Análises

Descolonizando o nome do Parque Nacional do Descobrimento

As problematizações quanto às origens, aos sentidos e aos usos do termo “descobrimento” colocam em questão o nome e as práticas de nomeação que marcam a existência do Parque

Álamo Pimentel · Juliana Fukuda ·
31 de outubro de 2023

A crítica ao termo “Descobrimento (do Brasil)” não é recente. Apesar de ainda constar em parte dos livros de história usados nas escolas, já se reconhece por parte da população brasileira que esse vocábulo não representa a narrativa histórica das populações que já se encontravam nesse território quando da chegada dos primeiros europeus em 1500. A mudança do nome do Parque Nacional do Descobrimento (PND) é uma antiga reivindicação de populações indígenas e de movimentos sociais da região.

No mês de fevereiro do ano corrente, a pauta da mudança foi reapresentada durante uma das oficinas preparatórias da revisão do Plano de Manejo do PND, evento coordenado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) com a participação da comunidade local de Cumuruxatiba, distrito do município do Prado, extremo sul da Bahia.

A reivindicação ganhou força no mês de março, em Brasília (DF), quando foi enfatizada por ocasião da assinatura da renovação do Termo de Compromisso com os Pataxó da Terra Indígena (TI) Comexetibá. Representantes do alto escalão do ICMBIO e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) reconheceram a legitimidade da demanda, uma vez que a decisão do nome do Parque foi tomada no ano de 1999 sem uma consulta ampla às comunidades locais – uma imposição governamental conveniente às “celebrações” oficiais dos 500 anos de colonização do Brasil pelos portugueses. Desde então, as proposições de mudança têm gerado um movimento de “descolonização” do nome do PND.

As problematizações quanto às origens, aos sentidos e aos usos do termo “descobrimento” colocam em questão o nome e as práticas de nomeação que marcam a existência do Parque. A unidade de conservação foi criada para preservar o pouco que sobrou de uma região especial de Mata Atlântica denominada Hileia Baiana, após décadas da exploração madeireira na região. A escolha do seu nome ocorreu em um contexto de disputas de narrativas quanto a formação histórica do nosso país. Enquanto o governo da época investia nas retóricas do ‘descobrimento’, o movimento “Brasil, outros 500” reunia indígenas, quilombolas, trabalhadores sem-terra e sindicalistas em manifestações contrárias ao discurso de fixação das origens do país a partir da agência colonial.

Em diversas partes do mundo movimentos decoloniais têm proposto retirada de símbolos que enaltecem apropriações e utilizações indevidas de territórios, de bens e de nomes. Especificamente para áreas naturais protegidas, destacamos duas histórias de grande repercussão.

Na Austrália, o maior símbolo natural nacional é um monolito de 348 m de altura em meio ao deserto. Há séculos o local é considerado sagrado pelos povos Anangu, sendo chamado de Uluru. Quando foi “descoberto” pelos europeus em 1872, esse monumento foi denominado Rocha Ayers, em homenagem ao então secretário-chefe da Austrália do Sul, Henry Ayers. Em 1950 foi criado o parque nacional de Ayers Rock-Mount Olga, que em 1993 passou a se chamar Uluru-Kata Tjuta. Somente em 2002 o monolito foi oficialmente denominado Uluru / Ayers.

Nos Estados Unidos, a montanha mais alta do país encontra-se no Alasca, chamado de Denali pelos povos Athabasca, que vivem na região há milhares de anos. Em 1896 o lugar recebeu o nome de Monte McKinley, em homenagem a um ex-presidente do país. O Parque Nacional McKinley foi criado em 1917, apesar de reivindicações contrárias a esse nome desde a criação do parque. Somente em 1980 o parque nacional passou se chamar Denali (a montanha só foi oficialmente renomeada para Denali em 2015).

O movimento de descolonização do PND parte do questionamento das origens do nome e problematiza, também, as práticas coloniais que esse nome carrega. Destaca-se o fato de que a palavra “descobrimento” é antropocêntrica – enfatiza a presunção de superioridade das ações humanas sobre múltiplas formas de vida que coexistem no Parque. É etnocêntrica – destaca um modo de dominação de um determinado grupo étnico sobre outros grupos, outros povos, outros seres vivos. É homogeneizadora – fixa o sentido da história a partir do início da colonização portuguesa. A produção do termo “descobrimento” atualiza também as práticas dominação de gabinete sobre a vasta diversidade socioambiental constitutiva da vida pública em escalas locais e planetárias.

Desde o início das discussões, no mês de fevereiro, conforme destacado anteriormente, várias ações foram realizadas. No mês de agosto ocorreu uma reflexão sobre o tema da descolonização no âmbito do Conselho Consultivo do Parque e com a colaboração do Prof. Dr. Álamo Pimentel, da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Naquele encontro foi composto um Grupo de Trabalho (GT) para propor e executar uma série de ações voltadas para o debate público sobre a mudança do nome do Parque.

