O desmatamento da Amazônia, que apavora pela magnitude e pelas suas conseqüências, é apenas fruto da reincidência de duas propostas de desenvolvimento contraditórias. Uma delas é de enorme porte e tem retornos econômicos tangíveis e, por isso, é triunfadora inconteste; a outra é diminuta, embora mais humana e ambientalmente apropriada, e não tem viabilidade sob o padrão econômico mundial e nacional atual, sendo constante perdedora. A primeira é, obviamente, a que agora tem como seu melhor expoente a expansão do cultivo da soja. A segunda inclui todas as atividades onde se incorpora ou agrega o conceito “sustentável”.
Na competição entre esses dois estilos de desenvolvimento não existe a mínima dúvida de que o primeiro, ou seja, o caracterizado pela soja – amanhã será o algodão ou o milho ou qualquer outro produto que os chineses ou americanos comprem – e suas estradas, ferrovias, hidrovias, barragens e usinas hidrelétricas, sempre será vencedor absoluto. Esse estilo de desenvolvimento movimenta muitos bilhões de dólares a cada ano, dominando plenamente o cenário político, assim como as mentes dos ricos e pobres da Amazônia e do mundo. Em escala universal, nestes tempos, nenhum governo, nem os de esquerda, consegue fugir de seu domínio absoluto. Por isso é que as propostas de “desenvolvimento sustentável” da Amazônia, que estão claramente contra a corrente desenvolvimentista, não têm nenhuma oportunidade de se afirmar. Ainda que sempre muito promovidas e excessivamente louvadas, elas em geral são de curta duração e de muito pouco impacto real.
Claro que, por breves lapsos, aparece um ou outro personagem iluminado que obtém sucesso parcial, que eleva as esperanças de que o desenvolvimento sustentável seja algo mais do que uma ilusão. O expoente atual destes exemplos no Brasil é o Governador do Acre e seu “Governo da Floresta”, uma rara espécie de paladino do bem comum e construtor do futuro desejável, contrastando com o paladino da cobiça e da destruição, seu colega do Mato Grosso. Mas, falando sério, as probabilidades de sucesso do primeiro são mínimas, pois no jogo democrático, os bilhões de dólares da soja e de outras formas de crescimento econômico terminarão, mais cedo do que tarde, com o sonho acreano atual, como antes aconteceu com tantos outros sonhos de desenvolvimento prudente na Amazônia.
O fato inconteste é que não é possível nadar contra uma corrente tão poderosa como a que representa o desenvolvimentismo global. Desde os anos 1950, quando começou massivamente a sua destruição, a Amazônia como um todo já perdeu mais de 40% de suas florestas e, sem dúvida, na atualidade, nem uns 20% dela devem estar ainda relativamente intocados. O pior é que, com tanta terra aberta para a agricultura na Amazônia, nem 30% está sendo produzida e o que cada hectare produz é muito menos do que poderia, caso a terra fosse bem trabalhada.
Curiosamente, a culpa disto não é principalmente dos grandes cultivos industriais como o da soja no Brasil, mas sim dos milhões de pobres da América do Sul que a invadiram para fazer fortuna, derrubando as matas para vender a madeira, estabelecer pastagens e chácaras improdutivas ou garimpar ouro e pedras. Bilhões de metros cúbicos de valiosa madeira foram simplesmente queimados. Ou seja, desperdício puro e graves implicações ambientais para o futuro, como a erosão na Amazônia alta, que ameaça as terras baixas no Brasil, a diminuição já demonstrada da precipitação pluvial no leste amazônico, as enormes perdas de recursos genéticos, a redução da qualidade e da disponibilidade de água para os centros urbanos e o impacto no efeito estufa, dentre tantas outras conseqüências perniciosas.
Mas nada disso importa, pelo momento, aos desenvolvimentistas, sejam empresários ou governos, apenas movidos pelo lucro econômico ou político rápido. O amanhã é problema de outros. Eles, de qualquer modo, irão morar em outro país, onde o desenvolvimento quiçá será um pouco mais racional.
Ao falar de desmatamento deve se reconhecer, como foi feito no ponderado artigo “O desmatamento da Amazônia: A miopia do debate”, do Instituto de Pesquisas da Amazônia, (IPAM) que o desmatamento zero não faz sentido. Na Amazônia existem terras agricultáveis que o senso comum indica que devem ser aproveitadas. E o IPAM lembra as regras que deveriam ser aplicadas para estabelecer um equilíbrio adequado entre expansão agropecuária, florestas a serem manejadas por indígenas, por extrativistas e empresas e, também, as áreas a serem preservadas. Mas, o fato inconteste é que, durante o último meio século, nenhum governo, em nenhum dos países da Amazônia, nem em praticamente nenhum país tropical do mundo, têm respeitado ou feito respeitar regras tão lógicas como as citadas pelo IPAM.
