Análises

Quanto vale uma árvore?

A nova visão trazida pela perícia e valoração ambiental contribui para o entendimento do real valor do meio ambiente, que extrapola em muito os valores de abastecimento de recursos materiais ao homem

Ana Carolina Neves · Flávia Peres Nunes ·
23 de março de 2022 · 2 anos atrás

Imagine uma árvore com a altura de um prédio de dez andares, com tronco tão grosso que fossem necessárias seis pessoas de mãos dadas para abraçar sua circunferência. E com raízes tão profundas e ramificadas que poderiam retirar do solo e mandar para a atmosfera centenas de litros de água por dia, mantendo o clima ao redor fresco e úmido. 

Uma árvore que já se erguia jovem quando Pedro Álvares Cabral e sua esquadra chegaram ao Brasil. E que ao longo dos seus 535 anos, tenha abrigado e alimentado milhões de seres vivos. Durante todo esse tempo, a árvore teria contido encostas e protegido o solo, encobrindo-o com seu dossel como um guarda-chuva, quebrando a força da água e impedindo que a terra fosse carreada por enxurradas nas torrenciais chuvas da Mata Atlântica. Teria ainda absorvido o carbono atmosférico emitido por queimadas e rebanhos bovinos e, nas últimas décadas, por automóveis e fábricas, incorporando-o em seu tronco, que registraria em 535 anéis de crescimento a variação climática de mais de meio milênio. 

Imagine agora que esta árvore fosse de uma espécie rara e ocorresse apenas em um tipo ameaçado de habitat, em um bioma considerado dos mais carentes de proteção no mundo. Finalmente, imagine que, de tão importante, essa espécie fosse símbolo do local onde habita.

Imaginou? Pois essa árvore existiu. 

Imbuia (Ocotea porosa) convertida em mourões para cerca em Santa Catarina. Fonte: Policia Militar Ambiental de Santa Catarina.

Era uma imbuia (Ocotea porosa), espécie da família Lauraceae (a mesma do louro), símbolo do estado de Santa Catarina. Vivia na floresta de araucárias da Mata Atlântica, fitofisionomia ameaçada de um bioma considerado entre os 25 prioritários para a conservação da biodiversidade no mundo, por ser dos mais ricos em espécies exclusivas (que só ocorrem ali), mas ao mesmo tempo, dos mais agredidos. A imbuia majestosa foi abatida em 2018 no interior de Santa Catarina, juntamente com 16 araucárias. Por ser uma espécie da flora brasileira ameaçada de extinção, assim como a araucária, seu corte é proibido, mas nem a lei foi capaz de impedir que ocorresse. Pelo que apontam os indícios encontrados pela polícia militar ambiental no local, a gigante foi derrubada para virar triviais mourões de cerca.

Árvores são formas de vida que englobam mais de 60 mil espécies, segundo estudo feito pela Botanical Gardens Conservation International (BGCI). De forma geral, são reconhecidas como organismos que beneficiam o ser humano, seja como provedoras de matérias-primas, de sombra e ar fresco, seja como fonte de inspiração, manifesta na espiritualidade e nas artes.

The Tree of Life (A Árvore da Vida), obra de 1905 por Gustav Klimt.

Árvores majestosas como a imbuia dessa história não passaram despercebidas aos olhos dos naturalistas que estiveram o Brasil, como as árvores da floresta perto do Rio Amazonas de antes do nascimento de Cristo (Arbores ante Christum natum enatae in silva juxta fluvium amazonum), registradas em 1841 por Carl Phillip von Martius, membro da expedição Austríaca que percorreu os sertões do Brasil naquela época. Com sua arquitetura dendrítica (que se ramifica progressivamente e prolificamente a partir do tronco), são consideradas símbolos da vida, como representado na famosa pintura A Árvore da Vida, de Gustav Klimt. Outro exemplo desse reconhecimento é que a primeira área de proteção ambiental de que se tem notícia foi criada quatro séculos antes de Cristo para preservar figueiras sagradas, proibindo-se toda forma de extrativismo e resguardando o local de peregrinação. 

