Desde o advento da Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), no ano 2000, se tornou extremamente difícil a criação ou ampliação de unidades de conservação de proteção integral, ou seja, em especial os parques nacionais ou estaduais, devido à exigência de “consultas públicas” prévias à decretação da unidade pelo Poder Executivo.
Evidentemente, os proprietários, posseiros, invasores ou outras populações atingidas, dentre outros atores afetados, ou que acreditam sê-lo, principalmente representados por políticos locais são, em geral, combatentes ferrenhos contra a criação de uma unidade de conservação em suas terras, ou naquelas que são por eles utilizadas. Este posicionamento é, até certo ponto, compreensível. Os proprietários de uma área que será futura unidade de conservação poderão ser atingidos em seus interesses e, para piorar as coisas, sabem que os processos de desapropriação ou de reassentar populações são muito longos e, às vezes, dolorosos. O Estado não tem tido dinheiro suficiente para pagar as desapropriações. Parques criados há quarenta anos atrás ainda carecem de regularização fundiária. Quando há recursos, os processos administrativos e judiciários são intermináveis. Ficam como terras de ninguém. Por isso, ninguém ou poucos atingidos vêem com agrado o propósito de se criar uma área protegida de uso indireto dos recursos naturais.
Mas, neste caso, trata-se de um confronto entre o interesse pessoal ou local, raramente regional, contra o interesse nacional. Ninguém quer ter uma nova estação de tratamento de esgoto perto de casa, mas todo mundo deseja que o esgoto não escorregue pelas ruas. O mesmo acontece com a biodiversidade, um importante patrimônio nacional e universal. Apenas como amostra, observa-se que a revista Veja de 19-25 de setembro traz duas notícias relevantes para o caso: descobriu-se que o veneno do raro lagarto “monstro de Gila” serve para combater diabetes tipo 2, e o igualmente raro “capim dourado” do Tocantins é sensação nos EUA. Ambos descobrimentos valem fortunas.
Além disso, interessa a todos a preservação do clima mundial e a dos recursos hídricos, das belezas cênicas e de outros serviços ambientais que as áreas protegidas providenciam e, até mesmo, como procedimento ético da nossa espécie com relação às demais do planeta. Todo mundo quer estes serviços, menos aqueles que perderam vantagens. Para resolver isso, a lei estipula que os afetados negativamente por essas necessidades de interesse público, devam ser ressarcidos com equidade. E isso deve ser cumprido com muita seriedade, do mesmo modo que o bem público não pode se submeter aos interesses privados ou de poucos.
A idéia de se fazer consultas públicas para se decidir ou não sobre a criação de uma nova unidade de conservação é, sem dúvida, democrática. Nestes eventos podem surgir muitas sugestões importantes para delimitar a nova unidade ou para administrá-la melhor, ou para limitar qualquer prejuízo, ou inconveniente da vizinhança ou, pelo contrário, para dar mais vantagens a esta. Mas, uma audiência pública de caráter local ou regional não pode decidir, sozinha, sobre ou contra o interesse nacional. Nela, para ser justa e seus resultados aceitáveis, deveriam comparecer representantes de outras partes do país… mas isso é praticamente impossível. Então, o que deve ser discutido é qual é o limite do poder decisório de uma audiência pública formada exclusivamente por interesses locais.
Desde a aprovação da Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, que impôs as consultas prévias, ficou muito mais difícil e se criar ou ampliar uma unidade de conservação de uso indireto. Tanto isso é verdade que de uma forma ou outra, várias tentativas do próprio executivo deram com os burros n’ água, como, por exemplo, a ampliação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, cujo decreto foi anulado pelo Supremo Tribunal Federal (STF); a criação do primeiro Parque Nacional deste governo, o de Itajaí, onde os efeitos do decreto de criação estão suspensos por liminar e a ampliação do Parque Nacional do Grande Sertão Veredas, dentre outros casos. Tudo isso era bem previsível. O artigo que define a obrigatoriedade de consultas públicas tem possibilitado apelos a intervenções do judiciário, em assunto que aparentemente pouco tem a ver com as suas competências.