O carro chefe da destruição são as estradas. A simples abertura de estradas, como se tem comprovado até a saciedade, é o eixo do desmatamento e, ainda, como se demonstrou mil vezes, nenhum governo da América do Sul conseguiu pôr ordem na ocupação da terra em suas margens. Mesmo sendo assim, não existe governo, nem sequer o “Governo da Floresta” do Acre, que resista à tentação e à pressão, tão popular como insensata, de fazer mais e mais estradas. É óbvio que sem estradas, tampouco haverá desenvolvimento sustentável e nisso está uma parte do miolo da armadilha que conecta ambos os estilos de desenvolvimento.
O fracasso histórico das opções de desenvolvimento sustentável na Amazônia tem a sua melhor prova com as cifras do desmatamento no Brasil e evidentemente, nos outros países amazônicos. Mas existem muitas outras provas, como as que se menciona a seguir.
Desde que alguém propôs o zoneamento ecológico-econômico, uma versão local do não muito bem sucedido ordenamento territorial francês, transcorreram quase 30 anos. Desde Rondônia, na época do Polonoroeste com financiamento do Banco Mundial, até suas mais recentes expressões no Amazonas ou no Pará, foram gastos não menos de 30 milhões de dólares para essa forma de zoneamento. Não obstante, nada, nem uma linha foi aplicada, menos ainda depois de uma mudança de governo. Intermináveis estudos, extensas e custosas consultas públicas, enormes mapas de cores muito bonitas e, até sua aprovação por lei estadual, sem mencionar as ilusões de muitos trabalhadores honestos, não impediram que, apenas aplicado, o zoneamento seja violado e esquecido. Nem o famoso e poderoso Coronel Teixeira, governador absoluto de Rondônia, conseguiu fazer cumprir o zoneamento em que ele passou a acreditar, para pôr ordem no seu Estado violentamente invadido por milhares de desesperados do sul e do nordeste.
Outro exemplo? As românticas reservas extrativistas, estabelecidas para preservar a floresta amazônica, o estilo de vida dos povoadores tradicionais e para melhorar suas economias em função do manejo sustentável das florestas estão hoje muito enfermas. Sofrem de um câncer maligno que derruba as matas para expandir, com velocidade crescente, a pecuária e a agricultura. O extrativismo agora já é mais um pretexto do que uma realidade, pois os “seringueiros” não só preferem criar gado e fazer agricultura, como também extrair madeira, ao invés de receber uma esmola do governo após percorrer cansativamente suas estradas para sangrar árvores esparsas, quase secas por um século de abuso. Mesmo assim, os governos federal e estadual estabelecem cada dia mais reservas desse tipo, sem dedicar um esforço proporcional a fazer cumprir a legislação que proíbe o que os “neo-extrativistas” estão fazendo.
O manejo florestal “sustentável” é outro bom exemplo para demonstrar a futilidade de se combater a extração ilegal de madeira e, mais ainda, a soja. Desde os anos 1950 e 1960, primeiramente a Organização Mundial para a Agricultura e a Alimentação (FAO) e logo muitas outras agências, têm investido centenas de milhões de dólares para fazer inventários florestais e planos de manejo florestal na Amazônia. Em todos os casos, sem exceção, a floresta foi explorada, desmatada e queimada muito antes de terem sido aplicados os tão conceituados, como caros, planos de manejo. Isso inclui até importantes Florestas Nacionais como Iparia e von Humboldt no Peru, Ticoporo na Venezuela ou Tapajós, no Brasil. O único país tropical onde o manejo da floresta nativa teve um sucesso moderado, com rotações de 70 anos ou mais – não de apenas 30 ou menos, como no Brasil – foi a Malásia, porque lá o sultão simplesmente degola os infratores. É muito duvidoso que a nova lei que cria o serviço florestal brasileiro tenha impacto na situação preponderante na Amazônia. Para que essa iniciativa funcione deve se eliminar, como condição prévia imprescindível, qualquer forma de competição por parte da exploração ilegal. Mas, o sentimentalismo social dos autores abre, na própria lei, toda classe de exceções para as populações “tradicionais” que, evidentemente, abastecerão aos bandidos de sempre.
Fala-se tanto da agrosilvicultura e da agricultura sustentável, que já ninguém as questiona. Mas, na verdade, são tipos de alternativa mais fácies de se falar do que fazer. E se assim não fosse, porque então desapareceu o café sombreado, que era uma prática agro-florestal reconhecidamente apropriada? Porque apenas se faz agricultura promíscua no nível de sobrevivência de pequenos agricultores ou de indígenas? Porque a agricultura orgânica apenas serve aos ricos e nem estes conseguem pagar seus preços elevados? Por acaso os que promovem opções de agrosilvicultura não sabem que, ainda que ecologicamente melhor que a agricultura convencional, ela implica severas alterações ambientais, em especial abrir a mata para obter luz?
