Análises

Humanos não só extinguem, cobram pedágio da saúde e comportamento dos animais

Não estamos apenas eliminando espécies, mas alterando como elas se comportam, quem elas são e mudando as regras do jogo no meio da partida

Bernardo Araujo ·
30 de agosto de 2016 · 8 anos atrás
ave_estrada
Estradas interferem na migração, peso e comportamento das aves

Toda vez que pensamos nos impactos da civilização humana sobre outros animais, tendemos a pensar em perdas. Essas podem ser as perdas das espécies que extinguimos, as perdas dos habitats que destruímos, ou de indivíduos abatidos por caça, pesca ou retaliação. Mas isso não é tudo. O resultado da interação ser humano-natureza é mais destrutivo do que uma coleção de ausências. Não afetamos apenas se animais estão presentes ou não. Alteramos como eles pensam, e como eles são. Um exemplo vem das estradas.

A cacofonia e poluição presentes em grandes centros urbanos podem estar geograficamente concentrados, mas estradas estão muito bem espalhadas por quase toda a superfície terrestre. Estima-se que, em 83% do território dos EUA, qualquer lugar está a menos de 1km de uma estrada. Os EUA são o campeão mundial em quilometragem de rede viária, enquanto o Brasil fica numa “honrosa” 4a colocação nesse ranking, tendo um pouco mais de um quarto da quantidade de vias dos EUA. Vários ecólogos têm alertado – com muita razão – para a magnitude do problema de atropelamento de fauna. Mas os impactos de estradas vão além disso.

Estradas no caminho das aves

“Medidas revelaram que os pássaros que paravam próximos à “estrada” recobravam o peso perdido ao longo de sua viagem numa taxa mais lenta do que os pássaros em locais mais distantes”.

Num artigo publicado esse mês na revista Animal Conservation, um grupo de pesquisadores teve a brilhante ideia de testar os impactos de uma “estrada fantasma” sobre a comunidade de aves migratórias no estado de Idaho, EUA. Fantasma porque ela só existe na percepção das aves. Os cientistas espalharam 15 pares de caixas de som que simulavam a passagem de 720 veículos por hora, um tráfego similar ao das áreas protegidas mais visitadas do mundo, e compararam as aves migratórias que passavam por essa região com as de um local mais afastado.

Os resultados foram surpreendentes. Sim, as aves pareciam evitar a zona mais barulhenta. As aves mais jovens inclusive pareciam evitar mais esses locais que adultos, talvez pela sua própria inexperiência e medo. Mas a qualidade do ambiente em si declinou nas proximidades de sons de carro. Diversas aves precisam passar alguns dias em habitats temporários ao longo de sua migração para comer e descansar. Medidas revelaram que os pássaros que paravam próximos à “estrada” recobravam o peso perdido ao longo de sua viagem numa taxa mais lenta do que os pássaros em locais mais distantes. As mesmas espécies continuaram passando por lugares com e sem ruído, mas as aves que escolhiam locais com sons de carro tinham que passar mais tempo nesses lugares e prolongar sua migração, ou deixar seu ponto de parada antes de estarem recuperadas.

A chave para entender esse fenômeno não está nas características físicas do ambiente em si, mas no comportamento das aves que muda quando elas convivem com estradas. Na presença de barulhos de carros, os pássaros não podem contar tanto com sua audição para detectar predadores, e precisam usar muito mais os seus olhos. A conta é simples: mais tempo gasto vigiando significa, no fim do dia, menos tempo comendo, e um saldo de ganho de energia mais baixo.

Maus vizinhos

“Nas montanhas Santa Cruz, na Califórnia, (…) raposas, linces e coiotes estavam mais ativos durante os mesmos horários em locais com maior presença humana”.

A influência de ruídos e presença humana sobre o comportamento animal não são novidade. Estudos passados já demonstraram seus efeitos sobre vocalizações, estrutura de comunidades, distribuição espacial, sucesso reprodutivo e mais. No Parque Nacional Kaeng Krachan, na Tailândia, leopardos são mais presentes e ativos em pontos da reserva mais distantes de vilarejos e locais muito visitados por humanos, mesmo quando suas presas não seguem essa mesma distribuição na paisagem. A caça também não parece afetar a população o suficiente para explicar esse padrão. Os leopardos estão ativamente evitando locais onde a presença humana é frequente. Isso se torna ainda mais evidente quando olhamos para além da distribuição desses animais no parque. Os felinos que se encontram mais próximos da civilização humana são também os que ficam mais ativos à noite. Além de evitar dividir espaço com pessoas, os leopardos também evitam compartilhar os mesmos horários, entrando em ação quando seres humanos estão recolhidos em suas casas.

Mudar de um padrão de atividade diurno para um padrão noturno (ou vice-versa) é uma estratégia frequente para se evitar problemas no mundo animal. Ela já foi detectada em cervos no Japão, capivaras na América do Sul e ursos do sol em Sumatra. O problema é que esse tipo de alteração está longe de ser inconsequente. Nas montanhas Santa Cruz, na Califórnia, um grupo de pesquisadores investigando as relações entre atividade humana e grandes e médios predadores averiguou que raposas, linces e coiotes estavam mais ativos durante os mesmos horários (noite, mais uma vez) em locais com maior presença humana. No entanto, para esses predadores, movimentar-se em horários diferentes é uma estratégia evolutiva importante para minimizar conflitos. O aumento na atividade noturna de coiotes e linces pode trazer problemas para a população de raposas, ainda que essa relação específica ainda não tenha sido estudada.

