No dia 16 de novembro partimos com um grupo de pesquisadores especialistas em herpetofauna (répteis, anfíbios), ictiofauna (peixes), pequenos mamíferos, morcegos e xenarthra, na Expedição de Biodiversidade à Reserva Natural Serra do Tombador, cujo objetivo era conhecer melhora fauna de uma região ainda pouco explorada pela ciência, localizada em um dos biomas mais ameaçados do Brasil, o Cerrado. A Reserva Natural Serra do Tombador (RNST) fica no Nordeste do estado de Goiás. Ela é importante pela relevância biológica da região, especialmente a proximidade com o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. A grande diversidade de ambientes associada à localização da Reserva em um centro de endemismo para vertebrados terrestres chamado Vão do Paranã, faz com que a RNST apresente espécies de fauna de vital importância para a conservação da biodiversidade brasileira.
Nos poucos estudos realizados na região foram encontradas pelo menos 20 espécies endêmicas do Cerrado, além de mais de 10 espécies ameaçadas de extinção, dentre eles o pato-mergulhão (Mergusoctocetaceus), espécie rara, citada pelos especialistas como globalmente ameaçada.
Outro aspecto que demonstra a significância da área para a conservação é o fato de abrigar os principais predadores de topo de cadeia do bioma Cerrado, como a onça-pintada e a onça-parda, atestando a existência de populações estáveis de suas presas, principalmente a anta e algumas espécies de cervídeos como o veado-campeiro, veado-catingueiro e o veado-mateiro.
De acordo com o plano de manejo da Reserva, “a área conserva notável relevância ambiental, em vista da sua extensão, da diversidade de habitats e da integridade dos seus atributos – atestada pela riqueza da flora e da fauna presentes”.
O relevo e componentes de fauna e flora são diferentes daqueles presentes na Chapada dos Veadeiros, que é semelhante ao que existia na região da Serra da Mesa antes da formação do reservatório, e que não está presente em nenhuma das unidades de conservação de proteção integral do Cerrado.
Saí de casa às 4h30 da manhã rumo ao aeroporto. Meu vôo para Brasília seria o trecho mais rápido da longa trajetória até a Reserva Natural Serra do Tombador.Em Brasília, encontramos o restante da equipe para que pudéssemos acomodar os equipamentos e mantimentos necessários para os 12 dias de expedição.Éramos 15 pessoas divididas em um comboio de cinco carros. Seguimos no sentido Alto Paraíso para encontrar o último integrante da expedição: o fotógrafo André Dib. De lá, seguimos para Cavalcante, onde 90 km de estrada de terra, pontes estreitas e travessias de rios nos esperavam para que pudéssemos chegar à Reserva. Chegamos às 22 horas e fizemos um mutirão para descarregar os carros e nos organizarmos nos quartos. Com a animação atrapalhando o sono, ainda fizemos uma pequena apresentação da equipe, para debater as expectativas da expedição.
Em campo
Às 6h00 do primeiro dia todos já estavam acordados organizando equipamentos e mochilas, discutindo as rotas no mapa, entre um gole de café e outro, ávidos para a missão do dia: reconhecimento da área de estudo. A ideia era conhecer a maior diversidade de ambientes que fosse possível encaixar na logística de campo dos próximos dias. De início,percorremos a trilha do Rio Conceição em busca de fragmentos de Mata de Galeria e Cerrado Rupestre. Descemos as encostas brilhantes de quartzito que se afunilam em um canyon e formam a cachoeira do Rio Conceição. No caminho vimos um veado passeando tranquilo, tão à vontade,que mesmo com todo o barulho da tropa de pesquisadores que chegava, demorou a se esconder.Na parte baixa da cachoeira, a equipe de ictiofauna fez uma primeira coleta e verificou a presença de uma espécie que consta na lista de espécies aquáticas ameaçadas de extinção, a pirapitinga. O grupo de herpetofauna voltaria à noite atrás de sapos, rãs, pererecas e serpentes.Ainda antes do almoço seguimos para o sul da Reserva e subimos a pé o córrego dos pintos, atrás de habitats de morcegos. Depois, seguimos pelo caminho dos bandeirantes a nordeste, de onde seria possível acessar, de duas formas, o Rio Santa Rita.Em caminhadas ao longo do dia fomos, aos poucos, desbravando aquele pedaço ainda desconhecido de Cerrado e nos aclimatando para as incursões do dia seguinte. No final do 1º dia, a mistura das recém-chegadas chuvas como sol nos presenteou com um duplo arco-íris e um belíssimo entardecer.
