Uma das belas e pouco conhecidas áreas protegidas do Cerrado é o Parque Estadual da Serra de Caldas Novas, no município do mesmo nome, perto de Rio Quente, pólo de atração turística nacional e até internacional. Por isso, visitando-o novamente poucos anos depois da primeira visita, fiquei triste, muito triste, ao constatar que esta unidade de conservação não escapou ao destino da maioria delas.
Trabalhei como revisora do plano de manejo desse Parque há alguns anos e por gostar muito dele queria mostrar para meu marido a beleza do local. Trata-se de um planalto bem preservado, uma mancha verde em um mar de urbanizações e de atividades agropecuárias. Maio e junho são os meses mais bonitos do Cerrado, pois os elegantes pepalandos ou sempre-vivas, dentre muitas outras plantas, estão floridos. A estação seca ainda não mostra o amarelo da plenitude de sua secura; há verde, os rios e cachoeiras estão límpidos.
Então programamos nossa viagem para visitar o Parque, que abre, conforme anunciam anúncios quase imperceptíveis, de quarta-feira a domingo das 8:00 às 12:00 horas e das 14:00 às 18:00 horas. Tendo descoberto esse fato, através de amigos locais, que também nos guiaram até a portaria do Parque, que apenas está sinalizado no último trecho de sinuoso caminho, chegamos pontualmente na quarta às 8:00 horas. Mas, claro, não havia ninguém por ali e o portão de entrada estava fechado. Ansiosos para ver o Parque esperamos, não demais, devo dizer, já que três quartos de hora depois, a gerente do Parque chegou de motocicleta, com outro funcionário.
Apresentei-me e disse que queríamos visitar o Parque, principalmente a sua parte alta, que é a mais interessante e espetacular, com seu cerrado pouco alterado e seus grandes paredões, cânions e vistas panorâmicas da cidade e do lago de Corumbá. Qual não foi minha surpresa quando a moçoila disse que a parte alta estava fechada à visitação pública. Retruquei que devia haver algum engano, pois no Plano de Manejo do Parque Estadual de Caldas Novas, que eu havia revisado gratuita mas cuidadosamente para o Governo do Estado de Goiás, abria-se esta área para o turismo.
Aí começaram as explicações, esdrúxulas umas, outras bem compreensíveis. Das que dá para entender estão: existem só três funcionários; nenhum deles é profissional da área, apenas dispõem de duas motocicletas para o serviço, não têm dinheiro para combustível e a estrada está ruim. Quanto a estes argumentos bastante razoáveis, fiz constar que eu estava com um carro com tração nas quatro rodas e que não necessitava de guia, pois havia trabalhado lá. Bem, mas a cavalgadura disse: sem guarda não pode. E onde estava o guarda? Não havia chegado e ela não tinha notícia de que horas ele chegaria. Recusou-se a acompanhar-nos porque alguém tinha de ficar na portaria para cobrar os quinze reais que os minguados visitantes pagam.
Na verdade, em toda manhã não conseguimos ver mais que seis turistas, num grupo só. A moça partia da premissa que turistas como meu marido e eu iríamos apanhar plantas ou pegar algum animal (nas palavras dela). Não adiantou colocar que somos especialistas no tema e membros da Comissão Mundial de Áreas Protegidas e que assim sendo era improvável que cometêssemos alguma irregularidade.
O que tem de absurdamente esdrúxulo é o fato de que um Parque, com posse da terra, com plano de manejo aprovado e com uma enorme e cara infra-estrutura – que inclui acessos asfaltados, estacionamento de luxo para uns 50 veículos, museu, auditório para mais de 60 pessoas, sede administrativa, postos de guarda, banheiros, bebedouros, sinalização e trilhas interpretativas – não queira ou não possa receber visitantes.
