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Nove orquídeas e um destino

No comando do Projeto Cores, o botânico Cláudio Nicoletti de Fraga tem três anos para abrir os caminhos que desviem da extinção nove orquídeas da Mata Atlântica.

12 de maio de 2006 · 19 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

A Laelia lobata (foto) é uma orquídea típica da Mata Atlântica, mas vive no meio de uma cidade com 6 milhões de habitantes. Como o Rio de Janeiro abraçou os morros onde se entrincheira, ela resiste ao avanço da selva urbana pendurando-se no granito da Pedra da Gávea, do Morro Dois Irmãos e do Pão de Açúcar. Não existe senão nesses três lugares, de preferência pendurada sobre abismos, agarrando-se em frinchas da rocha nua que só urubus e montanhistas costumam ver de perto. Até a década de 1930, ainda se enxergava lá de baixo sua floração tingir o Pão de Açúcar de manchas rosadas na entrada do verão. E até hoje a Pedra da Gávea guarda lembranças de seu passado de planta epífita, gravado nos troncos das árvores por vestígios de raízes e as marcas dos facões que as arrancaram. Como outros sobreviventes dos morros cariocas, tornando-se rupícola ela conseguiu se virar. O que sobrou na cidade dessa orquídea para lá de endêmica, diz o botânico Cláudio Nicoletti de Fraga, está ali porque foi até agora “protegido pela própria sorte”. Vingou fora do alcance de mateiros e colecionadores.

A Laelia lobata é o carro-chefe de seu Projeto Cores, um programa para a conservação de orquídeas ameaçadas de extinção em cinco estados. É uma corrida contra o tempo. O patrocínio da Petrobras lhe deu três anos para avaliar os riscos que pesam sobre nove espécies, espalhadas por fragmentos florestais da Bahia a São Paulo. Delas, três só existem no Espírito Santo, duas no Rio de Janeiro e uma em Minas Gerais. Mesmo as duas orquídeas que atravessam fronteiras estaduais, conquistando o diploma da “ampla distribuição”, são raras e esparsas. Resistem em enclaves de mata nativa que estão definhando. Escondem-se em grotas inacessíveis e copas altas, cuja inspeção exige cordas e técnicas de escalada.

Pesquisa e aventura

O programa é, em si, uma aventura. Do tipo que faria sucesso em qualquer canal de televisão. E, se nomes como Cattleya schilleriana (foto) ou Laelia xanthini não lhe dizem nada, bastaria as fotografias anexadas ao flolheto do programa por Fraga para explicar por que o projeto se chama Cores. Sob seu comando, dez pesquisadores – fora os montanhistas que lhes dão apoio – estão em campo para descobrir o paradeiro dessas orquídeas e o que ainda se pode fazer para salvá-las, junto com as matas que lhes servem de berçário. Mas o primeiro passo será cuidar do caso da Laelia lobata carioca. Nisso, estar tão perto do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, onde Fraga trabalha, é uma vantagem. Seu hábitat “100% urbano” é tão restrito que torna mais fácil inventariá-la. “Não é preciso procurá-la por aí no dossel da floresta”, ele diz. Sem contar que o projeto inteiro nasceu de planos para reintroduzi-la em seu ambiente natural, em plena cidade, uma idéia que Fraga vinha matutando desde que se mudou para o Rio de Janeiro há quase cinco anos. “Só que era muito mais modesto”, esclarece.

Ele cresceu em Vila Velha, no Espírito Santo, o que foi meio caminho andado para descobrir a vocação de trabalhar com a conservação da natureza. Sua mãe, que se mudou para lá ainda menina, foi a quarta moradora do local. Mas quando o filho nasceu, há 36 anos, a cidade de Vitória já se esparramara sobre Vila Velha e o Espírito Santo já não era nem sombra do que foi em 1912, quando o Mapa Florestal de Gonzaga de Campos registrou 76,54 de florestas originais em seu território. Devastaram-no de alto a baixo em menos de meio século. “Minha memória é a dos outros”, diz ele. Através do professor Oberdan José Pereira, na Universidade Federal do Espírito Santo. E de seu pai, que viajou muito pelo interior, como técnico agrícola do banco estadual de desenvolvimento.

