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Publicado originalmente por Mongabay
O Brasil é internacionalmente conhecido pela sua impressionante biodiversidade. Mas há ainda outro patrimônio natural pelo qual o Brasil deveria ser reconhecido: suas cavernas. Sendo um país de dimensões continentais, e com uma rica história geológica, estima-se que o Brasil abrigue cerca de 310.000 cavernas – algumas delas entre as mais espetaculares do mundo. Assim como para a biodiversidade, a proteção das cavernas no Brasil também sempre foi uma tarefa desafiadora, especialmente considerando que muito da economia do país depende de setores com conhecidos e persistentes conflitos ambientais, como o agronegócio e a mineração. O Decreto Presidencial 99556 de 1990 determinava que todas as cavernas naturais no Brasil deveriam ser tratadas como um patrimônio cultural nacional, e, como tal, deveriam ser preservadas e conservadas. Mas em 2008, após pressões do setor mineral brasileiro, o novo Decreto 6640 foi publicado determinando que as cavernas deveriam passar por um processo de classificação podendo ter máxima, alta, média ou baixa relevância, e apenas aquelas cavernas classificadas como de máxima relevância teriam proteção integral imediata.
Embora o Decreto 6640 tenha sido mais técnico que o seu antecessor, estabelecendo, por exemplo, uma definição legal para o que é uma caverna, ele também deixou explícito que apenas as cavernas de máxima relevância seriam totalmente protegidas. Por meio de licenciamento ambiental, cavernas em outras categorias poderiam sofrer impactos negativos irreversíveis, incluindo a total destruição. O Decreto 6640 estabeleceu um sistema de compensação: duas cavernas similares deveriam ser protegidas para cada caverna de alta relevância que fosse destruída. Para as cavernas de média relevância a compensação financeira pela destruição poderia ser feita, priorizando recursos para a pesquisa e conservação em cavernas de máxima e alta relevância. O Decreto 6640 provocou um aumento dos inventários espeleológicos no Brasil: 70% das espécies troglóbias oficialmente registradas no país foram descritas após 2009. De maneira similar, o número de cavernas de máxima relevância também aumentou.
Entretanto, em janeiro de 2019, em um processo unilateral, sem a devida transparência e discussões públicas, e sem a participação da sociedade civil, o Ministério das Minas e Energia do Brasil (MME) propôs uma nova redação para o Decreto 6640 que, se aceita, abriria espaço para que as cavernas de máxima relevância pudessem ser impactadas ou mesmo destruídas. Adicionalmente, esta redação permitiria que as agências ambientais estaduais e municipais relaxassem os critérios para a classificação de relevância das cavernas. O MME mandou esta proposta de redação diretamente para o Gabinete da Presidência, o qual a remeteu para a Advocacia Geral da União, onde ela teve parecer favorável para aprovação. Esta proposta foi então encaminhada para apreciação pelo Ministério do Meio Ambiente. Entretanto, em setembro de 2020, o MME publicou o seu Plano Nacional de Mineração 2020-2023, e entre os vários objetivos citados havia uma clara intenção de alterar a legislação de proteção às cavernas brasileiras. De acordo com este plano, há uma necessidade de “aprimorar” esta legislação, mas sem nenhuma clara indicação sobre que tipo de aprimoramento seria este.
A lista de decisões que potencialmente afetam as cavernas no Brasil continua: O presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira, um aliado próximo do presidente Bolsonaro, havia declarado publicamente a sua intenção de colocar em votação projetos que afetam o licenciamento ambiental. Este controverso projeto, proposto para relaxar ainda mais os requisitos para o licenciamento ambiental no Brasil, era uma demanda de longa data de setores como o agronegócio, a mineração e construção civil. E Lira assim o fez. O projeto votado em 12 de maio, teve como relator o deputado Neri Geller, que é vice-presidente da Frente Parlamentar da Agricultura – entidade que teve um papel decisivo na implosão do Código Florestal em 2012 – e foi aprovado por 300 dos 513 deputados federais. Apesar de avisos e protestos de vários setores incluindo ONGs ambientais, parte do agronegócio, e até mesmo de integrantes dos setores de petróleo e gás, o projeto de lei aprovado restringe, enfraquece ou, em alguns casos, elimina por completo importantes instrumentos para a avaliação, prevenção e controle de impactos socioambientais decorrentes de infraestrutura e atividades econômicas no Brasil. O projeto de lei aprovado precisa agora ser sancionado pelo Senado Federal. A proposta do MME e os movimentos políticos no Congresso Federal se juntam a uma longa, alarmante e impactante lista de iniciativas similares colocadas em prática pelo governo de Jair Bolsonaro para desestruturar a legislação ambiental brasileira.
