O Brasil está despertando para o potencial do turismo. É um despertar lento, com muitos erros, excesso de ilusões e com pouca consideração aos problemas de fundo, especialmente os ambientais e sociais. Por isso, ainda que o turismo interno seja considerável (29 milhões de desembarques domésticos no ano 2000), o turismo externo (5.3 milhões de desembarques) está em um nível muito abaixo do potencial do país. De 1990 a 1999, o Brasil passou da 53° para a 30° posição no ranking mundial de destinos turísticos. Os lugares mais procurados são o Nordeste, o Centro Sul e o Sul, logo depois o Pantanal. Recentemente cresceu também a procura pela Amazônia e agora pelo Centro Oeste. O Cerrado começou a despertar o interesse do setor turístico, a maior atividade econômica do mundo atual.
A vegetação do Cerrado pode não ser tão alta e frondosa como a da Amazônia ou da Mata Atlântica, mas, para quem deseja olhá-la, é de uma beleza especial, cheia de cores cambiantes em flores e folhas, com árvores estranhamente retorcidas.
O importante é perguntar até que ponto transformar o Centro-Oeste em um destino turístico é algo realista e como isso seria feito de forma sustentável. A resposta à primeira pergunta é que o principal, praticamente o único atrativo turístico do Cerrado, é a sua natureza. No Nordeste e nas regiões mais desenvolvidas do Brasil existem, obviamente, enormes atrativos naturais, como as praias e a Mata Atlântica. Às vezes há atrações únicas, como a Foz do Iguaçu e Aparados da Serra. Mas nessas regiões existe também uma enorme bagagem histórica e cultural que se expressa em monumentos, museus, tradições, culinária típica e muito mais. Já a fauna e a pesca esportiva abriram o Pantanal para o turismo e, de outra parte, a Amazônia sempre foi terra de mistério e aventura na mente da população brasileira e mundial. Definitivamente, esse não é o caso do Cerrado do Centro-Oeste que, para a maior parte das pessoas, não passa de uma região plana, tediosa e que, culturalmente, é apenas uma subsidiaria dos costumes de outras regiões. Na verdade, não é bem assim.
Obviamente seria ilusão querer comparar o potencial turístico do Cerrado com o dos outros biomas ou regiões do Brasil. Não resta dúvida que seu potencial é menor e isso deve ser medido em termos de relação custo/ benefício na hora de fazer investimentos para promover o turismo. Mas o Cerrado tem muitas vantagens derivadas do turismo interno e cativo do Distrito Federal e de cidades importantes como Goiânia e Cuiabá. Todas elas isoladas do mar por um milhar de quilômetros ou mais. Ademais, o Cerrado abrange estados muito ricos, como Goiás e Mato Grosso, e parte significativa da sua população tem um alto poder aquisitivo. Esses estados têm uma boa infra-estrutura viária e aeroportuária e um desenvolvimento hoteleiro respeitável. Só isso compensa grande parte do que a priori parecem desvantagens do Cerrado frente às outras regiões. Porém, a natureza do Cerrado é muito mais do que a maioria acredita.
As paisagens do Cerrado, especialmente suas chapadas e chapadões, são um espetáculo único; igual às suas cascatas, cachoeiras e corredeiras; seus “buracos de araras”; suas veredas de buritis; seus rios de água cristalina e seus grandes rios piscosos e navegáveis, como o Araguaia ou o Tocantins. A vegetação do Cerrado pode não ser tão alta e frondosa como a da Amazônia ou da Mata Atlântica, mas, para quem deseja olhá-la, é de uma beleza especial, cheia de cores cambiantes em flores e folhas, com árvores estranhamente retorcidas. A fauna é, evidentemente, menos espetacular do que a do Pantanal, mas, se for preservada, seria bem mais fácil de observar do que a da Amazônia. De qualquer modo, suas 850 espécies de aves são atrações para qualquer birdwatcher do mundo.
O Cerrado é tampouco um deserto cultural. Primeiramente, existem numerosas evidências humanas de 11.000 anos de antiguidade. O Cerrado de Minas Gerais é de rico patrimônio cultural e, no Centro-Oeste, cidades como Goiás Velho e Pirenópolis, entre outras, conservam monumentos históricos valiosos e dispõem de tradições que, sem pretender ser originais, são de grande interesse. Até a culinária tem peculiaridades, como o uso do pequi e do palmito amargo. Quem diz que não se justifica visitar o Cerrado está muito enganado e não sabe o que perde. Para o turista estrangeiro o Cerrado dificilmente será o destino principal, mas seria uma escala bem-vinda durante uma viagem pelo Brasil.
Lamentavelmente, o potencial turístico do Cerrado está sendo dilapidado. E, se não forem tomadas medidas drásticas urgentemente, o dito potencial desaparecerá ou será reduzido a uma expressão mínima. O grande vilão é expansão agropecuária do Cerrado, o atual motor da sua economia e o principal inimigo da natureza nessa região; como em outras. De 70% a 80% do Cerrado já foram irremediavelmente alterados por atividades humanas e nada do resto está intacto. Uma conseqüência da agricultura intensiva e da pecuária extensiva. A primeira, desrespeitando toda e qualquer norma legal, tanto como o senso comum, tem desmatado enormes extensões de terra sem deixar uma arvore de pé e tem destruído as matas ciliares que protegiam a água. A erosão do solo em todas as suas modalidades está reduzindo a produtividade deste, o que se compensa com enormes quantidades de produtos químicos. O equilíbrio ecológico quebrado obriga a fazer aplicações massivas de substâncias tóxicas contra pragas e pestes, envenenando o solo e as águas e acabando com a vida aquática. E, como se não bastasse, os pecuaristas são os culpados pelo fogo que a cada ano arrasa o Cerrado. O que a agricultura mal conduzida não destrói, a mineração se encarrega. Há a procura por pedras preciosas, como na Chapada Diamantina, ou pedras vulgares, como em Pirenópolis. Outro fator destrutivo são as empresas energéticas que, cegados pela urgência suposta ou real, constroem barragens sem medir nem se preocupar com as conseqüências. Como aconteceu com o rio Tocantins, hoje convertido numa sucessão de lagos.