Talvez mais problemático ainda seja a possibilidade de que carnívoros, tendo seu horário de atividade empurrado para a noite, deixem de exercer controle sobre as populações de presas que continuam ativas durante o dia. O mundo está cheio de exemplos de como predadores, especialmente os de topo, são importantes para o funcionamento de um ecossistema. Para quem desconhece o fenômeno, basta observar as mudanças trazidas pela reintrodução de lobos no Parque Nacional de Yellowstone. Do ponto de vista de uma presa, um predador que não está ativo num momento do dia no qual ele pode caçá-la é um predador que simplesmente não está lá. Mesmo estando presente no ambiente, um animal pode ser incapaz de cumprir parte de sua função ecológica.

Indefesos

“Como a caça ilegal de elefantes normalmente objetiva a extração de marfim, elefantes sem presa acabam por ter uma sobrevivência maior, e mais oportunidades de se reproduzirem e passarem seus genes adiante”.

O comportamento não é a única coisa que a influência humana pode alterar. Já faz algumas décadas que o aumento do número de elefantes sem presas se tornou notório em algumas populações da África, como já foi mostrado no próprio oeco. As populações com o maior número de elefantes sem presas são justamente aquelas com um histórico de caça intensa por marfim, como nos Parques Nacionais Luangwa Norte e Sul, na Zambia, e a Reserva de Vida Selvagem de Vwaza, em Malawi. O gene (ou genes, não se sabe ao certo) responsável pela ausência de presas é expresso muito raramente em populações naturais de elefantes africanos, normalmente em fêmeas. No entanto, como a caça ilegal de elefantes normalmente objetiva a extração de marfim, elefantes sem presa acabam por ter uma sobrevivência maior, e mais oportunidades de se reproduzirem e passarem seus genes adiante. O resultado: essas populações tem entre 20 e 30% de suas fêmeas banguelas, enquanto que populações livres de caça possuem entre 0 e 4% (os dados são de 2007).

Essas alterações trazem consequências para os elefantes. Esses animais utilizam suas presas para marcar árvores, cavar o chão atrás de água ou raízes, para lutar e se defender. Isso sem contar a importância das presas para a seleção de parceiros. Animais sem presa ficam em clara desvantagem em todos esses aspectos. Até mesmo sua capacidade de derrubar árvores e remover arbustos é afetada, e essa é uma função importante para o próprio ambiente onde vivem. Elefantes podem controlar a população de espécies arbóreas em prol de gramíneas e outras plantas menores. O hábito de cavar a terra com as presas em busca de água em estações secas também gera repercussões para outras espécies, ajudando-as a obter esse recurso.

Por fim, se desaparecimento de partes do corpo não são surpreendentes o suficiente, um estudo publicado esse ano na revista Biology Letters demonstrou que ambientes antropizados podem influenciar no envelhecimento de aves. Os pesquisadores misturaram as proles de 32 ninhos de melharucos (Parus major); 16 localizados em ambiente urbano e 16 em ambiente rural, nas cidades de Malmö e Vomb no sul da Suécia. Após esse embaralhamento, todos os ninhos foram monitorados e uma pequena quantidade de sangue foi coletada das jovens aves após 2 semanas. Essa coleta objetivava a análise do comprimento de uma micro-estrutura: telômeros.

Telômeros são repetições de nucleotídeos (aqueles A, T, C e G que formam nosso DNA, se você se lembra muito bem de suas aulas de biologia do ensino médio) localizadas nas pontas dos cromossomos. Essa estrutura está fortemente relacionada com a senescência celular, e seu encurtamento com o processo de envelhecimento em si. A essa altura você provavelmente já sabe onde vamos chegar. Melharucos que cresceram em ambientes urbanos, independente de sua origem real ser urbana ou silvestre, apresentaram telômeros mais curtos que as aves que cresceram longe de nossa civilização de concreto. Devemos sempre tomar resultados de estudos pioneiros como este com cuidado, mas isso sugere que o barulho e poluição de ambientes urbanos podem ter sérias consequências para a longevidade de aves e sabe-se lá que outras espécies; talvez mesmo a de certo primata.

Esses são apenas exemplos pontuais de como podemos modificar a natureza ao nosso redor sem remover nenhuma espécie. É claro, nem toda espécie com a qual interagimos vai estar sujeita a mudanças como estas, e nem toda mudança necessariamente vem para pior. Muitos animais estão se adaptando à vida em ambientes urbanos, e acumulando características que vão permitir sua sobrevivência num mundo dominado por nós. Mas a nossa presença quase ubíqua e constante avanço sobre ambientes naturais garante que mais mudanças desvantajosas vão acontecer.

Nós não estamos apenas extinguindo espécies e destruindo seu habitat. Estamos alterando como elas se comportam, quem elas são; mudando as regras do jogo no meio da partida. E num momento em que nos atentamos cada vez mais para a importância que cada animal tem em seu ecossistema, cabe lembrar que não basta que elefantes, leopardos e melharucos estejam presentes. É necessário que eles ainda se pareçam e se comportem como elefantes, leopardos e melharucos.

 

 

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  • Bernardo Araujo

    Bernardo Araujo é ecólogo, conservacionista e comunicador científico.

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Comentários 3

  1. Fabio diz:

    Excelente texto! O impacto humano vai muito alem das motosserras, tratores e espingardas.


  2. Fernando Fernandez diz:

    Um ponto de vista novo, um alerta pertinente e importante, e um excelente texto. Obrigado, Bernardo, e parabéns.


  3. paulo diz:

    O que vale é "Pogresssso"