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Sobrevôo
O dia seguinte começou cedo e às 6h40 estávamos partindo em um voo de balão movido pelo vento sul, rumo às áreas mais remotas da Reserva. Todos acordaram para tirar fotos e ver o balão diminuir no céu.Durante uma hora de voo sobrevoamos trechos de Cerrado, Cerradão, Veredas, Floresta Estacional e Cerrado Rupestre, comprovando a beleza da mistura de paisagem da Reserva. A Serra do Tombador se aproximava como uma onda verde que engolia uma encosta florestada e íngreme, atravessada de balão. Após duas horas de voo, descemos em uma pequena comunidade chamada Vão da Horta, onde fomos recepcionados pelo Sr. Gercino, morador da região. Ele nos ajudou a carregar o balão até uma área que facilitasse o resgate. No pouco tempo de conversa com ele, soubemos que conhecia a equipe, pois havia ajudado no combate ao fogo na região, há dois anos. A pequena fazenda tinha uma sede a cerca de um quilômetro dali onde, de acordo com o Sr. Gercino, poderíamos usar o telefone. A casinha era rústica e tinha o estilo quilombola,com paredes de adobe e telhado de palha, com um pequeno pomar de mangueiras atrás. Conseguimos chamar o resgate e aproveitamos o tempo da espera para colher mangas e nos deliciarmos com a doçura da fruta comida no pé. Seu Gercino se despediu de nós com um arroz e feijão feito no fogão a lenha, que ele mesmo preparou.
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Os dias se passaram e aos poucos fomos nos adaptando à logística da expedição. Cada grupo trabalhava em um horário. O “vai e volta” das equipes às diferentes áreas da Reserva se incorporou à rotina. Os pesquisadores chegavam e saíam do alojamento com novos registros e, entre turnos e contra turnos, conhecemos cada canto de uma das maiores RPPNs de Cerrado do Brasil, compartilhando a vibração e experiência dos pesquisadores e, claro, fazendo novos amigos, pois nada melhor que uma noite em claro no campo para nos conhecermos melhor.
Fim da primeira semana
Após uma semana de expedição, parte da equipe estava de partida.O dia amanheceu com ar de despedida e correria, tudo para dar tempo de fechar as pendências a tempo.A equipe de ictiofauna estava finalizando as coletas em campo e aproveitamos para acompanhá-los até a divisa, no Rio Santa Rita. Chegamos de carro até onde era possível e descemos o restante do caminho a pé.O sol estava escaldante e, ao contrário da última vez em que estive lá, o rio estava turvo e volumoso devido às fortes chuvas do dia anterior.
Os pesquisadores entraram no rio com as redes e me avisaram que no outro lado havia uma cobra coral. Dei um jeito de atravessar o rio pulando pedras e subindo em galhos para fotografá-la. Era muito pequena e estava ingerindo uma cobra quase do tamanho dela. Mais tarde fui descobrir que esse era o primeiro registro de coral verdadeira. Reuber Brandão, conseguiu distinguir também a cobra que estava sendo deglutida, totalizando assim 2 novos registros. Mais tarde, montamos um cenário de troncos para fotografar os sapos, rãs e pererecas encontrados durante a campanha da noite anterior. A diversidade de espécies e cores era incrível. Uma pequena mostra da biodiversidade que aos poucos se revelava. Reuber partiu na expectativa de que nos próximos dias encontrássemos o Allobates goianus, espécie endêmica do Brasil,com ocorrência restrita à região da Chapada dos Veadeiros — com um registro em Silvânio. A espécie é classificada como vulnerável na lista de espécies ameaçadas da IUCN, entretanto, conseguimos registrá-la na mesma noite.
