“Quando eu era jovem, não passava pela cabeça de ninguém aqui da região [de Varre-Sai, RJ] a ideia de preservação, de conservação ambiental; todos pensavam, sim, em aumentar a área plantada e em aumentar a produtividade. Eu mesmo ajudei a derrubar muita árvore para dar espaço ao plantio de café. Mas em 1978, comprei o sítio onde ainda vivo. Nele existia uma boa parte de mata. Vivendo perto da mata, comecei a observar os animais que lá viviam: pacas, jaguatirica, cachorro-do-mato, mão-pelada, irara, trinca-ferro, sabiá, canário-da-terra, coleiro… Percebi que não precisava acabar com o habitat desses animais para conseguir viver e que viveria melhor tendo eles como vizinhos. Então, decidi que a mata não seria mexida.” (Jose Almeida de Oliveira, proprietário da RPPN Xodó em Varre-Sai, RJ).
A tragédia das áreas de uso comum
Em 1968, Garrett Hardin, professor de Zoologia na Universidade da Califórnia, escreveu um artigo que seria um dos mais importantes da Biologia da Conservação, até hoje citado. Em “A tragédia dos comuns” (The tragedy of the commons), Hardin traz à luz o problema do uso dos recursos naturais por uma população crescente em um mundo finito. O problema é ilustrado por um cenário simples e intuitivo. Imaginemos uma área de pastagem onde seja possível, para qualquer fazendeiro, domesticar animais irrestritamente. Sem restrições, cada um coloca tantas quantas cabeças de gado quiser, sempre se perguntando: “Que utilidade teria para mim acrescentar mais um animal ao meu rebanho?”. A resposta, claro, leva o fazendeiro a tomar tal atitude, uma vez que lucra com a venda dos animais e seus produtos. Mas, será que existe algum ônus a partir dessa atitude? O ônus é a exploração e degradação do pasto (pelo consumo de grama e pisoteio, por exemplo), mas com um balanço positivo para esse fazendeiro em particular. O lucro de ter uma cabeça de gado a mais é todo dele, mas o ônus que o uso que esse animal faz do pasto é dividido entre todos. Tendo em vista a maximização do lucro, logo todos os fazendeiros aderem à mesma prática, o que eventualmente culmina na sobreexploração do pasto e o fim da fonte de alimento dos animais e, consequentemente, da renda de todos.
Hardin classificou essa dinâmica como tragédia, não por sua natureza melancólica, mas por sua inevitabilidade. Romeu e Julieta não estavam destinados a ficarem juntos, não importa o quanto tentassem e quantas barreiras estivessem dispostos a derrubar. Essa era sua tragédia. Como disse Hardin: “A ruína é o destino para o qual todos os homens caminham, cada um procurando o que é melhor para si”. Quando o prejuízo é coletivizado, apenas a natureza paga integralmente esse custo, que vem na forma de perda de habitat, desertificação, poluição e redução da biodiversidade. Hardin já pensava assim quando aplicava sua lógica às unidades de conservação, dizendo que se continuássemos a tratá-las como as áreas de uso comum, arruinaríamos os atrativos que justificam sua existência, perdendo sua utilidade. Disse, não sem colher muitas críticas por isso no futuro, que unidades de conservação particulares eram um caminho possível para redução da degradação dos ambientes naturais.
Invertendo a lógica
A criação de áreas protegidas é a estratégia de conservação mais efetiva no tocante à preservação da biodiversidade como um todo. No Brasil existem 1.545 Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs), resultando em mais de 780 mil hectares de áreas naturais protegidas. As RPPNs são, como o nome diz, reservas particulares, criadas por livre e espontânea vontade dos proprietários. A partir da criação, a porção da propriedade destinada a esse propósito possui caráter perpétuo assegurado pela Lei Federal n° 9.985/2000, garantindo o direito das gerações futuras em receber os bens ambientais de forma ecologicamente equilibrada.
