Análises

Seria seu melhor amigo uma ameaça à biodiversidade?

Cães e gatos são excelentes caçadores e quando acessam áreas naturais causam a morte de inúmeros animais, seja para alimentação ou apenas para diversão

Laise Orsi Becker · Leonardo Arthur Keller Neto · Micheli Ribeiro Luiz ·
25 de junho de 2020 · 4 anos atrás

Os cães têm estado ao lado dos seres humanos há cerca de 20 mil anos, servindo de companhia e auxiliando nas caçadas. Os gatos não ficam para trás, eram venerados pelos faraós e dominam as redes sociais na atualidade. Porém, quando cães e gatos vivem dentro de áreas naturais ou são criados soltos próximos a elas, são considerados espécies exóticas invasoras e podem se tornar um problema para conservação da fauna silvestre.  

O Brasil está entre os países com maior número de cães e gatos (78,1 milhões de indivíduos).

Em 2013, o IBGE estimou que uma a cada cinco residências brasileiras possuíam pelo menos um gato, e duas a cada cinco possuíam ao menos um cachorro. Mas a taxa de abandono de animais chega a 40% no país, e a 75% quando consideramos o mundo todo.

Exímios caçadores

Cães e gatos são excelentes caçadores e quando acessam áreas naturais causam a morte de inúmeros animais, seja para alimentação ou apenas para diversão.

Caçam desde pequenas aves e mamíferos até animais maiores, como veados e antas. Em 2013, um estudo da Universidade de Oxford, na Inglaterra, listou 64 espécies de animais selvagens interagindo com cães, sendo que 63 delas estavam na Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da IUCN (União Internacional para Conservação da Natureza).

Um estudo publicado na “Nature Communications” em 2013, mostrou que os felinos matam anualmente entre 1,4 bilhão e 3,7 bilhões de aves apenas nos Estados Unidos. O problema é tão grave que, em alguns estados do país, só é permitida a posse de gatos no interior das casas, sem nenhum acesso a áreas externas, como jardins e quintais.

Na ilha de Fernando de Noronha vivem mais de mil gatos, o que corresponde a um gato para cada quatro habitantes. Nem sempre moradores e turistas notam, mas o lagarto nativo mabuia (Trachelepys atlantica), o rabo-de-junco-de-bico-laranja (Phaethon lepturus) e a cocoruta (Elaenia ridleyana) sentem o perigo.

Em 2018, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) publicou um Plano de Ação para o Controle de Gatos em Fernando de Noronha.

Na foto ao lado, um gato de vida livre com um lagarto mabuia em Fernando de Noronha.

O lagarto mabuia (Trachelepys atlantica), o rabo-de-junco-de-bico-laranja (Phaethon lepturus) e a cocoruta (Elaenia ridleyana). Fotos: Laise Orsi Becker (o lagarto)/Wikipédia.

Outros impactos

Estudos em unidades de conservação brasileiras apontaram que 37 espécies nativas são afetadas pela presença de cães, não apenas pela predação, mas também por competição e disseminação de doenças.

No Cerrado Brasileiro, por exemplo, pesquisadores observaram que o lobo-guará evita áreas onde cães domésticos estão presentes, diminuindo áreas de busca de alimento e abrigo.

Várias são as doenças que cães e gatos de vida livre podem disseminar entre nós, seres humanos, e entre outros animais. Alguns exemplos são raiva, cinomose, parvavirose, leishmaniose, toxoplasmose, dentre outras.

Alguns dos casos mais estudados de redução da população de carnívoros em virtude da transmissão de doenças por cães estão na África. Entre 1994 e 1996, epidemias de vírus transmitidos por cães mataram uma grande parte de leões no Parque Nacional Serengeti, na Tanzânia. O lobo africano (Lycaon pictus), espécie ameaçada de extinção, também teve a mortalidade aumentada.

