Pouco importa se os brasileiros, em geral, nunca ouviram falar da família Rivulidae. Ela está por aqui há 120 milhões de anos. E recentemente nos foi apresentada, com pedigree científico e devoção de aquarista, pelo biólogo Wilson José Eduardo Moreira da Costa, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É dele a primeira pesquisa sistemática sobre os peixes anuais, que desaparecem na seca e ressurgem na estação das águas, através de ovos depositados na lama.
Moreira da Costa poderia dizer que gastou nisso a vida toda, desde que ganhou o primeiro aquário aos três anos de idade. E de 1982 para cá, praticamente não faz outra coisa além de estudá-la, no laboratório de ictiologia da universidade. Mas foram seus seis anos de viagens pelo Brasil, revirando alagados, várzeas e brejos que o transformaram na maior autoridade do mundo em Rivulidae. O catálogo que trouxe dessas andanças, lançado como livro de circulação restrita em 2002, reúne pela primeira vez 107 espécies desses peixes. Nada menos que 67 foram descobertas pelo professor. Outras, reencontradas por ele depois de passar mais de um século sumidas nos anais da fauna brasileira.
Na coleção, a caatinga entra com 17 espécies. E delas 11 estão a perigo. São endêmicas de lugares prestes a serem desfigurados pela transposição do rio São Francisco. O presidente Lula certamente não sabe disso. Mas, para Lula, não saber o que se esconde sob a superfície de seu governo sempre foi questão de estilo e agora passou a ser questão de sobrevivência. Estranho mesmo é o Ibama dar licença a uma obra cujo preço inclui nada menos do que 11 extinções. Em princípio, ele não é pago para isso.
Moreira da Costa está acostumado a essas coisas. Lida com bichos que resistiram à passagem das idades geológicas mas não suportam o tranco da civilização. A soja está acabando com eles no cerrado, por exemplo. E os peixes anuais são muito suscetíveis a barragens, o que deve deixá-los com saudades do ministro José Dirceu, agora que o país passou a ser governado pela ministra Dilma Roussef. Ela é a campeã das hidrelétricas. Mesmo as que devem sua existência à falsificação dos relatórios de impacto ambiental. É disso, por sinal, que falava outro dia o secretário-adjunto do ministério das Minas e Energia Maurício Tolmasquim, ao dizer que os ecologistas atazanam essas usinas com pedidos ridículos, como “escorrega para canarinho”e “banheira para macaco”.
Ou seja, peixe anual é bobagem. O governo tem mais o que fazer. Sobretudo num momento em que, tendo perdido a clareza sobre o futuro, ganhou mais pressa de chegar lá. Tanta pressa que a transposição acaba de ser marcada para começar em agosto e Lula, ao fazer a promessa em cadeia de rádio e televisão, já aproveitou para creditar na sua conta os “12 milhões de famílias beneficiadas” pelo projeto. Querer é poder. E o futuro sempre foi um negócio relativo, para este brasileiro pobre que subiu na vida sem olhar para a frente e exerce a presidência como se ela fosse um interminável acerto pessoal de contas com o passado. O Fome Zero, lançado em nome de 52 milhões de brasileiros, era antes de mais nada um modo de nos lembrar que em meados do século XX a barriga de Lula roncava. E daqui para a frente a “revitalização” do São Francisco não deixa de ser agora o memorial de sua origem nordestina, talismã biográfico que se conserva no Palácio da Alvorada com fumaça de charuto Cohiba e toalhas de algodão egípcio. Se seus 12 milhões de “famílias beneficiadas”não incluem a Rivulidae, azar o dela.
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