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A culpa é sempre do mato

A campanha do governo contra as filas de vacinação da febre amarela está servindo de pretexto para que os brasileiros descarreguem nos macacos sua fobia a tudo que vem do mato.

31 de janeiro de 2008 · 17 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

O ministro José Gomes Temporão atirou no Aedes egypti e acertou no que não viu, quando deu ordem de dispersar às filas de vacinação, dizendo que este surto de febre amarela não é urbano, mas silvestre. Em outras palavras, não é coisa nossa, mas praga que dá no mato, problema da natureza a se resolver entre macacos e mosquitos, longe dos jornais e do ministro da Saúde, se os brasileiros não se meterem na floresta, misturando-se às vítimas e aos vetores da doença.

Ouvido isso, o país se sentiu convidado a partir para medidas radicais. E deu para eliminar macacos. Está matando as vítimas, talvez por ser “difícil acertar mosquitos em pleno vôo”, como sugeriu o repórter Aldem Bourscheit, num primeiro inventário da mandinga popular contra a febre amarela. Só em janeiro, morreram uns 30 primatas em Montes Claros, Cabeceira Grande, Itabira, Buritis, Uberlândia e outros municípios mineiros. No Mato Grosso do Sul houve pelo menos seis baixas. Em Goiás, um terço dos municípios aderiu à política irracional de combate ao vírus.

Vacinação obrigatória

Não era o que o ministro pretendia. Aliás, ele bem que tentou enquadrar a crise em argumentos plausíveis, o que nem sempre se pode esperar das autoridades em Brasília. Na internet, a página do Ministério da Saúde está carregada de respostas às perguntas que podem vir da rua, sinal de que nossos sanitaristas aprenderam a lidar melhor com a opinião pública desde a Revolta da Vacina, o levante contra a vacinação obrigatória que, movido a pouca informação e muito boato, virou de cabeça para baixo o Rio de Janeiro há 104 anos.

Os argumentos do Ministério da Saúde são razoáveis, embora incompletos. Omitem, por exemplo, a advertência da Organização Mundial de Saúde sobre a disseminação da doença na África e na América do Sul, onde as cidades têm gente demais e saneamento de menos em favelas, só podendo se considerar realmente livres da epidemia quando vacinam no mínimo 80% da população.

Mas, desdobrando-se em cuidados para não tocar nossos nervos expostos, Temporão cutucou sem querer um gatilho armado por cinco séculos de história do Brasil. Este país é uma guerra sem fim entre o homem e a natureza, como dizia o sociólogo Gilberto Freyre. E tem sólida tradição em pôr a culpa de tudo no mato. Os portugueses farejavam no ar dos manguezais o miasma insalubre dos trópicos, que supostamente tirara do nada as febres mortíferas do verão. Ainda hoje, no centro do Rio de Janeiro, grandes praças, como o Passeio Público, a Cinelândia e o Largo da Carioca, marcam no asfalto o contorno de lagoas aterradas em nome da repressão colonial ao impaludismo.

Uma delas, a do Boqueirão, meio século atrás ainda freqüentava a escola pública através de Meu Tesouro, o livro das professoras Helena Lopes Abranches e Ester Pinto Salgado, que era uma espécie de cartilha cívica para crianças. Lá estava o Passeio Público como produto do sonho de uma linda moça, que inspirou o vice-rei Luís de Vasconcelos, no fim do século 18, com uma conversa ouvida da janela: “Sonhei que esta feia lagoa estava transformada num belo jardim, onde havia até um belo coqueiro”, dizia a musa da administração pública em Meu Tesouro.

“É que a lagoa do Boqueirão, além de feia, era um viveiro de mosquitos, um depósito de podridões, e bom seria suprimi-la de vez, jogando-se nela as terras do morrinho das Mangueiras”, explica o jornalista Brasil Gerson, numa história das ruas do Rio de Janeiro publicada no quarto centenário a cidade. E não faz tanto tempo assim que, no começo do século 20, o médico Oswaldo Cruz, enxertando o progresso científico no sólido tronco das superstições sanitárias, propôs o entulhamento total da lagoa Rodrigo de Freitas, com restos de morros cariocas arrasados pelas obras de melhoramento urbano.

Os justiceiros de macacos tiveram a quem puxar. Matam-se macacos agora mais ou menos como se massacravam gatos em Paris no século 18. Na época, 45% dos franceses morriam antes de completar dez anos de idade, os filhos que vingavam cresciam sob padrastos e madrastas, porque os pais dificilmente passavam dos quarenta, a fome, no inverno, era endêmica, e os piores empregos passavam de uma geração à outra sem sair da família.

Como tudo isso, na época, parecia sem conserto, o remédio era organizar pogroms contra os gatos, que serviram ao historiador Robert Darton como ponto de partida para um mergulho no lado sombrio do Iluminismo, onde a crendice se alimenta da descrença. A matança de macacos não resolve a febre amarela. Mas dá a impressão de que alguém está tentando fazer alguma coisa, numa terra em que as autoridades não se entendem nem na hora de dizer quem está queimando mais que nunca a Amazônia.

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