A doninha (Mustela nigripes) passou para a lista de espécies ameaçadas nos Estados Unidos após a morte de inúmeros indivíduos por cinomose canina. E, até mesmo como presas, cachorros podem servir como via de transmissão de patógenos para outros grandes carnívoros, é o que relatam pesquisadores de Zimbábue.

Cães atacando uma lebre em grupo. Crédito: Vanessa Kanaan.

Existem soluções?

Na Ilha de Okinawa, o governo japonês obteve êxito ao capturar, esterilizar e realocar os gatos em lares por meio da adoção. No entanto, quando o número de animais extrapola a capacidade de captura e castração, medidas mais severas, como a erradicação e o controle de animais, se fazem necessárias mesmo que causem conflito na opinião pública.

Recentemente, a Austrália virou alvo de debates por ter optado pelo uso de iscas envenenadas para conter o crescimento populacional. Até a atriz Brigitte Bardot liderou um abaixo-assinado buscando impedir a ação.

A resposta dada pelo governo australiano em resposta às críticas foi que o esforço para castrar esses milhões de felinos – estimava-se cerca de 2 a 6 milhões de gatos de vida livre pelo país – junto ao tempo necessário para que o número de gatos diminua não são factíveis. O país conta com um mapeamento de avistamento de gatos que se tornam selvagens, o “Feral Cat Scan”, em que a população pode contribuir com os dados de presença desses animais.

Gato usando coleira com sino. Foto: Pexels.

Prever, prevenir e agir contra a origem de processos que levam a um considerável declínio ou perda da biodiversidade são princípios da Política Nacional de Biodiversidade (Decreto nº 4.339, 22 de agosto de 2002). Neste sentido, se fazem necessárias ações imediatas de prevenção dos impactos causados, além do controle desses animais. Tais medidas precisam ser adotadas tanto pelos proprietários dos animais quanto como pelo poder público.

Cães e gatos devem ser mantidos dentro dos limites de sua propriedade, deve-se passear com eles usando guias e impedir seu acesso a áreas naturais para evitar que haja contato com animais nativos. Preferencialmente, esses animais também devem usar coleiras com sinos, ou coleiras largas coloridas para afugentar animais nativos.

Recomenda-se a castração para evitar o aumento de suas populações, além de serem vacinados e vermifugados para impedir transmissões de doenças. Essas são algumas das ações incentivadas pela Campanha Bem-Estar Animal do Conselho Federal de Medicina Veterinária.

*Textos produzidos pelos(as) alunos(as) da disciplina “Conservação da Biodiversidade no Antropoceno”, ministrada no Programa de pós-graduação em Ecologia da UFSC, pela Profa. Dra. Michele de Sá Dechoum (UFSC) e pela Dra. Paula Drummond de Castro (Labjor – UNICAMP). 

**Este texto foi escrito pelos biólogos Laise Orsi Becker, Leonardo Arthur Keller Neto  e Micheli Ribeiro Luiz

Saiba Mais

LESSA, I. et al. Domestic dogs in protected areas: a threat to Brazilian mammals? Natureza & Conservação. v. 14, 2, p. 46-56, 2016.

BUTLER, J.R.A.; DU TOIT, J.T.; BINGHAM, J. Free-ranging domestic dogs (Canis familiaris) as predators and prey in rural Zimbabwe: threats of competition and disease to large wild carnivores Biological Conservation. v. 115, p. 369-378, 2004.

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Laise Orsi Becker

    Laise Orsi Becker e Leonardo Arthur Keller Neto são biólogos e mestrandos no Programa de Pós-graduação em Ecologia da Univers...

  • Leonardo Arthur Keller Neto

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Comentários 2

  1. jtruda diz:

    Tarados animalescos protestando com argumentos irracionais em 3, 2, 1…


  2. Ebenezer diz:

    Excelente! Finalmente alguém abordou o assunto! Faltou comentar a "pegada ecológica" dos produtos pet…ração, cosméticos…além do tratamento dos excrementos: tem cachorro que defeca mais que gente!