O conceito de parques nacionais, conforme definido na lei que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc), e que é estendido para os parques estaduais e municipais, afirma que eles têm como objetivo básico “a preservação de ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica” e, na mesma sentença, o “desenvolvimento de atividades de educação e interpretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico”. Essa dupla função explica a sua popularidade, e para muitas pessoas essa é a única categoria de unidades de conservação que conhecem. Muitos visitantes se tornaram dedicados defensores das causas ambientais em virtude do contato com a natureza que os parques lhes proporcionaram, sendo essa uma forma de educação ambiental especialmente eficiente porque praticada de forma lúdica e direta.
Infelizmente, alguns técnicos e gestores de parques têm dificuldade de entender isso, e ainda defendem um ultrapassado conceito que veio a ser apelidado de “parques-fortaleza”, onde a visitação é sempre considerada uma ameaça e cada cidadão um inimigo em potencial do meio ambiente. Administram parques como se fossem categorias mais restritivas, descumprindo a lei e atraindo toda espécie de antipatia e ressentimento para as unidades sob sua gestão. Pensam estar obtendo mais conservação para esses espaços, quando, na verdade, conseguem exatamente o oposto.
Para implementar essa política demófoba lançam mão de diversos expedientes, mas em face de uma justa e enérgica reação de moradores do entorno e usuários dos parques a essa clara disfunção, táticas sutis são empregadas, e aprovar planos de manejo de parques como se fossem de reservas biológicas sem qualquer justificativa razoável para tal é uma das preferidas. Há muitos exemplos, mas analisemos aqui um particularmente emblemático, que beira o surreal.
O Parque Natural Municipal do Penhasco Dois Irmãos (PNMPDI) é uma minúscula unidade de 39,55 ha encravada entre a gigantesca comunidade da Rocinha e a bem menor Chácara do Céu. Ele é limitado, ainda, a leste, pelo elegante bairro do Leblon, e a oeste pelo próprio “Penhasco Dois Irmãos”, que, enigmaticamente, foi deixado fora de seus limites. Criado em 1993, ocupa uma área que na década anterior era quase toda um gigantesco capinzal devido aos sucessivos incêndios que reduziram a mata original a remanescentes minúsculos. A prefeitura da cidade reflorestou a área desde então, mas por mais competente que tenha sido o trabalho, e ele o foi, trata-se ainda de um fragmento muito mais pobre, em termos de biodiversidade, do que a floresta original. Temos um número muito reduzido de espécies arbóreas e, menos ainda, de espécies herbáceas, arbustivas e epífitas. Quanto à fauna, ela é ainda mais ausente nesse pequeno parque hiperurbano.
Seja como for, foi feita uma licitação para a elaboração do plano de manejo da unidade, e a empresa vencedora tinha como obrigação seguir o roteiro metodológico estadual, elaborado pelo Instituto Estadual do Ambiente do Rio de Janeiro (Inea). O resultado final, porém, foi desastroso. Apenas 14,37% do parque foram considerados como “área de visitação” – quase toda ela, na verdade, constituída pela antiga via pavimentada que dá acesso à Chácara do Céu e alguns gramados, mirantes e outras facilidades ao redor. Quase 48,78% foram considerados como “zona de preservação”, equivalente a “zona intangível” na terminologia federal, e o restante foi incluído na categoria “zona de conservação”, onde é admitida apenas a visitação para fins de educação ambiental. Portanto, em um minúsculo parque reflorestado há pouco no coração da segunda maior cidade do país, a presença da população praticando caminhadas, escaladas ou outras atividades recreativas em contato com a natureza é considerada mal vinda em mais de 85% de seu território!
Foi solenemente ignorado pelos autores do plano, pela direção do parque e pela própria Secretaria de Meio Ambiente da Cidade do Rio de Janeiro (Smac), que o aprovou, que na área tornada inacessível por essa canetada há a trilha de acesso para inúmeras vias de escaladas bem frequentadas, a mais antiga delas datada de 1935, todas incluídas em um guia impresso bilíngue, publicado em 2011, que teve cópias doadas ao parque e à Smac, justamente para que não se alegasse tal desconhecimento.
