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Cerrado, fechado, liqüidado

Apesar da crescente conscientização e de iniciativas louváveis, ainda há muito a fazer para evitar a extinção do patinho feio da natureza brasileira: o Cerrado.

6 de janeiro de 2005 · 20 anos atrás
  • Maria Tereza Jorge Pádua

    Engenheira agrônoma, membro do Conselho da Associação O Eco, membro do Conselho da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Nat...

Se procurarmos no dicionário o significado de “cerrado” encontraremos vários sinônimos. Os primeiros deles: fechado, vedado e até mesmo liqüidado. Parece que o bioma faz jus ao significado da palavra de tão pouco conhecido que é. Cerrado, para os ambientalistas e para a ciência, significa o segundo maior bioma em tamanho do país, ocupando 25% da nossa extensão territorial e abrigando uma enorme biodiversidade, além de ser berço de muitas nascentes que fluem para as nossas três principais bacias hidrográficas: Amazônica, do Prata e São Francisco. É, ainda, um dos 25 hotspots (“pontos quentes”) do mundo, pela excepcionalmente grande concentração de diversidade biológica que contém e pelas ameaças que enfrenta. Mas, também, é percebido como um local de árvores tortas, plano, bom para o cultivo de soja e outros grãos e bom para o gado ou para fazer carvão.

Assim, as três últimas décadas vêm assistindo à célere destruição do Cerrado, a tal ponto que, segundo dados do INPE, somente 1/3 da sua extensão territorial ainda se encontra com poucas alterações antrópicas. Poucas pessoas e instituições se preocupam com o Cerrado e a população, em geral, não conhece sua importância biótica, suas belezas cênicas, nem tampouco seu potencial para atividades de desenvolvimento sustentável, como o turismo e o ecoturismo, o manejo cientificamente conduzido da fauna silvestre, a pesca, o uso sustentável de suas plantas e frutos, seu artesanato, as suas comidas típicas, seu potencial de proteção do patrimônio arqueológico, dentre muitas opções que esta enorme região faculta, além das atividades tradicionais, como agricultura, pecuária, mineração, carvão vegetal, entre outras.

O Cerrado abriga cerca de 6.000 espécies de árvores, 510 de gramíneas, a maioria delas endêmica do bioma, 837 espécies de aves, 780 de peixes, 180 de répteis, 113 de anfíbios, 195 de mamíferos e, embora menos atrativas, há uma enorme variedade de espécies de invertebrados, onde, somente em três ordens, foram identificadas pela ciência 14.425 espécies, ou seja, 47% da fauna estimada para o país. Das espécies de abelhas nativas do Brasil, o Cerrado contém 50%. Assim, sua proteção vem despertando o interesse de cientistas e até de algumas instituições internacionais, pois apenas 2% do Cerrado encontram-se legalmente protegidos pelo Poder Público, sob a forma de Parques Nacionais ou Estaduais, Estações Ecológicas ou Reservas Biológicas, e por Reservas Particulares do Patrimônio Natural, as RPPNs.

Há regiões de Cerrado onde restam somente 7% da cobertura vegetal nativa. As grandes monoculturas, em especial as de soja, destroem toda a vegetação, não deixando, na maioria dos casos, nem as matas ciliares, nem topos de morros, nem a vegetação que cobre as grandes declividades e, assim, as nascentes vão minguando, os rios assoreando, as enchentes subindo mais e se perdem milhões de toneladas de solo por ano, além de comprometer os recursos hídricos. A devastação do Cerrado na bacia do Alto Paraguai é a principal causa da degradação do Pantanal e sua restauração custará milhões de dólares ao povo brasileiro no esforço do Governo Federal e dos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul para evitar ou diminuir o assoreamento da região pantaneira.

Das iniciativas de Organizações Não-Governamentais para proteger o bioma, destaca-se a da Funatura. Embora tenha sido a segunda fundação para conservação da natureza a se estabelecer no Brasil, ela foi a primeira a trabalhar com o Cerrado e dedica-se, até hoje, quase que exclusivamente à proteção do Cerrado e de suas ricas flora e fauna. É uma Organização Não-Governamental sem fins lucrativos, declarada de utilidade pública e na sua curta existência já executou mais de cem projetos. Sendo que os dois que nasceram com ela, o Grande Sertão Veredas e o programa de santuários de vida silvestre, ainda são sua principal missão.

O Parque Nacional do Grande Sertão Veredas, criado em 1989 na região dos Campos Gerais, ocupa 13 milhões de hectares de Cerrado. Antes de seu estabelecimento, não havia nenhuma unidade de conservação nos Gerais. Era necessário escolher uma ou mais áreas na região e, com recursos da Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA) e do Fundo Mundial para a Vida Selvagem (WWF), a Funatura, após vários estudos, propôs ao então Presidente Sarney a criação do Parque Nacional do Grande Sertão Veredas na região imortalizada por Guimarães Rosa em seu livro homônimo.

Felizmente, a Funatura continua presente na área devido a um convênio de co-gestão com o IBAMA e, graças ao único projeto no Brasil de conversão da dívida externa para meio ambiente, possui recursos financeiros e humanos para manter aquele Parque Nacional até o ano 2013. Parcos, na verdade, mas de longo prazo, o que é muito importante. A conversão da dívida externa foi feita com a The Nature Conservancy (TNC), que até hoje aporta recursos para a manutenção do Parque, através da Funatura. Muitas outras instituições, como a Pathfinder, ajudaram a Funatura com projetos de saúde para a população que ainda residia nos limites do Parque ou no seu entorno. A Fundação O Boticário de Proteção à Natureza liberou recursos com a TNC e o IBAMA para a execução do seu Plano de Manejo.