No Estado do Rio de Janeiro, as RPPNs tem status de unidades de conservação de proteção integral (Decreto Estadual 40.909/2007). Sendo assim, no ato de sua criação, o proprietário abre mão do direito à exploração direta dos recursos naturais dentro de seus limites, reservando a área protegida apenas para a realização de atividades de proteção, pesquisa, educação ambiental e turismo. Além de se eximir do direito de explorar recursos naturais de maneira direta, o proprietário também se compromete com uma série de obrigações que podem vir a gerar despesas tais como instalação de cercas para isolamento de animais de grande porte da área da reserva, execução de projetos de recuperação ambiental ou ainda com custos inerentes à elaboração do plano de manejo para sua RPPN. Por outro lado, existem incentivos ao proprietário do imóvel como facilidade de acesso a linhas de crédito especiais, prioridade de análise de projetos junto ao Fundo Nacional do Meio Ambiente e a isenção do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural referente à área do imóvel.
De forma menos consolidada nacionalmente, existe também uma mobilização do governo para facilitar o repasse do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços e o Pagamento por Serviços Ambientais aos proprietários. No Estado do Rio de Janeiro, o Instituto Estadual do Ambiente (Inea), já tem um Programa consolidado de incentivo à criação de RPPNs (Programa Estadual de Reservas Particulares do Patrimônio Natural), que já vem de 10 anos de experiência. Na atual fase, o Programa pretende preencher dois grandes gargalos à criação de RPPNs no Estado, fornecendo a realização do georreferenciamento das propriedades, considerando o custo elevado de contratação do serviço de topografia e a elaboração direta dos planos de manejo. Infelizmente, pondo-se tudo em uma balança, atualmente os ônus ao proprietário ainda são maiores do que os benefícios. Esses ônus, somados ao caráter voluntário da criação, mostram que não há outra forma de ver o surgimento de uma RPPN se não como um ato de amor à natureza. A criação de uma RPPN inverte a lógica da tragédia dos comuns, individualizando os prejuízos e coletivizando os benefícios de um ambiente natural equilibrado e que fornece serviços ecossistêmicos a toda população.
“A ideia de transformar em RPPN nossa pequena propriedade […] veio a partir da vontade, necessidade e compreensão de se preservar e conservar as espécies […]. Os projetos e a presença de nossa reserva na região surtem efeitos diretos na conservação […], mostrando que o ato de criação de uma RPPN, além de ser um ato de amor do proprietário pela natureza, simboliza um avanço do Estado em termos de políticas de conservação ambiental em terras privadas. Viva as RPPNs! Viva a Mata Atlântica! Um abraço para todos.” (Rafael Martins, proprietário da RPPN Bicho Preguiça na Serra do Mendanha, RJ).
As RPPNs no contexto geral de áreas protegidas
Em relação à criação de áreas protegidas, o grande desafio da conservação é preservar suficientes porções de habitats naturais para salvar tantas espécies quantas forem possíveis da extinção. Sabendo das limitações que levam à impossibilidade de proteger tudo o que resta, na metade dos anos 1970 pesquisadores e conservacionistas definiram regras básicas para o planejamento da criação de áreas protegidas. A primeira dessas regras ditava que, para uma área total de tamanho fixo, uma grande reserva protegeria mais espécies do que várias reservas pequenas. Assim, surgiu o debate conhecido como SLOSS (Single Large Or Several Small, do inglês “única grande ou várias pequenas”) que discute vantagens e desvantagens de criar ou uma grande área protegida ou várias pequenas reservas para conservação da biodiversidade. Em favor de uma única grande área está o fato de que só nelas podem viver espécies que percorrem grandes distâncias em suas atividades diárias, de forma geral animais maiores, como predadores de topo. Além disso, já foi enfatizada a importância de grandes unidades de conservação como refúgios da biodiversidade, servindo como fontes de indivíduos, já que áreas maiores podem abrigar populações mais numerosas, com as taxas de extinção mais baixas. Por outro lado, várias reservas menores podem abranger uma maior diversidade de ecossistemas e funcionarem como um “caminho das pedras” (stepping stones) para conexão entre faixas contínuas de habitat natural. Até hoje, o debate SLOSS não encontrou um fim. Porém, parece ser consenso de que a estratégia de conservação deve ser pensada caso a caso e que um mosaico de grandes áreas protegidas e reservas de menor porte conectando-as pode ser o caminho mais efetivo para a conservação.
