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Uma aventura pelo Caminho da Mata Atlântica

A argentina Julieta Santamaria decidiu ser a primeira pessoa a percorrer os 4 mil km da trilha de longo curso, que vai do RJ ao RS. Acompanhe também essa aventura

Julieta Santamaria · Chico Schnoor ·
31 de maio de 2024

Julieta Jazmin Santamaria, uma jovem argentina de 25 anos, está realizando uma façanha histórica ao se tornar a primeira pessoa a percorrer todo o Caminho da Mata Atlântica. Essa megatrilha, que se estende por mais de 4 mil quilômetros – desde o Parque Estadual do Desengano, no Rio de Janeiro, até o Parque Nacional de Aparados da Serra, no Rio Grande do Sul –, é uma iniciativa de grande escala para a restauração e conservação da Mata Atlântica.

A jornada de Julieta começou no extremo norte do Caminho, na cachoeira do Mocotó, no Parque Estadual do Desengano. Ao longo de 34 dias, ela percorreu 660 km em território fluminense, enfrentando desafios naturais e conhecendo de perto a rica biodiversidade e as comunidades locais.

O Caminho da Mata Atlântica: Uma iniciativa de Restauração

O Caminho da Mata Atlântica é uma mega trilha que visa a restauração da Mata Atlântica por meio de quatro pilares principais: implantação da trilha, sensibilização da sociedade sobre a importância do bioma, fortalecimento da cadeia produtiva do turismo e da restauração florestal, e monitoramento da biodiversidade.

Redução e Fragmentação do Bioma

A Mata Atlântica, reduzida a cerca de 16% de sua extensão original, enfrenta pressões constantes devido ao adensamento populacional e à fragmentação de seus remanescentes florestais. O Caminho da Mata Atlântica surge como uma oportunidade para conectar grandes remanescentes e pequenos fragmentos, promovendo a restauração de corredores florestais essenciais para a fauna e flora. Atualmente o Caminho já vem restaurando 500 ha de Mata Atlântica no extremo norte da serra do mar.

A Trilha em Território Fluminense

Durante sua travessia pelo Rio de Janeiro, Julieta passou por quatro núcleos de planejamento e articulação voluntária do Caminho.

Núcleo Extremo Norte 

Começando pelo Parque Estadual do Desengano, na cachoeira do Mocotó, extremo norte do Caminho da Mata Atlântica, ela subiu pela travessia Mocotó – Poço Parado e depois foi beirando o parque até entrar nele novamente e se banhar na Cascata. Ao chegar em Santa Maria Madalena, pegou a estrada conhecida como Lote 17, antiga via férrea e região importantíssima para conexão florestal do Desengano ao Mosaico Central Fluminense, onde o Caminho está restaurando 30 hectares de Mata Atlântica. Julieta terminou esta etapa na Pedra do Bufão, promontório rochoso muito bonito que marca a divisa de Madalena com Trajano de Moraes.

Percorreu em seguida um grande trecho em Trajano, município chave para a conexão florestal entre o Parque Estadual do Desengano e o Mosaico Central Fluminense, onde o Caminho está restaurando 130 ha de Mata Atlântica. Locais muito bonitos como a Cachoeira de Sodrelândia e a Represa de Tapera aparecem na paisagem, e a parte final, subindo a estrada para o Tirol e cheia de beleza com o Rio Macabu sempre ao seu lado. Dali desceu para o Arraial do Sana, passando pela RPPN Shangrilá, uma das mais antigas do estado e prova viva que é possível recuperar nosso querido bioma. 

Do Arraial do Sana para Lumiar, pequeno vilarejo na região serrana do Rio, é uma subida extenuante e longa, mas com cachoeiras e visuais que compensam o esforço. Passando por trilhas e estradas rurais dentro da APA Macaé de Cima, nossa caminhante chegou a parte urbana de Friburgo e aos pés do Pico do Caledônia, ponto de divisa com nosso próximo núcleo.