Como é possível derrubar uma árvore como a imbuia de 565 anos, tão bela e carregada de história? E por que isso ocorre com tanta frequência, sobretudo no Brasil, que detém um riquíssimo capital natural, com árvores multicentenárias e mesmo milenares, constantemente convertidas em toras de madeira que descem os rios amazônicos sem cessar, em operações isoladas ou de grande vulto, destinadas à venda no mercado doméstico ou internacional? São pelo menos quatro os motivos.

“Arbores ante Christum natum enatae in silva juxta fluvium amazonum”, ilustração de Carl Phillip von Martius, de 1841. Fonte: Wikipédia.

Primeiro porque na conta de quanto vale uma árvore, muitas vezes só o bem com valor de mercado é considerado, isto é, a madeira a ser convertida em toras, pranchas, lenha, serragem ou carvão. Segundo, porque o lucro é considerado no curto prazo, desconsiderando-se todos os processos benéficos realizados pelas árvores ao longo do tempo. E terceiro porque o benefício da apropriação e comercialização da madeira é privatizado, enquanto a perda dos benefícios que seriam prestados continuamente e de forma pública são compartilhados pela sociedade, gerando no setor produtivo a ideia de que há apenas ganhos nessas transações. Finalmente, há um conflito na percepção de valor atribuído às árvores por cada membro da sociedade, como se verá abaixo.

Numa concepção econômico-ecológica, o valor total atribuído pela sociedade aos recursos ambientais (Valor Econômico Total, VET) é dado pelo somatório do Valor de Uso Direto, Valor de Uso Indireto, Valor de Opção e Valor de Existência. 

O Valor de Uso Direto é aquele atribuído ao recurso natural pelas pessoas devido ao seu uso, através do contato direto com os organismos ou paisagens naturais, no momento presente. No caso da imbuia centenária, este foi o valor que predominou quando decidiu-se cortar a árvore (e outras no mesmo município) para transformá-las em cerca. A madeira da imbuia é muito densa e resistente ao desgaste por intempéries e por insetos, seja enterrada ou acima do solo, o que lhe confere durabilidade e resistência, e portanto, grande utilidade como matéria-prima para fabricação de mourões de cerca que, se pretende, durar muitas décadas. Podemos destacar ainda que, neste caso, o uso se deu com consumo, ou seja, houve a apropriação do bem por alguns tornando-o indisponível para outros, pelo menos até que transcorra um novo ciclo florestal e madeira seja novamente produzida na mesma quantidade. 

O uso de paisagens naturais através de atividades recreativas, esportivas, espirituais, científicas e educativas também exige o contato direto com o ecossistema (visitação), caracterizando-se como uso direto. Porém, neste caso, várias pessoas podem desfrutar simultaneamente das belezas naturais. No dia seguinte, novamente as pessoas poderão desfrutar das mesmas paisagens sem prejuízo, contando que as atividades sejam desenvolvidas de maneira a respeitar a capacidade de renovação do ecossistema. Assim, dizemos que há uso direto, porém não consuntivo (sem consumo), já que a apropriação por uns não torna o recurso indisponível para outros. 

