconselhar o presidente americano, ele não resiste aos velhos hábitos de desenhar soluções genocidas para a humanidade pós-confronto. E não consegue domar um de seus braços, que involuntariamente se espicha na saudação ao Führer.
A demissão do diretor de fiscalização do Ibama na última terça-feira (14), após a TV mostrar o órgão em ação estourando garimpos em terras indígenas, foi um desses momentos em que o Dr. Fantástico não consegue controlar seu braço. Olivaldi Azevedo caiu não porque falhou em combater o crime ambiental, mas porque falhou em barrar uma operação de combate ao crime. Falhou em impedir que o Estado brasileiro cumprisse sua missão de proteger o meio ambiente e os povos indígenas. A degola ocorre ao mesmo tempo em que o governo encarrega o vice-presidente da República de uma operação de relações-públicas para assegurar ao mundo que o Brasil está, sim, preocupado com a defesa da Amazônia.
Muita gente quis acreditar quando o general Hamilton “Mas Ele é Até Razoável” Mourão foi encarregado de assumir o redivivo Conselho da Amazônia. O wishful thinking era que Bolsonaro havia sentido a pressão do agronegócio, dos investidores, de deus e o diabo, e fora forçado a mudar de posição na política ambiental. Segundo essa linha narrativa, Paulo Guedes tomou um esporro dos brancos em Davos e descobriu que o único ativo do Brasil que interessa ao resto do mundo é justamente aquele que seu governo está desvalorizando: a Amazônia em pé. Daí a necessidade de escantear o desgastado ministro do Meio Ambiente, que não conseguiria convencer nem seus robôs no Twitter de que está trabalhando pelo desenvolvimento sustentável, e botar um adulto para tomar conta da floresta.
Pelo menos nas entrevistas coletivas Mourão chegou chegando: prometeu uma estratégia de combate ao desmatamento. Disse que restabeleceria os comitês do Fundo Amazônia – aqueles que Ricardo Salles extinguiu por birra – e botaria o fundo para rodar. Tem mandado emissários conversar discretamente com figurões da área ambiental. Anunciou, e entregou, a assinatura do convênio com o Pnud para o programa Floresta Mais, objeto de doação de US$ 96 milhões do Fundo Verde do Clima para o Brasil implementar pagamento por serviços ambientais. O dinheiro ficou um ano parado porque Ricardo Salles se recusou a assinar o acordo, uma vez que a verba era carimbada para comunidades tradicionais e pequenos produtores.
Um desavisado que tivesse chegado na semana passada de Marte poderia até achar que algum ponteiro estava se mexendo em Brasília. Mas, como dizem os ingleses, a prova do pudim é o gosto. E o cozinheiro do pudim amazônico ainda é Jair Bolsonaro.
O presidente e o vice insistem em abrir as terras indígenas a todo tipo de atividade econômica, inclusive garimpo. O presidente, com respaldo amplo da bancada ruralista (que em tese representa o mesmo setor econômico que estaria sofrendo “pressão do mercado” para controlar o desmate), quer aprovar em rito sumário no Congresso uma Medida Provisória legalizando a grilagem feita por seus eleitores e apoiadores. Se a MP 910, pronta para votação, for aprovada, o controle do desmatamento terá de ser feito por orações ou pelo coronavírus; o governo não será mais capaz de fazê-lo, dada a sinalização ao crime organizado de que a invasão de terras públicas sempre poderá ser perdoada. Se o general Mourão está mesmo preocupado com “estratégia” de combate à devastação, deveria manobrar hoje mesmo para derrubar a MP.
E há, claro, o braço indomável do Dr. Fantástico: o ministro do Meio Ambiente. Salles está feliz da vida por não precisar mais responder às cobranças da imprensa sobre desmatamento, mas não tem deixado de exercer suas prerrogativas de ministro – que incluem demitir pessoas. Quando o major Olivaldi, seu homem de confiança, fracassou em segurar a tigrada da fiscalização e desagradou ao Planalto, Salles não hesitou em cortar sua cabeça e substituí-lo por mais um PM paulista, o aposentado Olímpio Magalhães, que tem fama de truculento. Espera-se que a degola prossiga entre os fiscais tão logo a imprensa esqueça o episódio. O presidente do Ibama, Eduardo Bim, dirá que se trata de uma “reestruturação”. Não deixará de ser verdade: desmonta-se uma estrutura de fiscalização operacional e cria-se outra, feita para não funcionar.
Não se sabe se esses movimentos estão sendo combinados com o Jaburu, mas há duas hipóteses: ou Mourão não tem ingerência sobre o que acontece no Ibama, e está sendo sabotado por Salles, ou compactua com os atos do ministro. Nos dois casos, a utilidade do Conselho da Amazônia e da autoridade do vice para segurar o desmatamento é a mesma de um comprimido de cloroquina para tratar a Covid-19.
O tamanho da conta será conhecido no fim do ano, quando saírem os dados de desmatamento do sistema Prodes, do Inpe. Ceteris paribus, o melhor que o governo pode fazer é torcer para que a pandemia afete os funcionários dos grileiros e impeça o desmatamento a partir de maio, quando começa a estação seca. Quem sabe assim a devastação em 2020 “apenas” empate com 2019 (a quatro meses do fim do período de apuração, o número de alertas já é o terceiro pior da série, e se tornará o segundo pior antes do fim de abril). Do contrário, a taxa ultrapassará a barreira psicológica dos 10.000 km2 e poderá retornar ao patamar de 13.000 km2 dos anos 1990.
A desculpa, claro, já está na ponta do coturno: “a gripezinha, vejam, não era tão zinha assim e atrapalhou o combate ao desmatamento”. Difícil vai ser os investidores engolirem. O general Mourão a esta altura já deveria ter percebido que o único jeito convincente de fingir que protege a Amazônia é proteger a Amazônia
Republicado do Observatório do Clima através de parceria de conteúdo. |
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E as exonerações em retalhação a quem trabalha continuaram.
Já tão retalhando também?
O que é a estratégia de "RP" de Mourão? Faltou explicar, essa mania de abreviar é insuportável
RP é sigla para Relações Públicas.