Ninguém está, nem pode estar, contra o desenvolvimento. Para evitar os impactos mencionados teria sido suficiente cumprir a legislação, acatar as regras que a sociedade decidiu. Ela prevê deixar uma porcentagem da mata, não eliminar a mata ciliar, explica como e quando usar o fogo; prevê as medidas para evitar a contaminação; diz como explorar os recursos minerais; quando e como pescar e, até como fazer uma avaliação de impacto ambiental honesta… Tudo, absolutamente tudo o que é necessário para se evitar impactos ambientais está escrito na legislação federal e estadual. É só cumprir! Ou é só fazer cumprir!
De outra parte, a única medida efetiva para se conservar um pouco do Cerrado, precisamente para estimular o tão ansiado turismo, é o estabelecimento e manejo de unidades de conservação. Algumas existem (federais ou estaduais) e são importantes (Chapada dos Veadeiros, Chapada Diamantina, Chapada dos Guimarães, Grande Sertão Veredas, Cantão, Emas, Jalapão), mas com poucas exceções elas carecem de tudo. Suas terras ainda não foram desapropriadas, carecem de pessoal e de equipamento, não dispõem de infra-estrutura de visitação. Muitas delas estão abandonadas. Pior, elas nem sequer cobrem 2 % da extensão do Cerrado, quando se sabe que o mínimo necessário é 10% e o ideal 30%. Diversas propostas para se criar corredores ecológicos e novas áreas protegidas se chocaram contra a indiferença de governos ou do poder dos coronéis da soja e seus representantes no poder legislativo.
O turismo também provoca problemas ambientais no cerrado. Esportes radicais, mal chamados de ecoturismo, desde o trekking e o rappel até o motocross e os rallies automotivos, cada vez mais populares, provocam muitos problemas ambientais graves. As escaladas e o rappel, por exemplo, danificam a nidificação e os poucos refúgios dos raros urubu rei e das andorinhas gigantes. Os esportes automotores, organizados ou espontâneos, deixam feridas duráveis nas paisagens mais belas do Jalapão e em todas as partes. O ruído e a poeira que fazem também é um distúrbio para a fauna e para os outros visitantes. O mesmo pode se dizer da pesca esportiva que, em geral é abusiva. Ou também dos resíduos deixados pelos campistas, que parecem acreditar que suas bolsas de lixo, às vezes devidamente penduradas nas árvores, serão coletadas por algum “gari do mato”. Até o turismo místico provoca impactos severos, neste caso na sociedade local, quando seitas religiosas praticam hábitos sexuais poligâmicos à vista da população. Outra vez, não se trata de proibir, apenas de se fazer cumprir algumas regras básicas que, neste caso, às vezes precisam ser escritas.
O Cerrado tem sem dúvida potencial para o turismo e ainda está em tempo de aproveitá-lo. Porém, não se pode pensar nisso sem levar em conta a urgência de resolver os problemas aqui descritos. O turismo não depende unicamente de infra-estrutura e de qualidade de serviços. Depende essencialmente de manter os atrativos ou produtos turísticos ,que são responsabilidade de outros setores da administração pública. Entre eles o desenvolvimento agropecuário, as atividades minerais e os estilos de administração municipal (planos diretores bem feitos e realmente aplicados). Pensar em turismo no Cerrado sem provocar, cooptar e obter essa colaboração é utopia. O Brasil tem progredido muito estabelecendo estratégias de turismo, ecoturismo e turismo sustentável e, inclusive, desenvolvido pautas para a certificação do turismo. Tudo isso é ótimo, mas será letra morta se os investimentos novos em turismo não conseguirem, pelo menos, uma melhor acolhida dos atores públicos. O melhor uso de recursos financeiros frescos para o turismo no Cerrado será, sem dúvida, construir a infra-estrutura de visitação de unidades de conservação chaves e apoiar as municipalidades a cuidar melhor de suas responsabilidades na área urbana e peri-urbana.
*Esse texto foi editado em 02/06/2024 para repaginação
As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.
Leia também
A Lei que mudou o futuro
Uma lei americana simples e direta, aprovada nos anos 80, levou bancos multilaterais a exigir relatórios de impactos ambientais e mudou as regras do jogo. →
Perguntas e respostas sobre conservação – Parte I
Criar unidades de conservação é apenas o primeiro passo. As áreas protegidas precisam de um bom manejo para beneficiar a população e assim ganhar o seu apoio. →
Perguntas e respostas sobre conservação – Parte II
O pior da exploração desordenada da Amazônia é o desperdício de recursos. Reservas extrativistas podem ajudar a preservar a floresta e desenvolver o país. →
Boa tarde,
Apenas hoje li o seu relato e concordo em grande parte. Uma visão muito clara e lúcida de diversos aspectos aqui.
Voce retornou a Chapada dos Veadeiros recentemente?
Gostaria de saber o seu ponto de vista atual em vista dos ultimos acontecimentos.
A internet tem suas maravilhas.
Agradeço.