Na tela e em cores, despontando como ilhas vulcânicas das ondas mansas que embalam os relatórios de qualidade do ar no Pólo Petroquímico Camaçari, os picos repentinos de poluição pareciam ainda maiores do que nos gráficos onde anos atrás foram avistados pela primeira vez . Sempre nos meses de junho e ainda por cima em horas mortas do expediente, eles surgem de repente, como se brotassem do nada nos monitores. E devem ter inquietado os técnicos como faziam agora a platéia se remexer nas cadeiras do auditório escuro, entre quatro paredes cegas, no núcleo de convenções de um hotel turístico, a poucos passos do verão sem-fim que lá fora punha à disposição dos presentes mais um dia de praia no litoral baiano.
Não é preciso dizer mais. Já deu para entender que se tratava de um seminário, desses que se reúnem diante das melhores paisagens possíveis para cumprir um programa de reclusão e confinamento. No caso, era um seminário sobre jornalismo ambiental. E naquele momento ele se dividia entre o jornalismo, que ocupava a maior parte da platéia, e a ordem do dia ambiental, que estava de pé no palco. Falando, o químico Demósthenes Miranda de Carvalho dava a impressão de saber, por experiência própria, o efeito que aquele flagrante de poluição do ar teria sobre os repórteres, a essa altura meio entorpecidos na audiência pela longa exposição a gráficos complicados e símbolos indecifráveis. Era aquela hora do dia em que o sol bate tinindo num mar resplandescente. E todo mundo sabe que palestra com muito número no Powerpoint é mistura indigesta até para ruminar o café da manhã.
Foi aí que Carvalho sacou o seu trunfo. Ele é diretor de operações da Cetrel. Fundada há 28 como estatal para cuidar dos resíduos indústrias do Pólo que estava então nascendo, a empresa acabou privatizada em 1994 e se espalhou por todos os temas que compõem o repertório do “desenvolvimento sustentável”. Em geral, essas duas palavras, quando se juntam, não querem dizer muita coisa. Basta que soem como mantra para aquietar as relações entre os ambientalistas e os investidores. Mas a Cetrel, sendo uma “Empresa de Proteção Ambiental”, teve que mostrar serviço à altura dos US$ 250 milhões que a puseram de pé. E está hoje cuidando de ar, aquífero, rios, mar, fauna, lixo, esgoto e até na duplicação do retalho de mata atlântico que restou à sua volta. Por isso, chamou os jornalistas para uma conversa sobre meio ambiente.
E era isso que Demósthenes Carvalho estava fazendo com os tais gráficos. “Vocês sabem que no interior da Bahia a tradição popular das festas juninas é muito forte”, ele disse, assim que o adutório cravou o olho nos flagrantes de descontrole da poluição atmosférica. O que era aquilo? Elementar, meu caro repórter: a fumaça dos rojões e das fogueiras de São João nas cidades do município, onde em volta do Pólo moram quase 200 mil pessoas. Os fogos de artifício costumam furar os limites tolerados pelos sensores, que em dez estações fixas medem três vezes por dia as emissões das indústrias concentradas em Camaçari, a 50 quilômetros de Salvador. São 60 empresas. Juntas, respondem por quase 29 mil empregos, somam US$ 10 bilhões em investimentos e geram mais de 30% do PIB baiano. E estão ali porque, na década de 70, o regime militar professava uma doutrina de desenvolvimento econômico que considerava a poluição um justo preço a pagar pelo progresso.
Três décadas depois, lá estava, representando o Pólo, o engenheiro químico Jorge Souto, da Braskem. É a petroquímica do grupo Odebrecht. No ano passado, ela faturou R$ 14,3 bilhões. Mas Soto queria explicar como funcionam os incineradores capazes de transformar em cinza inerte ou energia reaproveitável os venenos que passam por seus tubos. Nada mau, para um país onde os fornos de carvão vegetal até hoje atuam no front do desenvolvimento de regiões como o Cerrado, queimando as últimas fronteiras da vegetação nativa como postos avançados da tecnologia neolítica.
Em outra palestra, o alagoano Manoel Maia Rocha, do alto de seu PhD em recursos hídricos, que para espanto dos colegas preferiu aplicar no Nordeste brasileiro depois de sete anos de estudo no Canadá, contava como se monitora, protege ou recupera a água do subsolo num terreno ocupado por indústrias tradicionalmente poluentes e sujeitas a vazamentos tóxicos, quando esbarrou sem querer na transposição do Rio São Francisco. É o tipo do assunto que, em boca de político, costuma espadanar nas páginas dos jornais sem dar um passo à frente.
Maia Rocha livrou-se dele como se afastasse um mosquito zumbindo na sala. “No sertão da Bahia chove mais do que em Paris ou Londres”, ele disse, levando o auditório a se mexer novamente nas poltronas. E explicou que não é propriamente de água que mais carece o semi-árido nosdestino. Falta mesmo faz o armazenamento, porque a água que cai do céu escoa depressa pelo velho chão cristalino, impermeável demais para retê-la. Levar água de um lado para o outro no sertão é contra-senso, porque isso o solo já faz sozinho há muito tempo. Dito isso, voltou ao tema com a pressa de gente que tem mais o que dizer sobre outros assuntos, mesmo vivendo num Brasil cada vez mais obrigado a discutir sempre as mesmas coisas. Em poucas palavras, jornalismo ambiental é isso.
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