Núcleo Serras da Guanabara

Neste núcleo, Julieta seguiu pelas montanhas do Parque Estadual dos Três Picos, cruzando vales belíssimos como o Vale dos Deuses e o Vale dos Frades. O Pico Maior de Friburgo é o ponto mais alto de toda a Serra do Mar. O circuito de Turismo Rural Três Picos é uma das iniciativas locais apoiadas pelo Caminho. A travessia de Vargem Grande a Aredes permite ver diversos ângulos diferentes das montanhas da região e de Aredes até o Vale da Revolta há uma trilha muito bonita em meio a uma mata bem preservada. De lá, ela pegou um trecho de asfalto até a sede do Parque Nacional da Serra dos Órgãos, onde fez a travessia Petrópolis – Teresópolis, considerada uma das mais bonitas do Brasil. No bairro do Bonfim, este núcleo segue por trilhas do Parque até Magé e dali pega a Baía de Guanabara em direção à cidade do Rio de Janeiro, mas nossa caminhante optou por seguir o Corredor de Biodiversidade do Vale do Café. Os corredores são rotas alternativas da trilha em trechos não adequados para movimentos de animais, como a área urbana do Rio de Janeiro. É por ele que seguimos nossa descrição.

Represa da Tapera, em Trajano de Moraes. Foto: Julieta Santamaria.
Núcleo Vale do Café

Este é um núcleo especial do Caminho, paralelo ao ramal principal, foi criado para planejarmos o corredor florestal entre o Parque Estadual do Cunhambebe e a Reserva Biológica do Tinguá. O traçado foi planejado através da dissertação de mestrado de um voluntário, Caio Alves, e o conhecimento dos voluntários locais.

Depois de atravessar o centro urbano de Petrópolis, o caminho atravessa o MONA Maria Comprida até a localidade de Videiras, seguindo dali o Vale do Rio Santana, beirando a Rebio Tinguá, passando por estradas históricas e trilhas. No outro lado do vale há uma lacuna de cobertura florestal, área com potencial para reflorestamento. Em seguida o Caminho adentra pelo município de Paulo de Frontin, com visuais e cachoeiras incríveis e remanescentes florestais bem expressivos. A descida da serra termina no Parque Natural Municipal do Curió de Paracambi, onde Julieta chegou na região de baixada e seguiu pelo pé da Serra do Mar até Cacaria, ali, através de estradas históricas e trilhas pouco utilizadas, encontrou a Serra do Matoso. Beirando o reservatório de Lajes e percorrendo estradas rurais, o caminhante chega até São João Marcos, parque arqueológico a céu aberto à beira da represa que protege os remanescentes da antiga vila abandonada para construção do reservatório, mas que nunca chegou a ser totalmente alagada. Depois, por estradas de terra, foi até Lídice, cidade com muitas cachoeiras e mirantes rodeada pelo Parque Estadual do Cunhambebe. Dali, seguiu até a antiga estrada de Ferro Angra – Lídice  para chegar ao Pico do Frade e adentrar no nosso último núcleo em território fluminense.

A recompensa. Foto: Ernesto Viveiros De Castro.
Núcleo Costa Verde

Passando pelo sertão de Mambucaba até a Praia de São Gonçalo, onde pela primeira vez nossa caminhante se encontra com o Mar, Julieta teve a oportunidade de vivenciar experiências com diversas comunidades tradicionais. A subida de São Gonçalo ao Sertão do Cunha, pela Trilha da Melancia, é bem cansativa e com pouco acesso a água, mas o visual da Pedra da Macela lá no alto compensa bem o visual. Dali a descida pela trilha dos Sete Degraus leva ao centro histórico de Paraty.

Se Julieta optasse pelo trajeto principal, cruzando a cidade do Rio de Janeiro, ela passaria ainda pela Baía de Sepetiba e daria a Volta na Ilha Grande, tradicional trilha também inserida no Núcleo Costa Verde, antes de chegar à Mambucaba.

