É difícil enxergar olhando para cima enquanto o sol ofusca a vista. Piora se você está sobre andaimes precários, trabalhando na alvenaria do alto da torre de uma igreja, sobretudo em ano de seca no Ceará. “Valei-me, São Francisco! O Maciel despencou para a morte, mas ficou pendurado pelas roupas…” O fato ocorreu há 250 anos e continua sendo tratado como milagre por devotos do santo protetor dos animais. Até hoje, entre os escaldantes meses de setembro e outubro, romeiros seguem em profusão para Canindé, onde pagam suas promessas com penitências. Também já ofertaram aves a um zoológico local.
O santuário franciscano dali é o maior do mundo depois do que fica em Assis, na Itália. O nome da cidade se refere ao chefe Kanindé, líder de povos tradicionais considerados aguerridos, mas que negociou um tratado de paz com o Rei de Portugal e acabou traído. Missões franciscanas catequizaram ali os que se tornariam os Kanindés. Em 1887, o vocabulário indígena em uso na província do Ceará ainda associava o nome canindé a uma espécie de arara formosíssima.

Se não resta arara-canindé (Ara ararauna) no bioma Caatinga do presente, em 1789 o jesuíta Johann Breuer informou sobre essa ave em Viçosa do Ceará, relatando que ela não se encontrava por toda parte, que muito raramente uma sobrevoava, mas que ao oeste dali havia uma multidão tão grande dessas que, por causa da sua tagarelagem, muitas vezes tinha dificuldade de ouvir as palavras do colega dele. Essa cidade está sobre o planalto da Ibiapaba, que limita o Ceará do Piauí, tendo se originado a partir de uma missão jesuítica. Cerca de 35 km distante, nesse mesmo planalto, encontra-se Ubajara, cidade famosa por uma gruta nas encostas da Ibiapaba. Em 1860, o naturalista Freire Alemão soube que araras se aninhavam perto dessa caverna. Ainda nessas encostas, 39 km além, encontra-se Guaraciaba do Norte, onde Alemão também descobriu que araras passavam por ali, vindas do Piauí rumo aos serrotes do sertão cearense. Não é possível afirmar que essas araras eram as mesmas canindés vistas por Breuer, no entanto, diferentes espécies usam o mesmo ambiente.
No vizinho Piauí, nas imediações de Oeiras, o botânico escocês George Gardner esteve em 1839 nas caatingas entremeadas de brejos com buritizais, quando registrou que “seu fruto doce é o principal alimento das três espécies de araras que em bando as frequentam. Estas aves voam geralmente aos pares, enchendo o espaço com os seus gritos de ará, ará, ará, donde vem o nome indígena de arara. Uma das espécies mais comuns é toda azul (Psittacus hyacinthinus, Lath); as outras são também azuis, com exceção do peito, que numa delas é cor de laranja, enquanto a outra o tem cor de carmim”. Adiante, ele reforçou a identificação de Ara ararauna ao comentar sobre “um pequeno vale, rodeado de altas colinas e abundante em buritis, cujas folhas dão abrigo a bandos numerosos de araras de peito alaranjado (canindé)”.