Hora de partir para o pequi, uma área de Cerrado Rupestre a sudeste da Reserva, para mais uma noite em campo com a equipe de morcegos. Enquanto o grupo de morcegos abria as redes de espera, saí com Alexandre Podestá, especialista em xenartra, para buscar vestígios de tatus e tamanduás.
A noite estava fria e agradável, com chuvas intermitentes. Registramos uma nova espécie de morcego nectívoro, ou seja, que se alimenta do néctar das flores,de grande importância para a polinização de algumas espécies do Cerrado. Era pequeno e estava coma língua verde, provavelmente a mesma da planta da qual estava se alimentando antes de ser capturado na rede. Nesta noite registramos três espécies diferentes, uma delas, a Glossophaga soricina, também conhecida como morcego-beija-flor, ainda inédita na reserva. À meia-noite desarmamos as redes para dormir.
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Morros e veredas
O dia nublado estava propício para avistar mamíferos de médio e grande porte. Saímos para fotografar. A equipe de xenartrairia até a mata do Borá e aproveitamos a carona para caminhar pela parte central da Reserva, contornando as morrarias para acessar a Vereda das Araras, uma das maiores da área. No caminho, vimos muitos vestígios de tatu e, com as aulas de Alexandre na véspera, pudemos diferenciar as tocas de cada espécie. Encontramos também uma quantidade de rastros recentes de anta, despertando um sentimento bacana de estar próximos ao maior mamífero terrestre do Brasil!
Percorremos um trecho de Cerrado arborizado e denso, depois uma campina com árvores mais esparsas e começamos a descer o vale até chegar às veredas. Os buritis já podiam ser vistos de longe e as buritiranas também, com seus troncos mais finos, porte menor e muitos espinhos. Passamos pelo olho d’água borbulhante de águas frescas e cristalinas na borda da vereda. A água refletia os buritis, como um espelho.
À tarde saímos rumo ao caminho do Bora, para revisar os “pitfalls” (armadilhas de interceptação e queda que consistem em recipientes enterrados no solo e interligados por cercas-guia (driftlence). Quando um pequeno animal se depara com a cerca, geralmente a acompanha, até eventualmente cair no recipiente mais próximo. Estas armadilhas são amplamente utilizadas para a amostragem de anfíbios, répteis e pequenos mamíferos) que o Reuber havia instalado. A equipe de morcegos foi conhecer a área e assim encontramos uma ótima oportunidade de amostrar novamente o Cerrado Rupestre, pois apesar de parecido, a variação de altitude em relação ao local de amostragem do dia anterior e a quantidade de afloramentos rochosos, paredões, encostas e gretas propiciavam um ambiente provável para registrar espécies de morcegos que habitam afloramentos.
A equipe de pequenos mamíferos estava atrás de vestígios de mocó, mas a sagacidade e o olfato aguçado deste pequeno roedor o permite pressentir a presença do predador e de humanos a longas distâncias. Não tivemos sucesso.As redes de neblina foram armadas e estavam prontas para o nosso retorno noturno, enquanto a equipe de herpetoamostrava um pequeno vale buscando em poças espécies diurnas, que já começavam a vocalizar.
Trocamos as pilhas das lanternas, carregamos os rádios, passamos mais uma térmica de café e partimos para mais uma noite de expedição. Deixamos a equipe de herpeto fauna em um córrego mais próximo da estrada principal, pois estes viriam caminhando na busca ativa de rãs, sapos e pererecas até o nosso ponto de amostragem.
