O documentário, em si, dura onze minutos. Mas a voz cansada do narrador soa como se falasse em nome da eternidade. Ele conta, passo a passo, a queda de um pinheiro do Paraná como se aquilo estivesse acontecendo ali na hora, ao ritmo dos machados de cabo “envernizado de tanto uso”, em “golpes surdos, constantes, certeiros”, que tiram “lascas cheirosas”das feridas na resina. Não se vê o pinheiro cair nas cenas filmadas pelo fotógrafo Haroldo Palo Júnior. Mas na locução parece ao vivo e em cores: “toc, toc, toc”, “vai cair, vai cair”.
Gravar a cena foi um dos últimos trabalhos do ator Gianfrancesco Guarnieri, que morreu em julho. Agora sai “A Grande Derrubada”, como serviço póstumo à SPVS, Ong paranaense que, pela mão do publicitário Eloi Zanetti, procura com o documentário quem adote os últimos pinheirais do estado, pagando para mantê-los em pé. Num país onde as campanhas políticas parecem mais mortas do que nunca, a voz de um morto prova que, se elas acabaram, não foi por falta de causas ou de assunto. Pena que, para isso, não haja lugar nem partido nos horários de propaganda gratuita.
Tem pinheiro, não presta
Sobram, no Paraná, 0,8% das suas matas nativas de Araucaria augustifolia. E, mesmo reduzidas a esse ponto terminal, continuam caindo essas árvores que surgiram na terra há 300 milhões de anos e, em meados do século 16, quando o explorador espanhol Alvar Nuñes subiu o Prata, eram tão grandes “que vários homens com os braços estendidos não conseguem abraçar”. Por que caem? A resposta pode ser quase inocente, como a do agricultor Felipe Paulo Rickli, soprada no documentário pelos vãos de caninos de ouro emergindo da barba branca: “Papai mandou nós ir ver o terreno e nós voltemos aborrecidos, porque o terreno do homem não presta. É só pinheiro”.
É o mesmo Rickli que aparece depois, comentando os prejuízos agrícolas do desmatamento. Pelo seu “parpito”, mais valeria conservar o mato na cabeceira dos arroios. Do arroio mais próximo, ele confessa que seu irmão tirou “um capãozinho de pinheiro”. Depois, “o genro dele destocou o terreno e fez roça”. No fim, “não sobrou nem a metade do arroio que era”. Visto assim, Rickli nem chega a ser o culpado do estrago. É antes de mais nada vítima dos costumes perdulários que o brasileiro herdou de seus colonizadores. O legendário botânico Gerdt Hatschbach, que aos oitenta e tantos anos ainda faz pesquisas de campo e conheceu o Paraná com florestas de araucária aparentemente sem fim, viajando um dia pelo interior, sob a cortina de fumaça que cobria o caminho, encontrou 60 quilômetros de pinheirais queimando, “porque o dono não queria vender a madeira para as serrarias”.
“Tinha muito, muito, muito”, lembra o agricultor Leonardo Czeleiski, nascido numa paisagem coberta pelos pinheiros. Mas seu pai “era dono de uma serraria que começou a serrar em 1923 e em 1928 ele parou, porque não deu mais para tocar”. A fonte de madeira havia secado em meia década. Em seu lugar restou “só devastação, ninguém ficou melhor de vida porque vendeu pinheiro”. O problema é que, depois das serrarias, quase sempre vêm os campos de soja, que devastam mais ainda. “Todos vinham para cá para ficar ricos depressa e voltar”, lamenta o engenheiro florestal Miguel Milano. Ele cresceu no planalto paranaense dos anos 50, tomando banho em rio limpo e catando jabuticaba, pitanga, araticum, uvaia e pinhão na mata que confinava com os fundos de Palmital, então um arruado de casas de madeira.
Brincando de serraria
Milano viu fazendeiros e sitiantes venderem as araucárias de Palmital à indústria de papel, milhares de cada vez. Naquela época, os meninos do interior brincavam com caminhões de madeira sem caçamba, carregados de troncos, imitando o que faziam seus pais e avós. “Eram brinquedos feitos em casa, exatamente como os grandes, que passavam na estrada sem parar”, ele conta. A mata desertou Palmital. Mas em seu caso o desmatamento serviu ao menos para empurrar Milano de uma vez por todas na direção do ambientalismo, lutando a vida inteira contra os costumes de um país que tem leis muito boas e hábitos muito ruins, quando se trata de conservar a natureza.
“A Grande Derrubada” chegou para dizer que não adianta mais esperar pela solução caída do céu, em forma de providências do governo. Não dá tempo para esperar que a sociedade mude e, mudando, conserte os políticos. “Está na hora de tomar uma decisão final”, resume o veterinário Clóvis Borges, que puxa a campanha para a adoção das últimas matas com araucárias do Paraná, por pessoas ou empresas dispostas a seu direito a continuar onde estão. Ele tem a única proposta para o meio ambiente que o brasileiro poderia ouvir neste triste ano eleitoral.
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