O primeiro representante da civilização ocidental a documentar a existência do gorila no Congo foi o capitão Oscar von Beringe, um oficial alemão que explorou a cadeia vulcânica do Virunga em 1902. Beringe manifestou sua admiração pelo primata que acabava de descobrir nos termos mais eloqüentes da época – à bala. Matou dois gorilas. E, com isso, confirmou lenda de que o bicho era “extremamente feroz”, como dissera um missionário do século 19.
A reputação do gorila só começaria a virar no fim da década de 1950, quando chegou ao Virunga o biólogo George Schaller, inaugurando os novos estatutos da convivência com a espécie. Os mesmos que, muito mais tarde, quando a reserva foi parar no meio dos conflitos étnicos de Ruanda, levariam à morte – e ao cinema, reencarnada por Sigouney Weaver – a primatóloga inglesa Dian Fossey. Para isso, Fossey só precisou seguir os passos de Schaller, o primeiro a se instalar numa cabana de palha, para observar os gorilas como, depois dele, os pesquisadores aprenderam a fazer: pacificamente.
Cara-a-cara
Charles testou seu método entre os gorilas num encontro cara-a-cara com D.J., jovem macho de costas prateadas, em plena idade de comprar briga para mostrar quem manda no pedaço. Um dia, sem mais nem menos, ele conta, D..J. “avançou em minha direção até parar a dez metros, soltando um urro terrível e socando o próprio peito”. O biólogo admite que, nunca, “nem quando estava perfeitamente preparado para isso”, perdeu a vontade de fugir correndo ao ouvir o berro de um gorila. Mas se limitou a recuar “cautelosamente” para um galho a três metros do chão. Seguindo D.J., uma fêmea veio examiná-lo mais de perto. Atrás dela, o bando inteiro acabou a seus pés, cercando-o. Três gorilas mais curiosos ou mais afoitos se empoleiraram na árvore em frente. Um filhote veio sentar-se quase a seu lado. E um macho adolescente chegou ainda mais perto, mordendo a própria boca, em sinal de apreensão.
Assim eles perderam o medo uns dos outros. Os gorilas incorporaram Schaller a seu cotidiano, sem alterá-lo. E, quarenta anos depois, voltando ao Vurunga, ele seria arrancado da rotina de encher seu caderno com anotações “por um leve toque na perna, como se alguém batesse com as costas da mão”. Uma fêmea chamada Gukunda, com o filhote nas costas, tentava fazer contato. Schaller se afastou dela, como manda o figurino da neutralidade científica. Mas se sentiu para sempre “honrado” porque Gukunda o tratara como “um parente”.E diz que essa foi sua experiência mais emocionante de mergulho na vida selvagem.
Não dá para levá-lo ao pé da letra, porque o livro está cheio de histórias parecidas, com outras feras, em todos os continentes. Trata-se, aliás, de um dos melhores livros de aventura publicados em qualquer tempo, embora se apresente, disfarçadamente, como “contos de uma vida em campo”. Saiu este ano nos Estados Unidos, aumentando ainda mais a lista dos dezesseis títulos que o autor publicou sobre seu trabalho. Tem a vantagem de ser menos um relatório de pesquisa, do que uma coleção de lembranças e impressões pessoais.
Pena que, por enquanto, e sabe-se lá até quando, só se possa lê-lo em inglês. Chama-se “Um naturalista e outras feras”, na edição americana, e até pelo nome não parece coisa de cientista. Ecoa, de maneira muito próxima para não ser intencional, o título de “My family and other animals”, a obra-prima do naturalista inglês Gerry Durrell, sobre a sua infância, descobrindo a natureza na ilha grega de Corfu. São livros que todo mundo mereceria ler, antes que o aquecimento global transforme de uma vez por todas o ambientalismo num assunto para roteiristas do cinema de catástrofe. Isso, claro, se um dia alguém se lembrar por aqui de lançá-lo em português. O de Durrell, em quarenta anos, não achou editor nacional.
Schaller conta, em dezenove capítulos, sua vida de trabalho pioneiro nas últimas fronteiras da vida selvagem. Foi ele, sempre, quem abriu o caminho da observação meticulosa para que se pudesse conhecer – e, com sorte, preservar – as onças do Pantanal matogrossense, os caribus do Ártico, os leões do Serengeti, os tigres na Índia, os ursos panda da China, os leopardos da neve no Paquistão, os antílopes endêmicos dos altos platôs tibetanos e outros animais praticamente desconhecidos, antes que a ignorância os exterminasse sem deixar traços. Sempre viveu, como ele mesmo diz, “numa geografia de sonhos”.
Ossos do ofício
Em outras palavras, ele praticamente inventou a biologia de campo. Ou “biologia feral”, como Schaller prefere. Ela se distingue do ecoturismo acadêmico pelo rigor científico, a dureza da rotina e a relevância da causa. Para quem se dispuser a imitá-lo, a receita que ele ensina é de um asceta aventureiro, que sofre de choque cultural quando volta para casa, e não o contrário.
É um ofício para gente capaz de enfrentar, como ele, meses sem conta em saco de dormir, às vezes dormindo ao som de ossos quebrando e couros rasgados pelos dentes de leões a poucos passos de distância. No calor dos trópicos ou no gelo do círculo polar. Esperando até o derradeiro minuto, antes que o inverno feche os passos de montanha no Himalaia. Seguindo pegadas em labirintos de espinhos. Como “um eterno imigrante isolado em culturas estanhas”. Convivendo com tribos na selva amazônica ou nas estepes asiáticas, que têm, em comum, o crescente poder de fogo para aniquilar as espécies que sempre as sustentaram, em nome de tradições ancestrais turbinadas pelo comércio internacional de peles e até de carne selvagem.
Lá pelas tantas, Schaller cita o escritor Peter Fleming, para quem o problema atual das viagens de aventura é que elas ficaram mais fáceis de fazer e mais difíceis de justificar. Mas ele resolveu essa contradição assim que saiu da universidade para o Ártico, há bem mais de meio século. Tem a idéia fixa de conservar “as sobras da beleza original” nos confins do planeta. Persegue ao mesmo tempo um projeto científico e uma obsessão “que o tempo transformou em fé”. Mas, antes de mais nada, faz porque gosta. Com a vantagem de, aos 74 anos, continuar por aí, de mochila nas costas.
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