Nestes tempos de glória de Harry Potter e Senhor dos Anéis, a mágica parece ter-se convertido na solução de todos os problemas da humanidade. O abracadabra dos bruxos e bruxas tem até uma versão ambiental. Só a pronúncia e diferente. Diz-se sustentável. Mas os efeitos são os mesmos. Como abracadabra, é magia que não precisa de explicação. Associada à qualquer outra palavra que descreva alguma atividade humana, transforma a ação em coisa desejável, sadia, sensata e duradoura ad eternum. Nada como um “sustentável” para fazer possível o impossível e concretizar qualquer utopia. Assim, ganhamos o crescimento sustentável, a economia sustentável, a política sustentável, os negócios sustentáveis e, claro, o mais popular de todos, o desenvolvimento sustentável. Não se fala em guerra sustentável, mas é provável que Bush já tenha pelo menos imaginado seu conceito.
No mundo real, não há mágica. O conceito de desenvolvimento sustentável é bom, mas não basta invocá-lo para que se resolvam os problemas das relações entre a humanidade e a natureza.
Desde que foi popularizado pela Comissão Brüntland, no seu famoso relatório “Nosso Futuro Comum” (1987), o termo “sustentável” se converteu numa panacéia para todos os males que ameaçam a humanidade, em decorrência de seus próprios abusos sobre a natureza. Os mais diversos atores sociais e, claro, políticos de todo naipe, têm usado e abusado da palavra para fazer acreditar que os recursos naturais podem ser explorados sem piedade, nem consideração. Basta apenas que ela aconteça de forma “sustentável”. Sem a magia desta palavra, exploração é apenas o que sempre foi: exploração.
Outro dia a TV informou que, agora, na Amazônia, já não se insiste apenas em “proteger a natureza” (o apresentador não disse quando a natureza foi protegida nessa região). Vai-se além. O truque, óbvio, é utilizar seus recursos de maneira sustentada, viabilizando a preservação do ambiente e o desenvolvimento econômico. Deu-se dois exemplos da novidade: a reciclagem da fibra de coqueiro e a fabricação de chocolate com castanha do Pará. O locutor se esqueceu de explicar que para ter coqueiro na Amazônia, que não é planta nativa da região, é preciso, derrubar a floresta. Na partida, portanto, a opção pelos coqueiros exige a eliminação da biodiversidade original e a queima de seus resíduos, com a consequente contribuição para o aquecimento global.
Uma vez fincados no solo amazônico, é possível que os coqueiros necessitem de ajuda para crescer, como pesticidas para combater suas pragas e fertilizantes para adubar a planta e corrigir eventuais deficiências do solo. Dito em outras palavras, sem desmerecer as virtudes e vantagens, inclusive ambientais, de reciclar fibra de coqueiro para fazer poltronas de automóveis e vasos para plantas ornamentais, o processo está longe de ser sustentável e menos ainda de ser inócuo para a natureza. Reciclar não implica em sustentabilidade. É apenas um elemento dela. É comum que o conceito de sustentabilidade seja confundido com a capacidade de se reproduzir. Os políticos, e muitos outros, acreditam que o mero fato de usar um produto de origem animal ou vegetal equivale a sustentável.
O outro exemplo dado pela TV, o da produção de chocolate com castanha do Pará, apresentado como modelo sustentável para grande parte dos males sociais e ambientais da Amazônia, tampouco é muito claro. A coleta de castanhas pelos extrativistas, como foi demonstrado, agora com cifras contundentes, por uma equipe de cientistas dirigidos pelo brasileiro Carlos Peres, tem sido o principal fator de limitação do desenvolvimento da população de castanheiras na Amazônia do Brasil, Peru e Bolívia, excluindo, claro, o desmatamento. A coleta de castanhas pelo homem compete diretamente com a capacidade da espécie de se reproduzir e dispersar. Tem mais, o cacau ou o cupuaçu também são, na atualidade, espécies cultivadas, como no caso do coqueiro, e têm os mesmos impactos ambientais já mencionados.
Os dois exemplos anteriores não pretendem insinuar que não se deva reciclar a fibra de coco, nem que não se produza, na Amazônia, chocolates com cacau ou cupuaçu e castanha. Muito pelo contrário. Essas são excelentes iniciativas que devem ser mantidas e estimuladas. O que se pretende é demonstrar que não são necessariamente sustentáveis. Que também têm impactos negativos, que podem ser severos, em especial quando implicam em acelerar o desmatamento da Amazônia para ampliar as plantações. Essas iniciativas, pelo contrário, seriam ótimas se ocupassem áreas previamente desmatadas e abandonadas pela pecuária extensiva.
No mundo real, não há mágica. O conceito de desenvolvimento sustentável é bom, mas não basta invocá-lo para que se resolvam os problemas das relações entre a humanidade e a natureza. O fato é que os processos que permitem fazer desenvolvimento sustentável são muito complexos, e só são viáveis dentro de uma filosofia muito diferente da que hoje domina o mundo globalizado. Desde que foi cunhado, nos anos 1980s, o termo tem dado poucos frutos. Basta lembrar que o desmatamento e a perda da biodiversidade continuam em ritmo acelerado, a água está virando coisa rara e cara, os recursos pesqueiros sumindo de rios e oceanos e o planeta vivendo períodos cada vez mais quentes. A palavra “sustentável” não é mágica e deve ser utilizada com muita ponderação. Na maioria das vezes, ela tem tanto impacto na realidade quanto invocação abracadabra
*Esse texto foi editado em 31/05/2024 para repaginação
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