Uma microrregião da divisão político administrativa piauiense atual é denominada Alto Médio Canindé, em função do Rio Canindé. Ela extrema com o sul da Ibiapaba e abrange paisagens com vegetação de caatinga, entremeada de rios com buritizais.A microrregião do Alto Médio Canindé inclui Jaicós, lugar que em 1881 foi considerado abundante de araras, segundo dados coligidos pelo pesquisador Ramiz Galvão. A memória da Província do Piauí, publicada por José d’Alencastre em 1857, ainda elencava as três araras vistas ali por Gardner menos de duas décadas antes: a arara, a araruna e a canindé. Uma arara-canindé cearense taxidermizada foi enviada da coleção do médico João Guilherme Studart para compor a Feira Mundial de Chicago, em 1893. Também foi coletada no Ceará pelo naturalista Francisco Dias da Rocha, que a manteve na lista do Estado por quatro décadas desde 1908. Em 1916, o intelectual Pompeu Sobrinho indicou que a arara-canindé era rara no Ceará, onde maracanãs eram abundantes. Segundo Antônio Gomes de Freitas, as últimas reproduções na Serra Grande (planalto da Ibiapaba) ocorreram em meados do Século XX, quando já não havia revoadas constantes de certas épocas do ano. No Ceará de hoje, as maracanãs são raras enquanto a arara-canindé foi extirpada. No Piauí, ela ainda habita o Cerrado.
No Piauí do início do Século XX, o ornitólogo austríaco Otmar Reiser observou o seguinte sobre a arara-canindé: “Tudo parece indicar claramente que, antigamente, a área de distribuição era mais extensa, chegando muitas vezes até a costa, o que hoje em dia já não é o caso. As araras-canindés, fortemente perseguidas, tiveram de recuar cada vez mais para o interior, a fim de poderem levar uma existência relativamente tranquila.” A ideia sobre forte perseguição era correta, havendo inclusive políticas públicas que exigiam o controle de araras no vizinho Ceará, sendo os agricultores cobrados a entregarem cabeças de exemplares mortos, o que se alegava ser justo por serem consideradas pragas agrícolas.
Além do abate por arma de fogo, o hábitat das araras-canindés seguia em devastação, sobretudo as caatingas arbóreas, florestas secas e matas ripárias, incluindo buritizais. A palmeira buriti, Mauritia flexuosa, beneficia essa espécie de arara em sua dieta e reprodução, contudo, depende de áreas pantanosas que são raras e sensíveis no bioma mais árido do Brasil.

O caboclo Gonçalo de Sá nasceu em Pernambuco no ano 1762. Aos 98 anos de idade, concedeu entrevista ao Freire Alemão sobre a região de Jardim, nas encostas cearenses da Chapada do Araripe, quando disse que: “Depois da grande seca de 1791 a 93 é que começou a povoação da vila atual do Jardim, acudindo para aqui gente de toda a cor. Sete freguesias, conta-se que ficaram nessa ocasião inteiramente despovoadas. Os palmeirais ficaram todos destruídos por lhes tirarem os palmitos para alimento.” Entre os buritizais cearenses de Santana do Cariri e os do Piauí, Gardner observou um costume predatório que adotou: “o suco do tronco também produz uma bebida agradável; mas, para obtê-la, é necessário derrubar a árvore e fazer-lhe no tronco, a machado, diversas aberturas de seis polegadas quadradas e três de profundidade, a seis pés umas das outras: estas aberturas se enchem em pouco tempo de um líquido avermelhado, de sabor muito semelhante ao do vinho. Em minhas viagens no Piauí por vezes cortamos estas palmeiras para lhes extrair o suco.”
Enquanto d’Alencastre listava a arara-canindé entre as aves do Piauí, o Senador Pompeu fez o mesmo no Ceará em 1863, e também no Século XIX, o Visconde Beurepaire Rohan discursou sobre as aves paraibanas indo além do mero nome canindé ao mencionar o seguinte: “Arara-amarela (Ara aracanga). Canindé ou arara-azul-de-ventre-amarelo. Por um erro que ainda não foi correto, dão os naturalistas a esta espécie o nome de A. ararauna. Creio que não haveria o menor inconveniente em lhe chamar A. caninde, para não se confundir com a seguinte espécie: Araruna ou arara-preta. (A. hyocinthimus [sic])…”. Em 1953, sobre a arara-canindé paraibana, Heretiano Zenaide atualizou o contexto de Rohan afirmando: “As grandes araras […], a canindé ou arara-azul […], entre outras ali dadas como presentes na província, já não serão vistas em terras paraibanas, voando e depredando os carnaubais.” Sem querer, Zenaide excluiu a Zona da Mata de seu recorte, espacializando a arara-canindé na caatinga pontilhada pela palmeira carnaúba, Copernicia prunifera.

Estátuas de São Francisco costumam apresentar pássaros sobre seus ombros ou pousadas nas suas mãos. Isso se deve principalmente a um episódio em que ele teria conversado com as aves entre as cidades italianas de Bevagna e Cannara. Em Canindé, duas estátuas se destacam: a mais antiga, que está em sua basílica; e a maior, que é vista de longe por quem se aproxima. Ambas não têm aves representadas, assim como Canindé e a Caatinga não tem mais arara-canindé. Se alguém um dia prometeu devolver as araras-canindés, não pagou a promessa. Pelo menos não no Ceará.