Como se isso não bastasse, é público e notório que aquele também é local de trânsito e acampamento de integrantes das duas maiores facções criminosas da cidade, em perpétua e sangrenta guerra pelo domínio da Rocinha, com dezenas de mortos a cada ano. Mas quem informará aos seus líderes que eles e seus comandados cometem ato infracional, passível de multa pela Guarda Municipal, ao transitarem por ali? Aliás, caso estes tivessem sido convidados a opinar durante o processo de elaboração do plano, certamente apoiariam os técnicos da empresa, pois assim garantiriam maior tranquilidade para tocar os seus negócios, sem o risco de topar com caminhantes ou escaladores nas trilhas…
Claro que os marginais também são uma ameaça para os visitantes, mas após a implantação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha, por diversos anos, esse espaço foi resgatado pelos seus tradicionais frequentadores, os montanhistas. Se, infelizmente, estamos em um momento de retrocesso na questão da segurança, devemos ser otimistas e contar que o Poder Público volte a nos proporcionar a relativa garantia de poucos anos atrás. E que, claro, não seja ele próprio o responsável por afugentar a população.
Nenhum dos atributos que, segundo o roteiro do Inea, justificariam o estabelecimento de uma “zona de preservação” ocorrem na área em tela. A previsão da existência de zonas de preservação não significa que se precise sempre lançar mão delas no zoneamento da unidade. Se você tem que bater um prego na parede, não é necessário usar o alicate e a chave de fendas só porque eles também estão na caixa de ferramentas; basta usar o martelo, que é o instrumento adequado a essa situação.
No grande quadro, o que se faz urgente é mudar o paradigma seguido por alguns gestores de viés mais conservador, que preconiza que “toda visitação deve ser proibida, salvo onde expressamente permitida”, para “toda visitação deve ser permitida, salvo onde expressa e justificadamente proibida”. O default não pode ser tratar os parques como reservas biológicas. Eles precisam ser geridos como parques e assim observar a lei, que, sem prejuízo da função primordial de preservar a fauna, a flora, os ecossistemas e as paisagens naturais notáveis, com o que estamos todos de acordo, também definiu como seus objetivos a “recreação em contato com a natureza” e o “ecoturismo”, duas grandes categorias de usuários legitimamente interessados em desfrutar ordenadamente os seus parques públicos. Se isso ocorre com grande sucesso e sem qualquer prejuízo para a conservação no vizinho Parque Nacional da Tijuca, de quase 4.000 hectares, porque não no bosque que é hoje boa parte do Parque Penhasco Dois Irmãos?
Na mesma linha, foi ignorado que “áreas de visitação”, segundo o mesmo documento, têm no potencial para visitação uma das premissas para a sua instituição. Ou seja: mesmo que não existam atrativos consagrados em um determinado setor de um parque, é completamente desejável que, caso se identifique algum que por uma razão ou outra possa ser de interesse para o uso público, ele seja planejadamente divulgado e manejado. Planos de manejo não podem ser camisas de força.
A Smac prometeu uma revisão do plano antes de sua publicação, fazendo pequenos ajustes que garantam a passagem dos montanhistas pela trilha tradicional, que começa junto à entrada da Chácara do Céu e depois percorre a base das duas montanhas. O problema pontual foi resolvido, mas inúmeros outros problemas pontuais surgirão se o conceitual não for atacado antes.
Sendo então tão evidente a inadequação do zoneamento proposto, e não pondo em dúvida a competência da equipe envolvida, o que teria levado a essa situação tão esdrúxula?
