Acontecem, muitas vezes, fatos jocosos na implementação de unidades de conservação e o que vou relatar aqui é um deles, antigo, mas, assim mesmo, demonstra o empenho e a criatividade de funcionários públicos comprometidos com a função de proteger a natureza. A região onde ocorreu o fato está no estado do Pará e se trata da reserva biológica do Rio Trombetas.
Em 1970, a proteção dos tabuleiros de desova de tartarugas de rio passou a ser uma atribuição do então Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), órgão que também era o responsável pela gestão das unidades de conservação do Brasil. Em 1975, o pioneiro nos estudos de ocorrência desses animais na Amazônia, José Alfinito, chamou a atenção para a necessidade de se proteger os tabuleiros de desova da tartaruga de rio Podocnemis expansa e principalmente daqueles que foram posteriormente englobados pela reserva biológica do Rio Trombetas; pois, na ocasião, se tratava dos tabuleiros onde havia a maior desova de tartarugas, dentre todos os conhecidos.
A criação da reserva biológica do Rio Trombetas vinha sendo indicada pelo projeto RADAM Brasil, que já propunha o estabelecimento de várias áreas protegidas para a Amazônia, e fora aprovada pelo Polamazônia em 1975. Assim, a área passou a funcionar como uma reserva biológica de fato, embora não o fosse de direito ainda. Não faltavam recursos humanos ou financeiros para o manejo da área que se pretendia que fosse também de direito uma unidade de conservação. O IBDF insistia em sua criação legal, mas a Casa Civil -sempre a Casa Civil- não aprovava o seu decreto de criação. Os funcionários responsáveis do IBDF não entendiam bem o porquê dessa atitude. Afinal dos seus 385.000 hectares, mais de 90% eram de terras devolutas ou griladas que, excetuando a existência de quilombos –que na época não eram reconhecidos- não havia um problema fundiário sério demais e, como já foi dito, havia recursos e a infra-estrutura mínima necessária, bem como equipamentos. O processo ia e vinha do IBDF para a Casa Civil. Muitos ambientalistas começaram a nos ajudar com pressão política, entre eles os mais importantes, o Almirante Ibsen de Gusmão Câmara e, também, o Almirante José Luiz Belart, quem conseguiu uma audiência nossa, os funcionários da área do IBDF, com o então Presidente da República, João Figueiredo.
Hoje resulta evidente que o que se temia, naqueles tempos, era comprometer o futuro da mineração de bauxita na região e, também, afetar uma provável hidroelétrica. O fato é que a Casa Civil levantou toda classe de obstáculos absurdos, incluindo ter o IBDF de responder à pergunta: “qual é a relação da proposta reserva com Fordlândia?”. Para isso tivemos de fazer uma resposta curta e grossa de próprio punho: “Fordlândia fica na margem direita do rio Tapajós que é afluente da margem direita do rio Amazonas; e a área da reserva biológica do Rio Trombetas fica na margem esquerda do rio Trombetas, afluente da margem esquerda do rio Amazonas, a não menos de 12 horas de barco de Fordlândia”.
Bem, enfim, não se achando mais pretextos, a reserva biológica do Rio Trombetas, para nossa alegria, foi oficialmente criada pelo decreto nº. 84.018 de 21 de setembro de 1979, com 385.000 hectares no dia em que, pela primeira vez na história do IBDF, o Presidente da República foi visitá-lo. Na mesma ocasião foi lançado o primeiro Plano do Sistema de Unidades de Conservação do Brasil, onde estava como uma das prioridades para o estabelecimento de áreas protegidas na Amazônia, a reserva biológica do Rio Trombetas. Há que se lembrar que até a apresentação desse plano o país possuía apenas uma unidade de conservação de uso indireto na Amazônia: O Parque Nacional da Amazônia, estabelecido em 1974.
Dentre os problemas para melhorar a gestão daquela importante reserva, estava prioritariamente a regularização fundiária, que obrigou o IBDF a comprar a preços muito baixos, pois só se pagava o valor da terra nua, conforme tabela do INCRA, cerca de 90.000 hectares que estavam em mãos de particulares, na verdade, a maioria de grileiros habilidosos que conseguiram ficar com as terras . Mas esta coluna quer destacar um fato pitoresco, que ocorreu na época. Afinal comprar terras é um assunto muito maçante.
Era diretor da reserva biológica do Rio Trombetas, mesmo antes de seu estabelecimento legal, o engenheiro agrônomo Alberto Guerreiro e era advogada do Departamento responsável pelas unidades de conservação administradas pelo IBDF, Sônia Maria Wiedman. Sônia e Guerreiro conseguiram regularizar, com todos os cuidados legais, todas as áreas em mãos de particulares. Assim, a desocupação das terras da reserva era prioritária, mas eis que surge um problema de somenos importância, mas, que trazia visitantes indesejáveis ao bom manejo de uma área protegida: havia dois prostíbulos ali instalados que atendiam principalmente aos funcionários da mineradora de bauxita- Mineração Rio do Norte-localizada no município de Oriximiná, na proximidade. A situação exigia sensibilidade, sutileza e, também, firmeza, para ser solucionada, pois os únicos visitantes que eram bem vindos eram as tartarugas para sua postura.
Lá foram Sônia e Guerreiro para as negociações, que demandaram várias reuniões e muita paciência, bem como a ajuda da própria mineradora. Eu, como a chefe do momento, só queria ter a notícia da desocupação, o mais rápido possível, e ela veio com a seguinte informação: “Tudo correu muito bem; os prostíbulos foram removidos para a outra margem do rio, fora da reserva, sem ruídos”. Pouco depois, novas notícias do lugar deram uma real dimensão da habilidade negociadora e diplomática dos dois funcionários. Com efeito, as duas novas casas de prostituição abertas fora da Reserva, na outra margem do rio, os homenagearam batizando os novos locais de “Vila Sônia” e “Repouso do Guerreiro”. Eu e toda a equipe do então Departamento de Parques Nacionais, só fazíamos rir, rir à beça e pensávamos como quão gostoso era, às vezes, de se trabalhar para a natureza e seus atores.
A reserva enfrenta atualmente muitos problemas sérios como a presença de posseiros e de quilombos e, obviamente, caça e pesca predatória. Mas, o principal problema atual é a falta de recursos, em especial de pessoal. Segundo dados do próprio IBAMA lá existem apenas 6 funcionários do órgão e 12 cedidos por convênios. É evidentemente muito pouco para se resguardar e gerenciar 385.000 hectares e milhares ou milhões de tartaruguinhas. No entanto se esses funcionários forem tão comprometidos com a causa e engenhosos como foram Guerreiro e Sônia, quiçá se consiga ter novas iniciativas criativas para salvar tão precioso patrimônio.
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