Um cearense, todavia, fez carreira no Rio de Janeiro. Seu nome era Adelmar Coimbra Filho. Assim como São Francisco, conversava com os animais, mas através de outra linguagem: a biologia. Conseguiu, por exemplo, devolver algumas espécies que haviam sido extirpadas da Floresta da Tijuca, além de evitar a extinção global do famoso mico-leão-dourado. Coimbra Filho contou com ajuda e seu legado se perpetua na história de outras pessoas, como a bióloga Lara Renzeti.
Através do Refauna, Lara coordena a reintrodução da arara-canindé na Mata Atlântica do Rio de Janeiro. Outras iniciativas se destacam no esforço de devolver a arara-canindé aos céus do Brasil. Em São Paulo, Fernando Magnani coordena o projeto Pró-Arara, pela MPFauna, junto com Rogério Caldas, presidente do IBPN, responsáveis por mais de cinquenta solturas no município de Araras, em São Paulo. Já com relatos de filhotes, esse projeto transformou a realidade de moradores, que criam vínculos profundos com araras identificadas por medalhas. Ainda no interior paulista, o biólogo Humberto Mendes, em parceria com Donald Brightsmith, da Texas A&M, e Chris Biro, da ONG Birds International Recovering, aplicam técnicas de condicionamento inspiradas na falcoaria para preparar araras de cativeiro a voltar para a natureza. Solturas bem sucedidas de araras-canindés já estão ocorrendo em São Simão, noroeste paulista, e Santa Rosa de Viterbo, região de Ribeirão Preto, mostrando que ciência e manejo cuidadoso podem resultar em projetos bem sucedidos.
Duas notícias publicadas no ((o))eco destacam a importância de ações desse tipo. A primeira delas foi a Carta de Salto Morato, que em 2023 manifestou a percepção da Rede Brasileira de Translocações para Conservação de Fauna (leia aqui). Na segunda, em 2024, foi apresentado documento intitulado Diretrizes de translocações de fauna para conservação no Brasil (leia aqui). Em 2025, visando trazer a arara-canindé de volta à Caatinga, foram deflagradas articulações entre a iniciativa privada (Parque Arvorar) e Organizações da Sociedade Civil (Associação Caatinga, Aquasis e BiodiverSe), incluindo repartições públicas como a CPRH (Agência Estadual de Meio Ambiente de Pernambuco), através do CETAS Tangará (Centro de Triagem e Reabilitação de Animais Silvestres), além do CETAS/PI, ligado ao Ibama/PI e SEMARH (Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Estado do Piauí), e do CETAS/CE, ligado ao IBAMA/CE e SEMACE (Superintendência Estadual do Meio Ambiente – Ceará), bem como o CEMAFAUNA (Centro de Conservação e Manejo de Fauna da Caatinga).
O Ceará, que já perdeu a arara-canindé, agora se abre para a chance inédita de sua reintrodução na Caatinga. O plano vai além de devolver uma única espécie: busca restaurar funções ecológicas e vínculos culturais apagados junto com ela, incluindo as palmeiras. A Reserva Natural Serra das Almas, RPPN de seis mil hectares, de propriedade e gestão da Associação Caatinga, situada no coração da Ibiapaba, será epicentro dessa empreitada. Ali convergem práticas de conservação, manejo socioambiental para convívio com o semiárido, constituindo cenário propício a esse retorno. É nesse ambiente promissor que se espera ouvir novamente o som esquecido das araras sobre o sertão cearense. O desafio é articular ciência rigorosa, técnicas de manejo e compromisso comunitário para reverter falhas históricas. A reintrodução da arara-canindé cria precedente para outros retornos, já iniciados com a reintrodução do cara-suja (leia aqui). Se promessas do passado foram deixadas para trás, esta é a chance de resgatá-las em vida. Pois, onde houver araras, haverá, novamente, esperança.
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