Esse plano parece ter seguido um padrão observado em outros trabalhos semelhantes recentes. Faz-se um levantamento expedito (e muitas vezes deficiente, como no presente caso) dos pontos mais óbvios de visitação já consolidados, traça-se uma linha em torno deles e se declara o restante como “zona de preservação” ou “zona intangível”. Na verdade, instrumento tão importante, porém tão drástico, deveria ser reservado para situações muito particulares, que conjuguem excepcional riqueza e fragilidade biológica com uma grave e real ameaça à sua integridade. Mas, dessa forma, certamente pouco esforço de planejamento precisa ser alocado nos grandes “brancos no mapa” que passam a ser essas gigantescas áreas intocáveis. E, para chefias assoberbadas com inúmeras tarefas difíceis e importantes, e dispondo de pouquíssimos recursos humanos ou materiais para fazer frente a elas, não deixa de ser reconfortante dispor de um documento “técnico” que afirme que elas não precisam se preocupar com a gestão da visitação em mais de 85% da unidade; basta fiscalizar e multar, quando não conduzir a uma delegacia de polícia qualquer um que seja pego ali sem autorização. Como os verdadeiros bandidos não tomam nem conhecimento desse assunto, a conta recai toda sobre os cidadãos de bem, que muitas vezes se veem indevidamente privados de passear nos parques públicos em sua vizinhança, e não raro têm de repente negado o acesso a locais que frequentavam sozinhos ou com sua família e amigos há décadas.
Não é assim que se gere visitação em parques.
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André, um belo artigo! Nada como ter a experiência prática de saber o que funciona e do que não funciona para escrever de cadeira sobre o tema (e de cadeira de presidente do IEF-RJ). Na falta de bom senso (técnico, filosófico e político) de gestores e planejadores de plantão, que se escondem num dito princípio da precaução (válido, é verdade, se dentro do bom senso) que tem sido o padrão para tantas vedações de uso, por mais que eu não goste de generalizações eu tenho de concordar contigo que, conforme escrito, "No grande quadro, o que se faz urgente é mudar o paradigma seguido por alguns gestores de viés mais conservador, que preconiza que “toda visitação deve ser proibida, salvo onde expressamente permitida”, para “toda visitação deve ser permitida, salvo onde expressa e justificadamente proibida”. Não é fácil, tem riscos, mas é prático e pragmático, algo do que estamos precisando mais do que nunca. Parabéns por ousar! Mas ainda chamo a atenção sua e dos leitores do artigo, que, sem ressalvas, a ideia comparativa de áreas abertas ao uso e proibidas ao uso, em termos percentuais não é a mais apropriada, ainda que valha aqui como fator para chamar a atenção do fato em tela. Unidades com grandes áreas não necessariamente podem ser tratadas como unidades com pequenas áreas e vice versa, sendo que em qualquer dos casos é fundamental levar em conta as características ecológicas e de fragilidade das áreas (você deixa claro isso no seu texto). Sem contar os possíveis diferentes níveis de impactos de diferentes práticas, as possibilidade de evitá-las e de manejá-las quando não evitáveis – simplesmente técnica e bom senso. Novamente, o que está em jogo, a essência da ideia para muitos não explícita no artigo é a da falta de bom senso dos gestores e planejadores (talvez por falta de experiência, além de conhecimento). Conservacionistas conservadores? Pensamento fora de "validade"? O mundo mudou? Muita coisa pode ser, mas se não agirmos com a praticidade e o pragmatismo que propõe continuaremos perdendo natureza para todos os campos de atuação e finalidades , boas e nobres, nem tanto, para fins destrutivos fantasiados de sustentáveis (atenção e viva à manifestação do Truda!!!) e até para o crime.
André, perfeito!!!
Estive ontem na reunião do Conselho Consultivo da unidade em questão e sai de lá preocupado com o futuro do Parque.
O que dizer então dos gestores que inibem pesquisas?
Reuber, sua denuncia é pertinente. Chefes de uCs não são donos delas, mas a gestão delas acaba sendo muito personalista. Vc podia citar com qual UC vc teve problemas como professor tentando pesquisar?