O pôr do sol estava carregado e dramático. Abrimos as redes e esperamos os morcegos começarem a cair. Esta noite foram registradas mais três novas espécies de morcegos. Dentre outras espécies, a equipe de herpeto encontrou a simpática Phylomedusa oreades, uma espécie de perereca arborícola endêmica do Cerrado, que se reproduz em riachos margeados com mata de galeria e é relativamente rara.
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Tatus, morcegos e roedores
A descoberta de novas espécies mantinha o ânimo dos pesquisadores da expedição dia após dia. As estações improvisadas na varanda do alojamento se transformaram em laboratórios científicos que, enquanto havia luz natural, eram utilizados para registrar e descrever as espécies encontradas. Nas buscas diurnas, a equipe de xenartra encontrou dois tatus-do-rabo-mole (Cabassous unicinctus), espécie que ainda não havia sido registrada na Reserva. Das cinco espécies de tatus encontradas por lá, uma delas consta nas listas nacional e mundial de espécies ameaçadas de extinção, classificada como vulnerável: o tatu canastra, a maior espécie de tatu existente no mundo, podendo chegar a 1,5 metro de comprimento e pesar até 60 kg!Apesar disso, é um dos mamíferos de grande porte menos conhecidos do Brasil. Portanto, é prioridade a ampliação de pesquisas científicas para subsidiar o manejo e conservação desta espécie.
Ao longo da expedição, a equipe de pequenos mamíferos registrou três espécies de roedores ainda inéditos na RNST. Os roedores respondem por cerca de 40% da diversidade de mamíferos no mundo e são elementos-chave dos ecossistemas, importantes para processos como manutenção dos solos, dispersão de sementes e polinização.
A equipe de morcegos também encontrou uma grande diversidade de espécies, principalmente em áreas de Cerrado Rupestre! Dentre elas,o morceguinho-do-cerrado (Lonchophylla dekeiseri), uma espécie nectívora endêmica do bioma e que ocorre em baixíssima densidade. Este morcego é classificado como “vulnerável” na lista das espécies da fauna brasileira ameaçada de extinção.
No penúltimo dia de expedição partimos para a Mata do Borá, uma área de floresta estacional semi-decidual localizada em um dos lugares mais remotos do Tombador. Lá,encontramos uma serpente arborícola rara, a dorme-dorme (Imantodes Cenchoa), além de outras espécies de anfíbios. Quando chegamos, o acampamento já estava montado pela equipe da Reserva, que havia levado os equipamentos com as ajuda das mulas durante a tarde. No começo da noite,os grupos se prepararam para mais uma noite de amostragem. As buscas não paravam entre as visitas às redes de neblina e o vai e vem da equipe de herpeto. Mais tarde jantamos um feijão tropeiro preparado com carinho pelo Didi, um dos funcionários da Reserva, e continuamos com as frentes de trabalho até 1h da manhã. Ao som de uma sinfonia de sapos, deitamos nas redes exaustos e felizes com os resultados.
Mesmo com o cansaço da noite na mata e o longo caminho de volta do Borá, tínhamos uma última missão: buscar mais informações para descrever a mais nova espécie encontrada na Reserva, uma pequena rãzinha verde.
Chegamos ao fim. Apesar do corpo cansado, a alma do grupo estava renovada pela beleza e diversidade que este pedaço de Cerrado revelou ao longo de 12 dias de expedição. A expedição trouxe o registro de mais de 40 espécies que ainda não haviam sido registradas na Reserva Natural Serra do Tombador. O Cerrado que esverdeava a cada chuva exibia nuances de cores perfeitamente harmonizadas com o pôr do sol de tons alaranjados, seguido pela imensidão estrelada ao cair da noite, hora em que a vida selvagem expressa a sua existência nas diferentes formas e tons de vocalização.
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