O Parque Estadual da Serra de Caldas Novas, com seus, creio, 10 mil hectares é o que existe de mais espetacular naquela região e por estar totalmente implantado poderia trazer dinheiro para o próprio parque e, em especial, para o município, aumentando os produtos turísticos regionais e prorrogando as estadias. Muitos turistas ficariam mais um dia lá, se soubessem e pudessem visitar o Parque e não somente duas pequenas trilhas na sua parte baixa.
Aí a gente se pergunta: por que se gastaram milhões de reais para implementar a área, utilizando dinheiro do povo, ou mais precisamente, da compensação ambiental das hidroelétricas de Serra da Mesa e de Corumbá, se não se pode cumprir um dos objetivos principais de manejo para os quais foi criado o Parque Estadual? Ou seja, receber visitantes e turistas? Lembro-me que a primeira estimativa de número de visitantes efetuada pelos especialistas da Universidade de São Paulo (USP) era de 130 mil turistas por ano. Eu pedi que fosse reconsiderado para se começar com 40 mil. Bem, agora o Parque está fechado na sua parte alta, mas não para os funcionários das torres de transmissão que lá existem e que podem usufruir de boa estrada, e nem tampouco, felizmente, para alguns pesquisadores.
E depois ainda se quer que nossa gente e autoridades gostem de áreas protegidas de uso indireto dos recursos naturais. Como, se mesmo as prontas para receberem visitantes não trazem nenhum benefício econômico, social ou espiritual palpável?
Não trazem benefício por displicência, por inação, pelo não comprometimento com o bem público, isso sim. Não tem funcionários para acompanhar os turistas? Terceiriza-se este serviço, através de licitação. Qual o problema? O pior que se pode fazer é deixá-lo nas mãos de três funcionários pretensamente zelosos, mas que sequer sabem bem o que vem a ser uma área protegida e não podem ou não querem ter a iniciativa de mudar o status quo. Administram os 10 mil hectares como se fossem sua propriedade e não um bem comum do povo brasileiro. O Parque dispunha até pouco tempo atrás, segundo um dos dois funcionários presentes, bem mais educado que a sua chefa, de quatro veículos, dois dos quais eram precisamente para levar turistas a visitar a parte alta. Dois deles foram sucatados e, pior ainda, a Agência Ambiental do Estado decidiu utilizá-los em Goiânia. O magnífico auditório, cujo equipamento audiovisual expirou, apenas atende um número considerável de cupins e formigas. Como pode pretender essa Agência que um parque desse tamanho e com tão elevado potencial turístico possa operar com apenas três modestos funcionários?
Assim é que se faz conservação da natureza no país e no estado de Goiás. Estes dias mesmo se gastou seguramente muito mais do que o Parque precisa com um tal de festival internacional de “documentários ecológicos” na cidade de Goiás Velho. Para quê conscientizar a população apenas na teoria? Ainda mais se os recursos foram dados em parte pelo governo do Estado, os documentários deveriam ser todos sobre os Parques Estaduais do Estado de Goiás, que estão abandonados à própria sorte. E, claro, ao fogo, que a cada ano prospera melhor nas unidades de conservação, que sequer atingem 1% da extensão territorial do Estado.
Se finalmente conseguimos visitar o Parque? Sim, após uma dezena de telefonemas e obter a autorização do órgão competente. Então, constatamos que os principais acessos aos paredões estão em boa condição de trânsito. Me revolta o fato de que consegui entrar porque sabia a quem solicitar a autorização. Mas todo e qualquer visitante, brasileiro ou não, deveria ser recebido no Parque. Quanto mais visitas guiadas e normatizadas, é evidente, existirá mais proteção e fiscalização para o próprio Parque.
Essa é a realidade de quase todos os parques nacionais e outras áreas protegidas do Brasil. Não falta dinheiro para fazer obras, nem para comprar equipamento, mas não se gasta nada em manutenção e, muito pior, não se usam as mil e uma opções disponíveis para operar essas áreas com a sociedade civil organizada ou com a empresa privada. É como comprar uma Ferrari (na verdade, o Parque teve um custo muito maior que vinte Ferraris) e não ter dinheiro para pagar seu combustível. É puro desperdício!
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