O valor de uso indireto também é atribuído pelas pessoas aos recursos ambientais devido ao seu uso, porém, ele é derivado das funções ecológicas que os organismos e ecossistemas realizam. As funções ecológicas são processos físicos, químicos, geológicos e biológicos que ocorrem em ecossistemas naturais ou parcialmente alterados, a partir de uma intrincada rede de  interações entre o meio biótico e abiótico, e que sustentam os ecossistemas e a biodiversidade. As funções que trazem benefícios para o ser humano são chamadas de serviços ambientais. São exemplos de funções e seus respectivos serviços ambientais: o transporte de gametas (pólen) entre as estruturas reprodutiva de plantas, resultando em polinização de plantas silvestres e culturas; a regulação do clima pela cobertura vegetal através de processos como fotossíntese e evapotranspiração, que levam à manutenção de clima adequado para o desenvolvimento de atividades humanas como habitação, agricultura e desempenho de uma vida com saúde e bem estar; e, por fim, a filtragem, retenção e estoque de água doce pela vegetação, que geram estoques de água de qualidade para consumo humano. Em suma, o valor de uso indireto refere-se à utilização de recursos de forma indireta e sem consumo, no momento presente. Exemplos dessa categoria de valor não faltam no Relatório O Futuro Climático da Amazônia, de Antonio Donato Nobre, popularizado pelo perfil “Árvore Ser Tecnológico” nas redes sociais. Ambos mostram  como as árvores da Amazônia contribuem para a manutenção de condições climáticas benéficas em toda a América do Sul e na faixa latitudinal em que ocorre, bombeando água do solo para a atmosfera, sugando água do oceano para o continente (através de uma diferença de pressão atmosférica criada pela transpiração das árvores), promovendo a precipitação dessa umidade na forma de chuva, enviando rios aéreos continente adentro (uma quantidade de vapor d’água equivalente à despejada no mar pelo rio amazonas diariamente) e dissipando eventos climáticos destrutivos através da rugosidade do dossel.

Valor de opção é atribuído pelas pessoas à possibilidade de se fazer uso direto ou indireto dos recursos ambientais no futuro, quando houver vontade, necessidade ou tecnologia disponível para seu aproveitamento. Exemplos são a bioprospecção de genes e moléculas para uso farmacêutico, e a manutenção de paisagens testemunhos em áreas protegidas, em regiões que no futuro provavelmente estarão alteradas. 

Exemplar de Ginko biloba de 1400 anos no mosteiro chinês Gu Guan Yin, na província de Shaanxi. Fonte: Hyperscience

Por fim, o valor de existência representa o valor conferido pelas pessoas aos recursos ambientais, mesmo quando não tencionam usá-los. É o valor derivado de uma posição moral, cultural, ética ou altruística em relação ao direito de existência de espécies não-humanas. Para exemplificar este tipo de valor, há uma história exemplar de Chuang Tzu (século IV A.C.), um sábio taoísta, que conta sobre uma árvore inútil. Um marceneiro e seu aprendiz viajavam pelo interior visitando vilas e lugarejos, quando chegaram a um lugar onde havia um santuário, onde despontava um imenso carvalho. A árvore era tão grande que sua copa se espalhava sobre a relva e à sua sombra poderia descansar um rebanho de mil bois. As pessoas vinham de longe para contemplá-la e permanecer em sua presença. O aprendiz de marceneiro então comentou, estranhando seu mestre não dizer nada sobre o carvalho: “Como pode uma árvore com tão grande potencial estar aí, dessa forma”. O mestre respondeu: “Essa árvore é totalmente inútil pois sua madeira não serve para nada. Qualquer peça feita com ela quebraria, afundaria, apodreceria ou encheria de cupins.” De noite, porém, o carvalho apareceu em sonho para o carpinteiro mestre e lhe perguntou: “Achas que eu estaria aqui há tanto tempo se fosse útil? Do contrário, como outras árvores utilizadas pelos humanos, eu estaria podada, cortada, desmembrada, derrubada. Eu venho praticando a inutilidade há muito tempo, até alcançar a perfeição. E quem é você, afinal, para me criticar?”. No dia seguinte, ao amanhecer, o aprendiz tinha mais uma pergunta para seu assustado mestre: “Por que as pessoas adoram um carvalho inútil? O que ele faz em um santuário?”. O mestre então respondeu que ela estava num santuário justamente por ser inútil. Que se fosse útil, estaria provavelmente no chão para os fins dos homens. 

Essa história conta que há também lugar para o que não é útil dentre os valores atribuídos aos recursos naturais pela sociedade. É o lugar do sagrado, do simbólico, do intangível, das árvores retratadas na arte de Carl Philip von Martius e de Gustav Klimt, assim como as árvores sagradas indianas. 

