Análises

O falso discurso conservacionista do BioParque: o caso das girafas

Pela ausência de projeto de conservação, a despreocupação com a verdadeira origem dos animais e a ausência de parcerias que a importação de girafas teve motivação puramente comercial

Mauricio Forlani ·
9 de fevereiro de 2022 · 2 anos atrás

Em dezembro de 2021, ocorreu a maior importação da chamada “megafauna” selvagem (animais de grande porte) para o Brasil. Ao todo, 18 girafas foram importadas pelo grupo Cataratas, com destino ao BioParque do Rio – de acordo com a licença do sistema Siscites do IBAMA. Essa enorme importação trouxe a atenção de todos, pois o que justificaria tamanho investimento, em especial para animais da fauna exótica – animais não nativos do Brasil?

O BioParque do Rio (grupo Cataratas) está justificando seu suposto projeto de conservação argumentando que a girafa está classificada na categoria VU (vulnerável à extinção) pela União Internacional da Conservação da Natureza (IUCN). O que pouca gente sabe, é que essa categoria de ameaça não implica na necessidade de realizar ações ex situ (fora do ambiente natural), ou na criação de bancos genéticos, em especial, em outros países sem histórico de atuação na conservação da megafauna africana, tão pouco com girafas.

O que evidencia o total descaso com a conservação das girafas por parte do BioParque e do Grupo Cataratas é que eles não sabem – ou não se preocuparam em saber – qual espécie, efetivamente, eles estão importando. Hoje, já são reconhecidas 4 espécies distintas de girafas e 5 subespécies. Esse “pequeno” detalhe tem um grande impacto, pensando em estratégias de conservação, assim como no real status de conservação da espécie. Afinal, toda a argumentação do BioParque está baseada no status de conservação da IUCN de 2016, que avalia o animal sem considerar suas espécies e subespécies. Ou seja, não são consideradas as mais recentes informações sobre essas girafas.

Para justificar essa importação descabida e confundir a população com seus falsos argumentos conservacionistas, eles trazem dois exemplos de sucesso de conservação ex situ da fauna brasileira, sendo um deles o mico-leão-dourado. O outro exemplo envolve a ararinha-azul – que dispensa comentários, afinal, foi o tráfico que levou a espécie ao estado de extinção na natureza, possibilitando que ela chegasse em criadores no exterior. Sendo assim, vamos focar no caso do mico-leão-dourado que, definitivamente, é um programa de sucesso.

As diferenças entre as duas citações:

O mico-leão-dourado, atualmente, está na categoria EN (em perigo), acima de VU (vulnerável). Nas avaliações iniciais da espécie, sua categoria estava ainda mais crítica, avaliada como CR – Criticamente em perigo. Na década de 70, estudos apontavam para, aproximadamente, 200 indivíduos na natureza. Essa baixa população natural, ausência de áreas de preservação para espécie e pouco conhecimento de sua biologia, levaram a comunidade científica a formar grupos de conservação que incluíam atividade ex situ.

É importante reforçar que a estratégia de conservação ex situ (como a reprodução em cativeiro) foi idealizada por instituições de conservação como zoológicos, e tinha um objetivo claro de soltura. Além disso, serviam como referência para projetos com espécies ameaçadas – bem diferente dos objetivos comerciais de muitos zoológicos atualmente.

Fazendo um paralelo com as girafas, existem quase 100 mil indivíduos na natureza, sendo algumas populações em situação mais reduzida, mas, ainda assim, viabilizando a aplicação de ações in situ (na natureza), antes de priorizar a retirada de animais da natureza para essa finalidade. Outro ponto é que até agora não sabemos quais são as instituições de conservação de girafas envolvidas no projeto do BioParque. Até porque, as girafas foram adquiridas de vendedores de animais, e não de programas ou instituições de pesquisa, como no caso do mico-leão-dourado.

Um ponto muito importante é que no suposto programa do BioParque não podemos nem dizer qual espécie eles estão querendo trabalhar, visto que a licença traz a espécie G. camelopardalis táxon, dividida em outras 3 espécies, com distribuição e status populacional distintos.

As girafas trazidas pelo BioParque no resort em Mangaratiba. Foto: BioParque/Divulgação

Caso eles tenham importado G. camelopardalis, a girafa do norte, no Brasil os zoológicos possuem outra espécie de girafa, a girafa do sul. Assim, o que eles justificam como uma iniciativa para melhorar a genética das girafas no Brasil, na verdade, seria a criação de híbridos sem função para a conservação.

Mas vamos considerar que eles estão apenas usando a nomenclatura antiga, e que eles importaram a espécie do sul da África. Neste caso, fica ainda mais evidente a falta de argumentos. Embora essa espécie não tenha um status de conservação atualizado, os estudos da GCF (Giraffe Conservation Foudation) em parceria com a IUCN mostram que suas populações na natureza estão em expansão – cresceram quase que o dobro nos últimos anos.

Avaliando o parecer da IUCN para G. camelopardalis, não existe recomendação específica para a necessidade dessa estratégia de conservação ex situ, visto que a espécie tem populações viáveis na natureza, tendo o foco em ações in situ.

