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Falta o presente de aniversário

Com o Jardim Botânico do Rio preparando a festa para comemorar seus 200 anos, que tal lhe dar um bom presente de aniversário? Ou seja, a terra que a favelização lhe tomou.

9 de março de 2007 · 18 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Um dos mais belos troféus de nossa inconstância ambiental vai fazer 200 anos. É o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, exemplo raro de perseverança numa terra em que poucas coisas duram séculos – fora , naturalmente, a inconstância ambiental, porque nela o americano Warren Dean apontou o grande lugar-comum desses 500 anos de História do Brasil. Com reformas internas e uma nova safra de livros auto-congratulatórios, ele está esquentando os tamborins para a festa do bicentenário no ano que vem. E merece. É a única herança do príncipe D. João onde ainda sopra, entre as folhas do arboreto, a brisa civilizatória que trouxe para cá a corte portuguesa em 1808.

E não adianta lembrar que, em 2008, o Banco do Brasil também fará dois séculos de vida. O banco é de outubro. E o jardim, de junho. Não só veio antes, como nele, quando se fala de vida, trata-se de vida mesmo, mantida mais ou menos sem interrupção por esse tempo todo, mesmo se, às vezes, sua sobreviência andou por um fio.

Barbosa Rodrigues

O Jardim Botânico atravessou décadas de abandono, depois da Independência, atestando mais uma vez a tradição universal de que, nas crises políticas, as primeiras vítimas costumam ser as árvores. E estava em petição de miséria quando, nos primeiros anos da República, passou às mãos de um administrador disposto a consertá-lo.

Ele se chamava João Barbosa Rodrigues.Era formado em Economia Política, Direito, Ciências e Letras. Mas, em Botânica, fabricara seu próprio diploma, como autor de um livro precoce e pioneiro sobre as orquídeas brasileiras. Era um desses homens que não se fazem mais. Usava pincenê na ponta do nariz. Ia ao mato envergando ternos de caroá. Tapava metade da cara com bigodão felpudo, que lhe dava, nas velhas fotografias, uma inquietante semelhança com Groucho Marx. Mas via além de seu tempo.

Foi seu o primeiro regulamento para visitação do Jardim Botânico, proibindo os freqüentadores de “entrar embriagados”, portar “armas proibidas”, “almoçar, jantar ou tomar qualquer refeição ou bebida alcoólica” lá dentro, “tomar banhos, ainda que com vestiário decente” e “inscrever em qualquer parte dísticos, letreiros e figurasblica e Nova Repassar xperimentaquenique, que lhe pareceram toisas, plantados sem ordem, sem classifica”. Mas disciplina, no duro, foi a que impôs ao próprio arboreto, que a seu ver não passava na época de “um simples jardim de recreio, quase secular”, pisoteado entre 1890 e 1894 por mais de 144 mil pessoas, e isso numa cidade que estava, então, com 500 mil habitantes.

Barbosa Rodrigues encontrou no jardim uma coleção botânica limitada a “450 ou 500” espécies. Resolveu deixá-la com, “pelo menos”, três mil espécies. Condenou os “grandes panos de grama, cheio de vegetais exóticos, isolados ou em grupos, quase todos comprados a horticultores, plantados sem ordem, sem classificação, sem uma indicação apenas”. E baniu do parque as mesas de piquenique, que lhe pareceram típicas de “estalagens de aldeia”.

Jockey Club

Mas, na década de 1920, a República Velha arrancou do Jardim Botânico os 54 hectares na beira da lagoa Rodrigo de Freitas, onde havia árvores da Amazônia e manguezais. O terreno foi doado ao empresário Linneo de Paula Machado para construir o Jockey Club Brasileiro, um dos maiores monumentos à grãfinagem nativa, tombado no ano 2000 como bem cultural da cidade. Mas nem uma placa, no Rio de Janeiro, recorda o patrimônio natural que a lagoa perdeu com aquela canetada do presidente Epitácio Pessoa. O Jardim Botânico foi o primeiro a perder no Jockey. E perdeu sem sequer apostar.

Vinte anos atrás, findo o regime militar, durante o surto de experimentação política que quis passar à História como Nova República e chegou exausto ao século 21, reduzido a isto tudo que está aí, o Jardim Botânico ficou mais uma vez à matroca. Essa trepidante fase do “tudo pelo social” semeou no arboreto 589 construções irregulares. São casas erguidas desde o começo do século por diretores que privatizavam o patrimônio público em favor dos funcionários e, mais tarde, multiplicaram-se em prédio feitos de qualquer jeito para acomodar filhos, parentes, agregados, locatários e até biroscas. Nenhum dos invasores tem direito a usucapião, pois isso não funciona em imóveis da União. Simplesmente, a reintegração de posse não caminha no Judiciário, entre outros motivos porque árvore não berra, não vota e não sai à rua de vereador a tiracolo, quando aparece um oficial de justiça.

Com didática ironia, essa favela murada dá para uma rua chamada Pacheco Leão. Tem nome de um antigo diretor do Jardim Botânico que, segundo a lenda que assombra o arboreto, morreu de desgosto em 1931, inconformado com derrota que lhe fora imposta pelos cavalos de corrida. A coincidência juntou no mesmo endereço dois símbolos do desapreço histórico pelo aniversariante de 2008.

Mau sinal. Tudo indica que o país dificilmente dará ao Jardim Botânico o único presente de aniversário que poderia ajudá-lo a entrar com o pé direito no primeiro dia dos próximos 200 anos. Um seja: um pedaço do que sempre lhe pertenceu.

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