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Nem a escravidão fez tanto quilombo

Em poucos anos de vigência, o decreto 4.887 criou mais quilombos do que quatro séculos de escravidão. E nem por isso o STF tem pressa de resolver se ele é ou não constitucional.

4 de julho de 2007 · 17 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Pobre Reserva Biológica do Guaporé. Ela está na mira de um processo para titulação dos moradores de Santo Antônio. Dentro do refúgio natural, o povoado não passa de dezessete famílias. Ocupa duzentos hectares de terra firme, numa planície encharcada de Rondônia. Mas, pródigo, como sempre que se trata de privatizar o patrimônio público, sobretudo nas últimas fronteiras selvagens do território brasileiro, o INCRA resolveu que as dezessete famílias não cabem em menos de 86 mil hectares.

É muita bondade do INCRA. Oitenta e seis mil hectares dariam para fazer quase três parques nacionais como o do Itatiaia, que acaba de completar setenta anos e, mesmo sendo o decano das unidades de conservação no país, espera sentado numa pilha de conflitos históricos sua regularização fundiária. Mas, ao contrário dos parques nacionais, os quilombos têm pressa. Só falta acertar as contas.

Dança de números

No Santo Antônio do Guaporé, o Ibama, depois de ouvir os quilombolas, concluiu que bastariam 3,5 mil hectares da reserva para os moradores viverem, como fizeram até hoje, dos roçados de subsistência, da criação de animais domésticos e pesca. E, em nome dos quilombolas, José Soares Neto, ou Zeca Lula, garante que eles se contentariam com 44 mil hectares. Isso é mais ou menos a metade do que lhes propôs o INCRA. Pelo rigor dos números se vê como a história do quilombo está bem contada.

Zeca Lula preside a Associação Comunitária Quilombola e Ecológica do Vale do Guaporé. É vereador, em terceiro mandato. Reside, como convém a um político profissional, na cidade. Mas não abre mão da reserva. Ele argumenta que ela só escapou da apocalíptica colonização de Rondônia graças aos quilombolas, que teriam barrado a entrada de fazendeiros e madeireiros, se bem que contaram ali com a ajuda providencial das inundações do rio Guaporé. Mesmo assim, o vereador defende um projeto de colonização. Ele alega que as dezessete família precisariam dos tais 44 mil hectares porque, uma vez titulado, o quilombo dificilmente continuaria “com esse pouquinho de gente”.

Sua ONG está tão afinada com a verborréia extrativista, elevada pelo Ministério do Meio Ambiente a política oficial de conservação, que se apresenta como Ecovale. E como Ecovale foi multada pelo Ibama no ano passado em 192 mil reais, pela captura ilegal de tartarugas. É um dado a mais na inundação de pesquisas sobre o impacto da presença de gente em unidades de conservação, que marcou há duas semanas os debates entre especialistas no congresso de Foz de Iguaçu.

Dez unidades

A história de Guaporé continuaria enterrada nos cafundós do Brasil se a repórter Andreia Fanzeres não fosse pescá-la quase na fronteira com a Bolívia para publicá-la aqui em O Eco esta semana. Dez unidades de conservação federais andam metidas em disputas semelhantes com quilombolas. Mas nenhum brasileiro precisa ir muito longe para encontrar um quilombo brotando, com selo oficial, praticamente na esquina de casa. Se alguma coisa está acontecendo pela-primeira-vez-na-história-desse-país – ou mesmo deste planeta – é que, praticamente 120 anos depois da Lei Áurea, o Brasil produz quilombolas como nunca.

Eles engrossam o front das oito mil “comunidades tradicionais”que estão agora mesmo na fila por um naco do território nacional. A maioria fica em área verde. Todos esses movimentos têm a simpatia do Ministério do Meio Ambiente e o patrocínio incondicional do INCRA. Mas os quilombolas contam, de quebra, com um reforço meio blindado a recursos jurídicos, que é o decreto 4.887.

Obra do primeiro governo Lula, ele estabelece, desde 2003, que “a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade”. E resolve que, “para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos”.

Em outras palavras, para todos os efeitos práticos, senão legais, quilombola é quem se diz quilombola. E quilombo é tudo o que o quilombola chama de seu. Corre há mais de quatro anos contra o decreto 4.887 uma ação direta de inconstitucionalidade. Ela se baseia no princípio incontroverso de que não se faz lei por deecreto. Mas o Supremo Tribunal Federal não julgou o processo até hoje.

É por isso que, nas portas do Rio de Janeiro, a melhor parte da Ilha da Marambaia pode de passar, depois de cem anos, da Marinha para seus 379 moradores, sem que haja uma brecha na cadeia dominial para justificara transferência da propriedade. Os candidatos a herdar as terras da União ameaçam repartir entre si cerca de setenta por cento dos 82 quilômetros quadrados de litoral fluminense, que a administração do Corpo de Fuzileiros Navais preservou e até recuperou como reserva ambiental efetiva. O decreto 4.887 é tão generoso que, entre os quilombolas da Marambaia, 21% se declararam, num censo de cunho acadêmico, “brancos”. E o governo não está nem aí para esse detalhe.

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