Mas a falácia da conservação não termina aí… e podemos incluir, também, o falso discurso do bem-estar – tema estampado nas páginas do BioParque. A transação, executada pelo Grupo Cataratas, importou 18 animais de vida livre! Não existe nada pior, pensando no bem-estar dos animais, do que impedir que vivam livres na natureza.

Para justificar essa barbárie e a importação ilegal perante o art. 18 da portaria de importação e exportação do Ibama, eles tentaram negar a verdadeira origem dos animais.

Primeiro negaram que os animais eram de vida livre, fato evidenciado pela licença CITES que traz a origem do animal com a letra W (wild) – retirado da natureza. Vale ressaltar que essa foi a primeira importação de girafas vivas de origem selvagem, as outras 10 importações foram de reprodução em cativeiro, sendo, no máximo, 3 indivíduos.

O novo argumento do BioParque e Grupo Cataratas visa confundir as pessoas alegando que os animais vieram de uma Fazenda de Manejo Sustentável e Desenvolvimento Comunitário. Mas é exatamente isso que estamos falando, e vamos explicar o significado disso.

Na África e em outros países, assim como no Brasil, existe esse nome bonito, de uso sustentável da biodiversidade, para práticas extremamente cruéis contra a fauna, que retiram animais da natureza de forma legal. Em uma fazenda de uso ou manejo sustentável, o proprietário é dono da terra e pode usar os animais que estão dentro de sua propriedade de diferentes formas, como caça, coleta para consumo, coleta para venda e por aí vai… Esse sistema é conhecido como Ranching, onde a legislação permite a extração de uma porcentagem dos animais da fazenda. Essa é uma prática muito comum na África, mas parece que o Grupo Cataratas não quer ver as consequências de seus atos de forma macro, sem pensar nos indivíduos envolvidos.

No Brasil, essa prática de uso “sustentável” ocorre de forma similar com jacarés e alguns peixes na Amazônia.

Um ponto interessante é que a IUCN indica que o comércio de girafas por empreendimentos deste tipo é uma via de pressão na sua conservação. Além de retirar animais da natureza, em alguns casos eles fazem translocação de indivíduos de subespécies diferentes para uma mesma propriedade, fazendo exatamente o que a biologia da conservação não quer: misturar padrões genéticos distintos. Aqui vale ressaltar que o grupo Cataratas não fez análise genética dos indivíduos importados. Desta forma, não se pode ter a certeza que qual espécie ou subespécies estamos falando, ou ainda se eles estão importando espécies híbridas.

Fica evidente, pela ausência de dados que constroem um projeto de conservação, como por exemplo, a análise genética dos indivíduos importados, a despreocupação com a verdadeira origem dos animais e a provável ausência da participação do BioParque do Rio em programas internacionais para a conservação das girafas, que essa importação não teve objetivos primário a conservação.

O Brasil é o país mais megadiverso do Planeta, mas sofremos com a falta de reconhecimento da população com nossa fauna. Crianças reconhecem elefantes, girafas e leões, antes de saber sobre antas, onças e tamanduás. Além disso, estamos perdendo nossa fauna, cada dia mais afetada pelo avanço descontrolado dos centros urbanos, expansão agrícola, e com a exploração de diversos recursos naturais.

De acordo com o MMA, existem no Brasil mais de 473 vertebrados terrestres (anfíbios, répteis, aves e mamíferos) ameaçadas de extinção, sem contar mais de 400 espécies de peixes e quase 300 de invertebrados. O Brasil abriga 3 das 25 espécies de primatas mais ameaçadas do mundo, duas delas com ocorrência para o Rio de Janeiro: o bugio-ruivo e sagui-da-serra-escuro. Mesmo assim, foi dado prioridade em investir na retirada de animais da savana africana para viverem presos em zoológicos no Brasil.

A conclusão é que está mais do que claro que essa importação teve foco no comércio dos animais, e não na sua conservação.

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Mauricio Forlani

    Biólogo, com mestrado em Zoologia pela Universidade de São Paulo. Gerente de pesquisa da AMPARA Silvestre, atuando nas agendas de bem-estar animal, comércio de animais silvestres e conservação.

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Comentários 3

  1. Everton Miranda diz:

    Na ausência do comércio desses animais, por que você supõe que o “cruel” fazendeiro sulafricano manteria girafas em sua fazenda? Naturalmente, a aquisição por parte do parque contribui sim com a conservação. Como o próprio Ibama apontou, os animais não eram de origem silvestre, e foram originados em fazendas de produção de animais silvestres na África do Sul. Isso estimula o dono da terra lá a manter as girafas. Fazer negócio também é conservação, e muitas espécies hoje tem populações grandes justamente por que existe comércio.

    O texto traz muitos problemas e nenhuma solução. Como criar programas de conservação economicamente sustentáveis para o bugio-ruivo e sagui-da-serra-escuro?

    Adicionalmente, vale lembrar que a iniciativa privada gasta seu dinheiro como quiser dentro da forma da lei, e não está sujeita a suposições e palpites de ongueiros.

    Estou desapontado com o O Eco por publicar esse tipo de texto.


    1. Márcia Caetano diz:

      O Sr. não leu corretamente a matéria ou desconhece o significado das palavras.


      1. Ana diz:

        Zoológicos são do passado. Nada justifica essa barbárie contra essas pobres girafas. O BRasil é tão retrógrado, que é incrível que as sociedades protetoras dos animais não se manifestam