Bem, como se não bastassem aquelas exigências de consultas públicas, estão surgindo outras, através do Projeto de Lei n.º 2656 de 2.003, do Sr. Deputado Pedro Chaves (Goiás), que complica ainda mais as coisas e que já foi aprovado na Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados. Este dispositivo, se for convertido em lei, exigirá que o Poder Público seja obrigado a fornecer informações adequadas e inteligíveis à população local e outras partes interessadas, inclusive detalhando prazos, recursos disponibilizados e condições para o pagamento de indenizações, quando for o caso. Diz, ainda, que o processo de consulta pública, integrado por audiências e oficinas de trabalho, deve garantir a publicidade, o acesso à informação à população diretamente envolvida, a livre participação no debate da proposta, a análise de eventuais contrapropostas e o acompanhamento da motivação e da execução das decisões.
A “justificação” apresentada para estas novas exigências é absurda, pois afiança que as comunidades atingidas pela criação ou ampliação de unidades de conservação sofrem diversos prejuízos que, na realidade, apenas estão na sua imaginação, incluindo, segundo ele, a formação de favelas, o desemprego, a falta de educação, a exclusão social, êxodo rural, etc. Olvida, o Deputado, que as unidades de conservação de uso indireto ou de proteção integral são estabelecidas, precisamente, onde não tem, ou tem muito pouca gente e onde não existe, em geral, presença estatal. As unidades de conservação são as que trazem o desenvolvimento, a inclusão social, o emprego e os serviços públicos, que antes não existiam. Quer dizer que unidades de conservação como os parques nacionais, são verdadeiros motores do desenvolvimento. E, por isso, têm muitas pessoas, inclusive, no nível local, que são muito favoráveis à sua criação.
Onde existem parques nacionais ou estaduais o sistema educativo beneficia-se sempre, quer seja pela própria unidade que possui como um objetivo precípuo a educação ambiental, mas, também, a região pelo próprio sistema educacional impulsionado pela área protegida. O entorno destas unidades é sempre objeto de planejamento da mesma e de recursos, quer sejam do Poder Público, de entidades ambientalistas ou de doações para as comunidades vizinhas visando integrá-las ao desenvolvimento e não excluí-las. Que, além do mais, os municípios abrangidos por estas áreas protegidas são contemplados com o ICMS Ecológico, que significa, na grande maioria dos casos, maior entrada de recursos para os próprios. Os parques nacionais favorecem o emprego de pessoas do local como guardas, guias, ou através do turismo que é a atividade econômica que mais cresce no mundo e a que mais emprega.
Resumindo, o que o projeto de Lei n.º 2656 traz de novo é apenas mais exigências e dificuldades para se conseguir a aprovação de criação ou ampliação de unidades de conservação de uso indireto. Reza que o Poder Público é obrigado a expor, em consulta pública, dos recursos disponibilizados e condições para o pagamento de indenizações. Esta seria uma situação ideal, mas altamente utópica no nosso país, que infelizmente ainda carece de prioridade política para o estabelecimento e o manejo de suas áreas protegidas.
Significa, ainda, na prática e em muitos casos a completa destruição dos ambientes naturais da área, invasões, caça, retirada de madeiras, incêndios, ou sintetizando, a área, objeto da proposta, é saqueada, antes do advento do decreto de criação.
Como se já não bastassem as enormes dificuldades de se ter umas pequenas áreas protegidas de uso indireto, digo pequenas, pois não atingem sequer 2,8% , enquanto o recomendável seria, no mínimo, 12% da nossa extensão territorial e em geral mal implantadas e mal amadas, o poder legislativo vem tentando, através deste projeto de Lei, criar mais e mais dificuldades, que vêem se transformando em barreiras, na prática, intransponíveis. O poder legislativo deveria, isto sim, somar-se ao executivo objetivando proteger, conservar e garantir o sistema de áreas protegidas, que quando e se implantado favorecerá a todos. Se o Deputado Chaves quer ser útil às sociedades do entorno das unidades de conservação, deve brigar a cada ano, na Lei de Diretrizes Orçamentárias, para que o IBAMA disponha dos recursos para fazer o que deve, para ressarcir os proprietários e apoiar as comunidades locais.
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