O Governo brasileiro, na figura do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério da Reforma Agrária, está trabalhando para a regularização fundiária do Parque Nacional Grande Sertão Veredas. Este Parque é um dos maiores do Cerrado e, junto com outros, preserva uma das áreas mais prístinas do Cerrado, bioma que possui, como já mencionado, pouquíssimas áreas protegidas.

A Funatura trabalha, também, em outra grande linha de ação no Cerrado, que é o estabelecimento de Santuários de Vida Silvestre, em geral com proprietários particulares, nas chamadas RPPNs, ajudando-os a manejar e implementar estas áreas protegidas. A Funatura trabalha ou trabalhou com 14 Santuários no Cerrado, sendo o primeiro deles o da Fazenda Vagafogo, em Pirenópolis, GO, que já é bem conhecido nacionalmente. A Funatura é proprietária de um Santuário, o Flor das Águas, também em Pirenópolis, contíguo ao Vagafogo, que é muito pequeno e sozinho não teria grande valor para a proteção da flora e fauna silvestres. Sendo assim, a Funatura adquiriu a fazenda vizinha e estabeleceu uma RPPN. O Cerrado, felizmente, possui muitas RPPNs de proprietários particulares que, embora não sejam grandes em extensão territorial, somam-se com as unidades de conservação do Poder Público no esforço de proteger a diversidade do bioma.

Muitas outras instituições privadas estão trabalhando no Cerrado. Dentre elas destacam-se a Fundação Biodiversitas, que também está estabelecendo áreas protegidas, a Conservation International, o ISPN, o ISA, o WWF e a Rede Cerrado. Embora as iniciativas privadas sejam importantes, deve se reconhecer que os Estados estão cada dia mais conscientes da necessidade de conservação do Cerrado. O Estado do Mato Grosso do Sul, por exemplo, que não tinha unidades de conservação em seu território até 1998, criou, nos últimos anos, vários Parques Estaduais nas regiões do Cerrado e do Pantanal.

O Governo Federal promete apresentar um projeto ao GEF (Global Environment Facility, ou Fundo Global para o Meio Ambiente), com a intenção de obter recursos mais expressivos a serem aplicados no Cerrado. O próprio GEF, através do PNUD, tem um programa de financiamento de pequenos projetos (PPP) que apóia iniciativas referentes a unidades de conservação e desenvolvimento sustentável. O Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA) é a fonte nacional mais importante de recursos para unidades de conservação públicas, sejam estaduais ou municipais, e privadas. O FNMA atende projetos gerados espontaneamente ou através de editais. Recentemente, foi publicado um edital para induzir demanda de projetos especialmente para unidades de conservação.

Mas, na verdade, em campo, não obstante todas estas louváveis iniciativas, o que se constata é que os Parques Nacionais estão praticamente abandonados, sem pessoal, sem fiscalização, sem recursos financeiros, sem visitantes, embora, somados, representem menos do que 2% da extensão territorial do Cerrado. Também é comum ver Parques Estaduais nessa mesma situação de descaso. São conhecidas histórias como a do Parque Estadual da Serra dos Pireneus (Goiás), que não foi implantado mesmo tendo os recursos financeiros, provenientes de fundos de compensação ambiental, disponíveis por anos sem que fossem utilizados para seus devidos fins.

É evidente que o Cerrado pode e deve ser desenvolvido. Ninguém, em sã consciência, pode se opor ao desenvolvimento, muito menos quando ele é sustentável. A agricultura intensiva tem seu lugar, bem como a pecuária. Trata-se apenas de, com um pouco de visão, deixar também lugar para a natureza, mantendo os recursos de biodiversidade, protegendo os solos e a qualidade das águas, impulsionando o turismo, o esporte de aventura e o ecoturismo. Os cientistas reclamam apenas 10% do Cerrado para serem preservados. A preservação não implica em “congelar” o território, como alguns pretendem que a opinião pública acredite. Ao contrário, as unidades de conservação podem ser, como nos Estados Unidos e em outros países desenvolvidos ou mesmo em desenvolvimento, verdadeiros motores do progresso regional. Todo fazendeiro deveria se sentir privilegiado de ter um parque ou uma reserva nas proximidades de suas terras.

Projetos de lei ameaçadores, como as reformas propostas ao Código Florestal; os incêndios anuais, até em áreas que não vão ser usadas para nada; a pecuária de baixa qualidade e produtividade; o preparo da terra na época das secas, provocando redemoinhos que carregam solos e nutrientes; e, em resumo, os cada vez mais visíveis sinais de desertificação; são todos indicadores de um problema que cresce e que se complica ano a ano. O tempo para se evitar o desastre final, a extinção dos ecossistemas e das espécies do Cerrado, vai ficando muito curto.

O cenário precisa mudar e rapidamente, para que este patinho feio e mal conhecido possa se transformar no Cerrado que esconde belezas só visíveis para quem procura desvendá-las. Enfim, que o outro significado da palavra cerrado, ou seja, liqüidado, não se torne realidade com relação a este enorme bioma, praticamente todo brasileiro.

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