Perda potencial de biodiversidade, recursos geológicos e serviços de ecossistema
Em 2019, o setor de mineração respondia por cerca de 4% do PIB do Brasil: aproximadamente 10.000 minas legalizadas produzem cerca de 2 bilhões de toneladas de minério por ano; 87% delas são micro ou pequenas empresas (≤ 100.000 toneladas/ano), mas 154 minas alcançam mais de 1 milhão de toneladas por ano cada. Todas as minas legais no Brasil precisam passar por licenciamento ambiental. Apontar precisamente o número de cavernas de máxima relevância no Brasil não é trivial, uma vez que esta classificação pode ser feita por agências federais ou estaduais e não há uma base de dados unificada. Entretanto, baseado em uma amostra de 1400 cavernas em áreas passíveis de licenciamento ambiental, 182 tinham sido classificadas como de máxima relevância e outras 412 apontadas como cavernas-testemunho. Estes valores dão uma noção do número de cavernas que poderiam potencialmente ser impactadas pelas alterações propostas na legislação.
Cerca de 22.000 das estimadas 310.000 cavernas do Brasil estão atualmente cadastradas nas bases de dados oficiais. Se implementada, a iniciativa do MME de modificar a legislação atual colocará um patrimônio incalculável sob risco, ameaçando as mais excepcionais cavernas no país, além de milhares de suas espécies e os serviços ambientais que elas provêm. As consequências para as espécies e seus habitats serão severas. Os ambientes subterrâneos estão entre as últimas fronteiras da exploração moderna. A fauna extremamente especializada das cavernas é muito mal documentada e os ambientes subterrâneos são fontes ricas de descobertas científicas excepcionais e de pistas sobre processos e adaptações ecológicas e evolutivas. Cavernas são celeiros de espécies com extremo endemismo e frequentemente abrigam espécies conhecidas em apenas uma caverna e em nenhum outro lugar. Há atualmente cerca de 250 espécies descritas no Brasil adaptadas a viverem exclusivamente em cavernas. Estas espécies são chamadas troglóbios. E além das dezenas de troglóbios descritos todo ano no Brasil, estimativas apontam outras 800 a 1000 espécies similares aguardando por uma descrição formal pela Ciência.
Na mais recente avaliação do estado de conservação da fauna cavernícola do Brasil, 72 de uma amostra de 145 espécies ocorriam em uma única caverna. Considerando os morcegos, 72 das 181 espécies conhecidas para o Brasil já foram registradas usando cavernas, e quatro das sete espécies nacionalmente ameaçadas de morcegos dependem de cavernas como habitat. Não por acaso, a perda das cavernas e seus habitats subterrâneos é o fator que mais contribui para estas espécies estarem ameaçadas de extinção. O Brasil também abriga formações geológicas sem similares em outras partes do planeta. Raras cavernas de minério de ferro, localizadas em Carajás, na Amazônia, junto às maiores minas de minério de ferro do mundo, estão altamente ameaçadas em função da mineração. De maneira similar, grandes ambientes cavernícolas brasileiros – incluindo algumas das mais turísticas cavernas do país – estão ameaçados pelo agronegócio.