Excelente artigo, André. A fobia ideológica cretina de "gestores" despreparados de UCs, que se empenham em restringir e prejudicar o uso turístico das áreas protegidas, só não é maior do que a tara daninha em ser permissivo com atividades extrativistas, a mais das vezes insustentáveis, das ditas "comunidades tradicionais". É preciso coragem de se fazer uma limpa nessa palhaçada se quisermos que as UCs brasileiras cumpram seu papel se preservar a biodiversidade E servir à sociedade através nano apenas da provisão de serviços ecossistêmicos, mas também de geração direta de emprego e renda.
Por que UCs precisam de chefes? Não poderiam ser administradas pela instância central dos seus órgãos? Pra cada tema de gestão, uma equipe temática responsável, lidando com todas as unidades sobre aquele assunto.Não precisamos de "reizinhos".
Prainha, Pedra Branca e quejandos tem medo de visitação, típico padrão de funcionário publico. Sem generalizar, mas o histórico não ajuda.
Parabéns pelo artigo André! A defesa dos direitos de acesso, ao Lazer e a consevação estava precisando dar atenção a este caso!!!
Caro André, mais uma vez, você é perfeito em suas colocações. Parabéns!
Os gestores espantam, muitas vezes as pessoas do bem , para com o mundo natural e se omitem, quando as pessoas "do mal" circulam, acampam e matam os bichos de nossos Parques e Reservas.
Enfrentar os criminosos, que é o correto, ficam na omissão e falta de respostas sobre suas ações.
"…mas após a implantação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha, por diversos anos, esse espaço foi resgatado pelos seus tradicionais frequentadores, os montanhistas. Se, infelizmente, estamos em um momento de retrocesso na questão da segurança, devemos ser otimistas e contar que o Poder Público volte a nos proporcionar a relativa garantia de poucos anos atrás. E que, claro, não seja ele próprio o responsável por afugentar a população." Ambientalista falando de segurança pública da nisso. As upp foram um engodo, por isso mesmo estão desativando. O território nunca foi definitivamente tomado. Os policiais estavam sempre ameaçados e vários morreram mesmo em "comunidades" que estavam "pacificadas". A segurança nunca esteve bem no Rio.
Sem entrar no mérito se a UPP é em parte ou não uma solução de segurança pública, dou meu depoimento que durante o período inicial das UPPs visitei com grupo de caminhadas ecológicas o teleférico do Alemão, desci do Alto da Boa Vista pelo Casablanca (Borel), desci do Mirante Dona Marta pela Comunidade Dona Marta, desci do Babilônia pela comunidade Chapéu Mangueira, fui algumas vezes ao Morro da Providência e ao Morro Dois Irmãos pelo Vidigal, ao Morro do Cochrane (acima da Rocinha) pela Mesa do Imperador, ao Morro dos Cabritos e São João pelo Tabajaras, algo que hoje com a "falência" das UPPs é impensável.
Sem opinar se as UPPs eram uma solução que não tinha como se manter, o fato é que se podia sim passear tranquilamente por essas comunidades durante certo tempo do início das UPPs.
Essa "paz" era fruto de acerto entre Cabral e "patrões locais", dizem!
Everardo, não entrei no mérito se as UPPs eram isso ou aquilo, se o território foi ou não foi definitivamente tomado etc. etc. Esse não era o objetivo do artigo.
Mas, efetivamente, após a implantação da UPP da Rocinha, voltamos a poder caminhar e escalar nos Dois Irmãos; após a do Dona Marta, pudemos voltar a caminhar e escalar na Face Sul daquela montanha; e a da Tabajaras ainda oferece segurança para que todos os finais de semana dezenas de pessoas caminhem e escalem na face norte do Morro de São João – num local onde, antes dela, eu levei uma "dura" aterrorizante do pessoal do "movimento", e acho que só escapei vivo porque eu e meu amigo ficamos muito frios na situação.
Então, ambientalista pode falar de segurança pública, sim, na condição de usuário e cidadão.