Com as lembranças alheias de um Espírito Santo que ele mesmo não conheceu, Fraga criou um sentimento de perda que o levou para a Biologia. E a Biologia levou-o para a conservação. Fez mestrado no museu Mello Leitão, em Santa Teresa, onde o autodidata Augusto Ruschi moveu céus e terras contra a indiferença geral pelo patrimônio natural do estado. Coordenou o inventário da flora em perigo de extinção no Espírito Santo. Juntou um cadastro de 4.159 espécies. Pôs 753 na lista de plantas ameaçadas. Excluiu 23, por irremediavelmente extintas. No Brasil, a lista de plantas provavelmente condenadas anda pela casa das 1.500 espécies. Mas, por isso mesmo, ela ainda não se tornou oficial.

Três mil imagens

Para tirar do chão o Projeto Cores, Fraga produziu pessoalmente até o programa com animação de imagens que exibiu na Petrobras, durante a assinatura do contrato. “O Powerpoint faz qualquer um parecer profissional”, ele comenta. Encaixou na apresentação versos de Cecília Meireles. Criou cenas em que a mata em preto e branco se colore na tela. Usou fotos suas. É amador, mas dos bons. Com a vantagem de freqüentar lugares onde os outros amadores dificilmente põem os pés. E de morar em Camboinhas, do outro lado da baía de Guanabara, onde Niterói se encontra com o mar aberto.

Guarda em casa mais de 3 mil slides e 4 mil fotografias em papel. Não faz muito tempo que se converteu, com certa relutância, às câmeras digitais. Uma vista aérea da floresta amazônica serve de fundo à tela de seu computador. Fotografou-a nos arredores de Urucum, onde visitou a convite da empresa um poço da Petrobras no meio da selva, tido como modelo de baixo impacto ambiental. “Ele de fato mexeu menos com a mata do que a população ribeirinha”, diz Fraga. À sua frente, no vidro que dá para o arboreto, grudou um adesivo do Projeto Cores, feito com uma foto sua da Laelia lobata. Talvez não seja de propósito. Mas, quando Fraga aponta para a janela, parece estar falando de uma planta viva, brotando lá fora.

O posto de comando do projeto é uma sala coletiva, com entrada pelos fundos do prédio. Quem abre a porta, cai diretamente no meio da equipe. Se puxar a cadeira mais próxima para conversar com Fraga, toma sem querer o lugar de um funcionário no computador ao lado. É evidente que o programa das orquídeas estaria fora do alcance daquele setor do serviço público, se a Petrobras não decidisse bancá-lo. Ele é caro. Quanto, Fraga não pode revelar, por exigência do contrato. Admite, no máximo, que os custos são “enormes”. Mas a empresa tem prática no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Apóia o Programa Mata Atlântica, que pretende guardar o arquivo genético do que a floresta está perdendo para os incêndios e as motosserras. Patrocina a informatização do herbário. E ajuda na manutenção do Horto.

Orquídea a fungo

Proteger as nove espécies ameaçadas implica antes de mais nada inventariá-las. Mapear sua distribuição nos cinco estados. Decifrar os segredos de sua reprodução na natureza e as simbioses que as sustentam. E entrevistar mateiros, orquidófilos e comerciantes de plantas, para saber se elas continuam rapinadas pelo comércio clandestino da flora nativa. Fazer para cada caso um “diagnóstico sócioambiental” dos perigos antrópicos que rondam seus últimos redutos, que nem sempre são os presumíveis. Em Santa Leopoldina, no Espírito Santo, a população até que espontaneamente de conservar o que lhe restou de floresta. Resultado: vem mateiro de longe roubar orquídeas na região. E, em vez de subir nos galhos, derruba árvores inteiras para tirar uma planta.

Mesmo os casos que soavam simples no começo da conversa vão ficando mais complexos, à medida que Fraga descreve o trabalho de campo. A Laelia lobata, por exemplo, produzi milhões de sementes, mas elas só germinam no mato associadas a um fungo. “Em laboratório, tudo germina. Mas, in situ, antes de reintroduzi-la, temos que saber com certeza se aquele fungo específico está por perto. Senão, seria como soltar no mato um bicho estéril”, diz Fraga. É tarefa “para profissional”. Que, de quebra, mexe com plantas fotogênicas, que têm tudo para contar com a simpatia dos leigos. Mas ele esclarece que se meteu no Projeto Cores por outro motivo. “Trabalho com planta e planta é uma coisa que está acabando”, afirma.

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