A redução da proteção das cavernas, como proposto pelo MME e pelo Congresso Nacional, não encontra suporte na literatura científica. Pelo contrário: cientistas apontam que a proteção das cavernas precisa aumentar globalmente. Tal demanda é sustentada tanto pelo valor intrínseco de conservação das espécies cavernícolas e sua fascinante história evolutiva, mas também porque está cada vez mais claro que as cavernas e sua biota provêm importantes serviços de ecossistema para nós humanos. Da remoção diária pelos morcegos cavernícolas de centenas de toneladas de insetos considerados pragas agrícolas e vetores de doenças para humanos e para rebanhos, passando pelo papel que os morcegos cavernícolas têm na polinização e dispersão de sementes de plantas de interesse comercial, os processos e interações nos quais as cavernas e suas espécies estão envolvidos têm impactos diretos na dinâmica ecológica de outros sistemas não-cavernícolas, na ciclagem de nutrientes, no fluxo de energia, e até nos processos de fixação do carbono atmosférico. Sistemas subterrâneos também participam efetivamente no suprimento, regulação e purificação da água, essenciais para a manutenção da qualidade dos recursos hídricos. No Brasil, várias cidades são supridas com água proveniente de aquíferos cársticos, um serviço que pode ser comprometido pelo enfraquecimento do sistema de proteção às cavernas. As áreas cársticas também estão diretamente envolvidas nos processos de formação e retenção de solo. Um grande número de espécies de fungos e bactérias com grande potencial biotecnológico está escondido nos ecossistemas cavernícolas. De fato, várias cavernas de máxima relevância no Brasil têm processos e estruturas únicas, desenvolvidos por atividade microbiológica, algo que é ainda pouco conhecido no país.
Arquivos paleoclimáticos preciosos estão abrigados nas paredes, pisos e tetos das cavernas brasileiras, fornecendo pistas de como o clima mudou na América do Sul nos últimos milênios. Algumas das cavernas de máxima relevância do Brasil têm também extrema importância arqueológica, ajudando-nos a entender a história da espécie humana. Luzia, o fóssil humano mais antigo encontrado na América do Sul, com cerca de 11.800 anos, foi encontrado em uma caverna em Minas Gerais. Dezenas de cavernas de máxima relevância recebem milhares de turistas anualmente no país, injetando dinheiro na economia local e permitindo o uso público deste inestimável patrimônio natural e cultural. Assim, a importância da proteção destas cavernas é muito evidenciada quando seus valores biológicos, culturais, e socioeconômicos são corretamente considerados.
As cavernas de máxima relevância do Brasil são assim classificadas exatamente porque elas contêm atributos identificados como únicos, excepcionais e insubstituíveis. Esta classificação é frequentemente feita por profissionais experientes que entendem que estas cavernas se destacam como nenhuma outra no Brasil ou no mundo. As propostas do MME e do Congresso Nacional de redefinir e reduzir o licenciamento ambiental, expondo estas cavernas de máxima relevância a impactos negativos irreversíveis, não consideram o real valor das cavernas brasileiras e ignoram a sua perda. Esta visão não está alinhada com as discussões mais modernas sobre desenvolvimento sustentável. Mais além, estas propostas violam a Política Nacional de Biodiversidade e vários tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção da Diversidade Biológica. Não é possível imaginar a possibilidade de que estas cavernas possam ser destruídas, o que seria uma perda irreparável e sem precedentes de alguns dos mais relevantes componentes naturais e culturais subterrâneos do Brasil.
Dada a importância deste assunto e das fortes consequências negativas que ele pode ter, nós defendemos fortemente que qualquer proposta de mudança nos critérios de classificação da relevância das cavernas brasileiras deveria ser precedida por um debate científico público, cuidadoso e qualificado, e jamais de maneira acelerada e unilateral, como a que está sendo conduzida pelo MME. O Congresso Federal tem a obrigação de discutir qualquer proposta pendente de maneira correta, convocando audiências públicas para debatê-las. Um arcabouço legal claro e efetivo é necessário, mas a experiência e os argumentos de profissionais e da comunidade científica brasileira precisam ser ouvidos e considerados. As propostas do MME e do Congresso Nacional contém erros e falhas conceituais e, se aprovadas, elas trarão inevitavelmente insegurança técnica e jurídica para os processos de licenciamento ambiental do setor mineral brasileiro. Neste sentido, estas propostas não podem ser consideradas consensuais, e devem ser rejeitadas. O Ano Internacional das Cavernas e do Carste não pode ser lembrado como o ano em que o Brasil abandonou e condenou seu patrimônio espeleológico.
Imagem do banner: espeleotemas na Gruta Bonita, Parque Nacional Cavernas do Peruaçu (MG). Foto: Rodrigo Lopes Ferreira.
CITAÇÕES
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