Uma reportagem do G1 apurou que, no mercado ilegal, a imbuia centenária poderia ser vendida por R$ 4 mil se comercializada como mourões de cerca, ou por R$ 20 mil como madeira, enquanto o valor da multa aplicada foi de R$ 12.750. Geralmente, o valor de multas não se baseia no valor econômico total (VET) ou no valor do dano ambiental, mas em valores pré-estabelecidos pela administração pública. O que ocorre é que, quanto maior o dano, se espera que mais multas sejam aplicadas. Porém, se o VET fosse calculado conforme princípio chamado de Valor Econômico do Dano Ambiental (VERA), esse valor poderia chegar à cifra de dezenas a centenas de milhares de reais. Este princípio se baseia na soma do VUD, VUI, VO e VE e foi incluída na Norma Técnica Brasileira (ABNT 2009). Que tenhamos conhecimento, não foi realizada valoração monetária para averiguar quanto a sociedade perdeu com a derrubada da imbuia. Mas para comparação, em um estudo que calculou o valor econômico de um pequizeiro (Caryocar brasiliense) adulto, espécie protegida por lei e imune ao corte no estado de Minas Gerais, chegou-se ao valor de R$4.910,29 por indivíduo derrubado ilegalmente. Tal valor resulta do uso direto (VUD) da polpa produzida ao longo da vida de um pequizeiro (considerada no estudo como sendo de 20 anos, em média), que tem grande importância para a alimentação das comunidades do Cerrado e suas cadeias produtivas (VUD); à madeira retirada na forma de lenha e torete (VUD); e por fim, para cálculo do VUI, VO e VE, utilizaram-se referências bibliográficas onde foram estimados valores gerais para os serviços ecossistêmicos prestados pelo Cerrado e biomas com características parecidas no mundo (Costanza et al. 1997 e Santos et al. 2000, citados em IBAMA 2002). 

Note que, dependendo do pequizeiro em questão, este valor pode estar subestimado. Afinal, uma árvore pode viver mais de 20 anos; outros produtos são retirados do pequi além da polpa, como castanha e óleo; e os serviços ambientais no Cerrado podem atingir valores mais elevados que em outros ecossistemas equivalentes que se encontram pelo mundo. O mais importante aqui é observar que, quando derruba-se um pequizeiro, a sociedade perde na ordem de milhares de Reais – um valor menor que a multa aplicada, de R$399,00 por árvore.

Nesse sentido, a nova visão trazida pela perícia e valoração ambiental contribui para o entendimento do real valor do meio ambiente, que extrapola em muito os valores de abastecimento de recursos materiais ao homem. O acesso a um meio ambiente equilibrado é direito de todos e, violar esse direito constitui crime que deve ser investigado pela perícia ambiental, uma área do conhecimento que se consolida cada vez mais. A valoração dos danos causados vai contribuir não só para aplicar sanções (como prisão), mas também indenizações, além de definir e quantificar montantes para a reparação ambiental. Mas o objetivo principal da valoração é  “desenvisibilizar” os processos ecológicos dos quais somos integralmente dependentes, mostrar que o valor do meio-ambiente é virtualmente infinito e que grande parte dos danos ambientais não podem ser reparados integralmente, informando à sociedade da importância de se preservar a natureza. A proteção do meio ambiente não é apenas uma opção, mas um direito e uma necessidade para nossa sobrevivência, saúde, segurança, qualidade de vida e negócios. 

A natureza é como a galinha dos ovos de ouro da clássica história: ou cuidamos bem dela para ter nossa dose diária de riqueza, ou estamos condenados a buscar a golpes de picareta um substituto imperfeito para o tesouro que de outra forma teríamos garantido.  

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Ana Carolina Neves

    Bióloga, professora na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais no Curso de Perícia e Valoração de Danos Ambientais, e autora de Pantanáutilus e Espia das Montanhas, ambos pela editora FTD.

  • Flávia Peres Nunes

    Bióloga, doutora em Ecologia, consultora ambiental e coordenadora do MBA em Perícia e Valoração de Danos Ambientais da PUC Minas.

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