Colunas

Mágica para salvar o mundo

Sustentável é adjetivo que virou vara de condão. Em seu nome, justifica-se até a exploração insustentável de recursos naturais

20 de julho de 2004 · 20 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Sustentabilidade não é um truque de mágica. Foto: Pixabay.

Nestes tempos de glória de Harry Potter e Senhor dos Anéis, a mágica parece ter-se convertido na solução de todos os problemas da humanidade. O abracadabra dos bruxos e bruxas tem até uma versão ambiental. Só a pronúncia e diferente. Diz-se sustentável. Mas os efeitos são os mesmos. Como abracadabra, é magia que não precisa de explicação. Associada à qualquer outra palavra que descreva alguma atividade humana, transforma a ação em coisa desejável, sadia, sensata e duradoura ad eternum. Nada como um “sustentável” para fazer possível o impossível e concretizar qualquer utopia. Assim, ganhamos o crescimento sustentável, a economia sustentável, a política sustentável, os negócios sustentáveis e, claro, o mais popular de todos, o desenvolvimento sustentável. Não se fala em guerra sustentável, mas é provável que Bush já tenha pelo menos imaginado seu conceito.

No mundo real, não há mágica. O conceito de desenvolvimento sustentável é bom, mas não basta invocá-lo para que se resolvam os problemas das relações entre a humanidade e a natureza.

Desde que foi popularizado pela Comissão Brüntland, no seu famoso relatório “Nosso Futuro Comum” (1987), o termo “sustentável” se converteu numa panacéia para todos os males que ameaçam a humanidade, em decorrência de seus próprios abusos sobre a natureza. Os mais diversos atores sociais e, claro, políticos de todo naipe, têm usado e abusado da palavra para fazer acreditar que os recursos naturais podem ser explorados sem piedade, nem consideração. Basta apenas que ela aconteça de forma “sustentável”. Sem a magia desta palavra, exploração é apenas o que sempre foi: exploração.

Outro dia a TV informou que, agora, na Amazônia, já não se insiste apenas em “proteger a natureza” (o apresentador não disse quando a natureza foi protegida nessa região). Vai-se além. O truque, óbvio, é utilizar seus recursos de maneira sustentada, viabilizando a preservação do ambiente e o desenvolvimento econômico. Deu-se dois exemplos da novidade: a reciclagem da fibra de coqueiro e a fabricação de chocolate com castanha do Pará. O locutor se esqueceu de explicar que para ter coqueiro na Amazônia, que não é planta nativa da região, é preciso, derrubar a floresta. Na partida, portanto, a opção pelos coqueiros exige a eliminação da biodiversidade original e a queima de seus resíduos, com a consequente contribuição para o aquecimento global.

“Reciclar não implica em sustentabilidade. É apenas um elemento dela.”

Uma vez fincados no solo amazônico, é possível que os coqueiros necessitem de ajuda para crescer, como pesticidas para combater suas pragas e fertilizantes para adubar a planta e corrigir eventuais deficiências do solo. Dito em outras palavras, sem desmerecer as virtudes e vantagens, inclusive ambientais, de reciclar fibra de coqueiro para fazer poltronas de automóveis e vasos para plantas ornamentais, o processo está longe de ser sustentável e menos ainda de ser inócuo para a natureza. Reciclar não implica em sustentabilidade. É apenas um elemento dela. É comum que o conceito de sustentabilidade seja confundido com a capacidade de se reproduzir. Os políticos, e muitos outros, acreditam que o mero fato de usar um produto de origem animal ou vegetal equivale a sustentável.

O outro exemplo dado pela TV, o da produção de chocolate com castanha do Pará, apresentado como modelo sustentável para grande parte dos males sociais e ambientais da Amazônia, tampouco é muito claro. A coleta de castanhas pelos extrativistas, como foi demonstrado, agora com cifras contundentes, por uma equipe de cientistas dirigidos pelo brasileiro Carlos Peres, tem sido o principal fator de limitação do desenvolvimento da população de castanheiras na Amazônia do Brasil, Peru e Bolívia, excluindo, claro, o desmatamento. A coleta de castanhas pelo homem compete diretamente com a capacidade da espécie de se reproduzir e dispersar. Tem mais, o cacau ou o cupuaçu também são, na atualidade, espécies cultivadas, como no caso do coqueiro, e têm os mesmos impactos ambientais já mencionados.

Os dois exemplos anteriores não pretendem insinuar que não se deva reciclar a fibra de coco, nem que não se produza, na Amazônia, chocolates com cacau ou cupuaçu e castanha. Muito pelo contrário. Essas são excelentes iniciativas que devem ser mantidas e estimuladas. O que se pretende é demonstrar que não são necessariamente sustentáveis. Que também têm impactos negativos, que podem ser severos, em especial quando implicam em acelerar o desmatamento da Amazônia para ampliar as plantações. Essas iniciativas, pelo contrário, seriam ótimas se ocupassem áreas previamente desmatadas e abandonadas pela pecuária extensiva.

“O conceito de desenvolvimento sustentável é bom, mas não basta invocá-lo para que se resolvam os problemas das relações entre a humanidade e a natureza”.

No mundo real, não há mágica. O conceito de desenvolvimento sustentável é bom, mas não basta invocá-lo para que se resolvam os problemas das relações entre a humanidade e a natureza. O fato é que os processos que permitem fazer desenvolvimento sustentável são muito complexos, e só são viáveis dentro de uma filosofia muito diferente da que hoje domina o mundo globalizado. Desde que foi cunhado, nos anos 1980s, o termo tem dado poucos frutos. Basta lembrar que o desmatamento e a perda da biodiversidade continuam em ritmo acelerado, a água está virando coisa rara e cara, os recursos pesqueiros sumindo de rios e oceanos e o planeta vivendo períodos cada vez mais quentes. A palavra “sustentável” não é mágica e deve ser utilizada com muita ponderação. Na maioria das vezes, ela tem tanto impacto na realidade quanto invocação abracadabra

*Esse texto foi editado em 31/05/2024 para repaginação

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

Leia também

Colunas
21 de setembro de 2013

África, uma aventura na rota da grande migração

Viajar pelas rotas da migração dos gnus, em áreas protegidas do Quênia e Tanzânia é ver ao vivo e de perto a força da natureza.

Colunas
13 de agosto de 2004

Rico entre pobres

O Parque do Iguaçu, última mancha verde na tríplice fronteira, enfrenta nova ameaça. Projeto de lei quer entregar aos municípios na sua borda parte do dinheiro que Iguaçu arrecada.

Colunas
19 de agosto de 2004

Do Proalcool ao Biodiesel: a história se repete

Produzir óleo diesel com plantas até que é uma boa idéia. Ruins são os antecedentes do Proalcool.

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.