A criação de RPPNs contribui com um extremo do debate SLOSS: a presença de várias reservas pequenas. No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, aproximadamente 85% das RPPNs são menores do que 50 hectares. A criação direta de grandes unidades de conservação e o incentivo ao surgimento de RPPNs pelo governo é uma estratégia que parece estar no caminho certo para proteger o que resta da biodiversidade brasileira.
É claro, a criação de RPPNs é uma prática desejável e efetiva, mas não resolve todos os problemas. Como fonte de preservação de recursos naturais, o surgimento cada vez maior de áreas protegidas privadas pode ser uma solução, mas quando falamos de poluição, o problema é mais complexo, uma vez que rios correm por grandes extensões e a poluição do ar se espalha sem respeito às cercas. Apenas deixando os individualismos de lado e com uma estratégia de conservação integrada, encarada como uma política pública importante e, mais do que isso, como um plano de nação, será possível salvar o que resta da biodiversidade e manter os ecossistemas minimamente saudáveis.
“Há que se louvar toda e qualquer iniciativa, pública e/ou privada, que busque trazer de volta a exuberância da vida no seu todo e que, também, busque orientar tecnicamente, que a preservação e o zelo para com o ambiente, sob qualquer das formas, fazem parte do escopo pessoal de todos os terráqueos. Do contrário, está se cavando a própria sepultura, que está bastante adiantada!” (Reinaldo Antônio e Inês Furtado, proprietários da RPPN Valério Cardoso Furtado em Porciúncula, RJ).
Saiba Mais
Guagliardi, R. 2018. Programa Estadual de Reservas Particulares do Patrimônio Natural – RPPNs: 10 Anos de Apoio à Conservação da Biodiversidade. Instituto Estadual do Ambiente, 319 páginas.
Hardin, G. 1968. The tragedy of the commons. Science, 162 (3859), 1243-1248.
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Parabéns, Bruno!
Traduz bastante a nossa luta para criar espaços territoriais protegidos, de forma a agregar valores sociais a partir da preservação do patrimônio natural.
Parabéns pelo texto Bruno! Angelo Guimarães Simão – Confederação Nacional de RPPNs – Associação de Protetores de Áreas Verdes de Curitiba e Região Metropolitana – Proprietário da RPPN Refúgio Carolina – Campo Largo (PR)
Além de alguns Termos de Compromisso liderados pelo comentarista autorizando caça em Parques Nacionais em Mata atlântica. Talvez seja esta a tal da Conservação Colaborativa, rsrsrs. O estrago que este ex- presidente/diretor deixou vai se perpetuar por longos anos.
Obrigado ao Bruno, pelo excelente e oportuno texto, e a todos aqueles que criaram suas RPPNs, por ajudar a fazer o mundo um pouco melhor para todos nós, inclusive para as outras espécies que compartilham o planeta conosco.
Muito bom, Bruno Cid!
Parabéns e obrigado!
Acho que o problema da discussão "singlel large or several small" ou algo como uma “única [reserva] grande ou várias [áreas protegidas] pequenas” está no "ou".
Em primeiro lugar, ainda precisamos de "e", isto é, precisamos de mais áreas protegidas. Além disso, deve haver uma combinação de distribuição e representação da diversidade ecológica, necessária e parte dos compromissos pela “bio-diversidade”, com as grandes áreas ou corredores que permitam a sobrevivência de espécies que exigem espaços maiores, como os carnívoros de topo de cadeia alimentar.
Em segundo lugar, muitas vezes é fundamental conservar o que se tem, o que é possível, da forma que for viável, em lugar de seguir manuais teóricos, nem sempre aplicáveis em todas as situações. Áreas protegidas menores ou mais flexíveis ou por iniciativa do proprietário podem ser o melhor caminho em muitas situações, em si mesmas, isto é, considerando cada uma de forma isolada, ou nos conjuntos ou sistemas em que participam.
Finalmente, em terceiro lugar, e talvez mais importante de tudo, é que precisamos de maior envolvimento da sociedade, para podermos obter mais apoio social, político e econômico. As RPPNs representam isso! Precisamos inclusive reconhecer e agradecer, pois cada unidade de conservação em si e sobretudo os conjuntos e os sistemas são compostos e viáveis graças a um conjunto de atores sociais e parcerias que conforma a conservação colaborativa (“#CollaborativeConservation), o novíssimo e real paradigma de gestão de conjuntos de unidades de conservação.