O plano de ações proposto pelo GT foi avaliado e aprimorado em outra reunião do conselho consultivo e posto em execução desde o mês de setembro. A agenda proposta inclui atividades presenciais e remotas de consulta quanto à possibilidade de mudanças do nome, bem como à ampla (e participativa) proposição de outros nomes.

No mês de outubro foram realizadas atividades de Escutas Sociais junto a comunidades da sede e dos distritos de Cumuruxatiba e Guarani do município do Prado (BA). Foram quatro encontros presenciais com a participação de mais de 200 pessoas. Em 30 de outubro foi lançada uma enquete online, para que a sociedade toda possa participar desse processo, manifestando sua opinião sobre esse processo e sugerindo possíveis nomes para essa área protegida – quais nomes poderiam representar toda a riqueza que esse parque abriga? A consulta remota se encerra no dia 22 de novembro.

No dia 1o de dezembro será realizada uma audiência pública na sede da Câmara de Vereadores do município do Prado. Nesse evento serão apresentados os resultados das jornadas de descolonização do nome do PND. A última reunião ordinária do Conselho Consultivo do Parque, a ocorrer ainda no mês de dezembro, deverá apreciar os resultados de todo o processo, consolidá-los e enviá-los para as instâncias superiores do Governo Federal.

Espera-se que esse movimento represente muito mais que uma alteração de nome, que ajude a alavancar no Brasil a discussão sobre heranças colonialistas – incluindo nomeações – que se incorporaram ao cotidiano e passaram a ser normalizadas. Quais práticas já existiam antes da chegada dos europeus ao país?

Participe da enquete online! Disponível em https://abrir.link/yL2Wx ou pelo código QR abaixo

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Álamo Pimentel

    Professor Titular do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (IHAC) e do Programa de Pós Graduação em Estado e Sociedade (PPGES) da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Campus de Porto Seguro.

  • Juliana Fukuda

    Analista ambiental do ICMBio e a atual chefe do Parque Nacional do Descobrimento.

Leia também

Colunas
20 de fevereiro de 2020

Será que o primeiro morro avistado pelos europeus no Brasil ficará pelado?

Índios, ambientalistas, o setor do turismo e outros se organizam, agem e pedem apoio e reação governamental! Índios se organizam para tentar controlar a saída de madeira

Colunas
6 de agosto de 2017

O Brasil no caminho das trilhas de longo curso

No séc XVIII, Lavoisier cunhou a frase “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Mais tarde, a galhofa brasileira aperfeiçoou a máxima para “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se copia”

Salada Verde
11 de outubro de 2023

Governo joga decisão sobre projeto na ilha de Boipeba para fim do ano

Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos mantém por mais 60 dias o embargo ao Ponta dos Castelhanos

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Comentários 5

  1. Marcelo diz:

    Ideia meio debiloide. O termo “descobrimento” é perfeitamente neutro, pois indica que os europeus descobriram a região, que obviamente era habitada. A mania do ” politicamente correto” sempre encontra pelo em ovo.


  2. Hiago diz:

    Acho importante que o nome do Parque seja definido pela comunidade dos municípios em que ele faz parte, incluindo todos os habitantes, mas a defesa da ideia de “descolonização”, como feita no texto, é bizarra. O “Brasil”, que não era Brasil ainda, foi descoberto pelo portugueses, pois estes não sabiam da existência dessas terras. Para os indígenas, um descobrimento de que tinha gente do outro lado do oceano. Depois, sim, invasões portuguesas, espanholas, francesas, holandesas, etc, em muitas ocasiões em aliança com indígenas. Basta um tantinho de História. Querem mudar, beleza, prerrogativa da população afetada, até mesmo para integrá-los com a gestão da UC. Mas toda a enrolação descolonial, descobrimento vs invasão e por aí vai…um tanto cansado.


  3. Ronaldo Freitas Oliveira diz:

    Debate fundamental a toda sociedade brasileira, particularmente à parcela vivente naquele belo e complexo pedaço de Pindorama, hoje Brasil.

    O processo recoloca o debate da história do lugar e seus povos, da construção colonial da sociedade brasileira, resgatando a importância de todos os povos que a ergueram, com ênfase no questionamento da hierarquia imposta por quem invadiu a fogo, ferro e doenças.


    1. JOSE FRIAS MACEDO MOTA diz:

      Com base nisso, vamos rever toda a história da humanidade, pois a história foi feita de invasões, guerras, etc.
      Vamos deixar de mimi e focar no que interessa.


      1. João Geraldo Cardoso dos Santos Souza diz:

        Me diga então o que interessa, de fato, pelo o que milhões de brasileiros acordam e vão dormir todos os dias. O que e tão poderoso a ponto de mover 200 milhões de pessoas; Em minha opinião além das mazelas que permeiam nossa população, o que nos move realmente e ter a oportunidade de desfrutar de um lugar ao sol, de reconhecimento, de ter seu nome escrito e eternizado nos livros de historia como aquilo que você realmente é.