De Paraty Juliana pegou um barco até Paraty Mirim, onde iniciou a Volta da Juatinga, uma das caminhadas clássicas do estado do Rio de Janeiro. Vivenciando a cultura caiçara em diversas comunidades e praias ao longo deste percurso, ela finalmente chega a Praia de Trindade, onde termina o trecho fluminense percorrido por nossa aventureira… 

Em breve falaremos do Litoral Norte, próximo trecho a ser percorrido, mas agora vamos saber como foi essa aventura pela própria Juli…

Depoimento da Julieta: Diário de Bordo: Surpresas e Desafios no Rio de Janeiro

Rio de Janeiro foi uma surpresa a cada dia. As pessoas do interior me receberam com tanto amor e admiração durante toda a jornada. Caminhei mais de 650 km, passando pela região serrana e pelos vales, até descer para a área da praia. Cada pedaço desse caminho trouxe algo novo e especial.

Enfrentei trilhas desafiadoras e muita chuva, já que peguei as últimas águas de março. Às vezes, isso impedia de seguir adiante, mas aprendi a ter paciência e a abraçar tudo o que acontecia, mesmo que significasse passar mais de um dia em um lugar ou sair da rota para conhecer outros cantos com as pessoas que me acolhiam. Essas pausas inesperadas tornaram a experiência ainda mais rica.

A aventureira Julieta Jazmin Santamaria caminhará até o Rio Grande do Sul. Foto: Julieta Santamaria

A ajuda do pessoal do CMA foi incrível. Eles me conectaram com parceiros e voluntários que me acompanharam em trechos, me ofereceram comida e até um lugar para dormir. Sempre disse que eu caminho com meu corpo, mas a jornada estamos fazendo todos juntos. Sem essa rede de apoio, a experiência não teria sido a mesma.

Às vezes, quando menciono que vou passar por uma estrada rural, as pessoas acham que será chato e feio. Mal sabem elas a beleza desses lugares! Em qualquer direção que eu olhasse, as serras ao meu redor formavam uma paisagem de tirar o fôlego.

Me apaixonei pela região e não consigo escolher um lugar favorito, porque todos foram incríveis. Mas, subir nos cumes foi especial: a Pedra Dubois, em Madalena; o Peito do Pombo, em Sana; a travessia Petrópolis-Teresópolis com pores do sol acima das nuvens; o Pico do Frade e o Pico do Pão de Açúcar; em Paraty. Ainda há lugares pendentes, como a Cabeça do Dragão, no Parque Estadual dos Três Picos, que não consegui fazer por causa do clima, mas pretendo voltar.

Aprendi muito nessa caminhada e minha conexão com a natureza se tornou muito forte. Adoro passar horas no mato e ficar sozinha nas cumes, porque me faz perceber o quão pequenos somos. Cada pessoa que conheci me ensinou algo sobre a natureza e seu cuidado, sobre plantas medicinais e comestíveis.

Também aprendi muito sobre mim mesma, já que tenho bastante tempo para pensar. Com certeza, não sou a mesma pessoa de dois meses atrás. No início, se eu errava o caminho, ficava escuro ou eu ficava sem água, entrava em desespero. Hoje, aprendi a controlar isso, porque mantendo a calma consigo lidar melhor com as situações e pensar com mais clareza nos momentos tensos.

Continuo aprendendo, descobrindo e me interessando. Estou sempre motivada para cumprir meu objetivo e aproveitar cada momento, até os ruins. Sem esses perrengues, os momentos bons não seriam tão gratificantes.

Obrigado por acompanhar minha jornada. Até a próxima!

Próximos Passos

Julieta agora se prepara para enfrentar o trecho do Litoral Norte, ansiosa para continuar sua jornada e compartilhar mais histórias de sua aventura. Sua travessia é uma inspiração para todos que acreditam na importância de preservar e restaurar a Mata Atlântica.

Acompanhe as próximas etapas desta incrível jornada e descubra mais sobre a importância do Caminho da Mata Atlântica para a conservação ambiental e a promoção do ecoturismo responsável e sustentável.

Prontos para a próxima? Foto: Foto: Ernesto Viveiros De Castro.

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Julieta Santamaria

    Nomade Digital, aventureira e primeira pessoa a tentar completar o Caminho da Mata Atlântica

  • Chico Schnoor

    Geógrafo e educador ambiental. Atualmente é coordenador geral do Caminho da Mata Atlântica

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