O autor escreveu e ainda escreve e escreverá a favor de tudo o que aparentemente agora recusa nesta nota. Tem mais: num mundo mais perto do ideal, todas essas propostas sustentáveis têm valor e, algumas delas, têm seu lugar até nas circunstâncias atuais. Mas, isso de lutar contra uma corrente tão grande que, por um lado, tem uma lógica econômica lapidar e que, por outro, se nutre do caos social criado por ela mesma e também pelos intentos de dela fugir, é missão impossível. O desenvolvimento econômico globalizado potencializa a corrupção e de outra parte, os intentos de oferecer salvaguardas aos pobres, vítimas do desenvolvimento desenfreado, criando exceções ou aplicando a lei brandamente. Serve apenas aos ricos e poderosos e destrói qualquer possibilidade de controlar o desenvolvimento, fazendo-o humano e sustentável. As leis, se são para ser aplicadas, não podem fazer distinção entre os cidadãos. Grande parte da situação da Amazônia é, simplesmente, fruto da falta de castigo para os que violam as leis ou de leis que permitem a alguns o que proíbem a outros. Um dos muitos bons artigos de Sérgio Abranches (“Omissão de responsabilidade”), publicado no O Eco (19 de maio de 2005), precisamente com referência ao assunto agora tratado, descreve esta faceta dos problemas amazonenses e as múltiplas formas como as regras de jogo social são deixadas de lado.
Pelo já falado, dever-se-ia mudar radicalmente a estratégia para a Amazônia. Ante um inimigo que não pode ser derrotado, que está até nas mentes dos pobres, drogados por bem empacotadas promessas falsas, é melhor não insistir em promover “desenvolvimento sustentável” com os minguados recursos públicos disponíveis no “setor” ambiental. Este não pode, por enquanto, se opor com sucesso aos poderosos que representam os setores da agricultura, mineração ou energia. É melhor deixar que o tempo demonstre, o que fará de modo inexorável, que a corrente desenvolvimentista apenas contribui para um futuro cada vez pior. O tempo evidenciará que o “rei da soja” do Brasil, como há 30 anos já foi o “rei da anchova” no Peru, que liderou o extermínio do recurso pesqueiro do país, são na verdade inimigos da sociedade. Entretanto, na Amazônia, é melhor reunir as forças em poucos e muito claros objetivos que são possíveis de se realizar.
Que fazer, então? Anos atrás escrevi um artigo que agradou a poucos. Nele eu demonstrava, antes que outros o confirmassem estatisticamente, que, enquanto o manejo florestal e as florestas nacionais tinham fracassado, as áreas protegidas tinham sido muito bem sucedidas, até nos casos em que, como é freqüente, não tinham sido implantadas nem contavam com pessoal ou orçamento. Assim, quando quase todas as antigas florestas nacionais da Amazônia tinham sucumbido total ou parcialmente sob as motosserras e o fogo, os parques nacionais e outras áreas protegidas (de verdade), ainda estavam quase intactos. A grande mentira imperialista sobre os “parques de papel” – foi um sociólogo americano que a inventou – foi desmentida. Essa constatação é a melhor resposta estratégica para a realidade que se vive na Amazônia.
Por isso, não se deve continuar: (1) pulverizando esforços e a mínima capacidade do setor público ambiental por toda Amazônia, (2) pretendendo em vão “licenciar desmatamentos” ou “atividades em áreas de preservação permanente”, fazer “avaliações de impacto ambiental” ou “planos de manejo florestal sustentável” que só servem para alimentar a indústria da consultoria de quintal e das propinas, (3) fazendo alianças – chamam-se “pactos federativos”- com governantes do cacife do de Mato Grosso, (4) estabelecendo reservas extrativistas ou reservas de desenvolvimento sustentável que apenas promovem a transformação de populações tradicionais em pecuaristas ou extratores de madeira, (5) ou pior ainda, estabelecendo áreas de proteção ambiental (APAs) e reservas de biosfera que só servem para enganar o povo, pois nelas não se preserva absolutamente nada; (6) fomentando com dinheiro público opções “sustentáveis” sem potencial econômico ou as que no fundo nem são “ecológicas”, (7) sonhando com o zoneamento ecológico-econômico ou, (8) criando burocráticos serviços florestais novos (o Brasil já teve dois: o primeiro se chamava mesmo Serviço Florestal e o segundo foi o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal ou IBDF) em paralelo com instituições já existentes, como o Ibama.
Assim sendo, o esforço público ambiental na Amazônia deveria: (1) concentrar as forças -pessoal e orçamento – nas verdadeiras áreas protegidas (reservas biológicas, parques nacionais, estações ecológicas) e no seu entorno imediato (zonas de amortecimento); (2) estabelecer mais áreas protegidas (das verdadeiras) onde ainda é possível fazê-lo; (3) defender as reservas indígenas contra invasores (mais de 100 milhões de hectares) e em parte delas onde seja necessário, promover o uso sustentável de seus recursos e, em especial, a reserva voluntária de parte das suas terras para conservar a biodiversidade; (4) não estabelecer mais reservas extrativistas ou outras semelhantes, mas dar o apoio necessário para que as existentes sejam o que a lei manda; (5) procurar que as áreas de floresta que sobrevivam sob as modalidades citadas constituam corredores biológicos cientificamente determinados e; (6) promover com seriedade o ecoturismo, claramente em beneficio das populações locais, nas áreas protegidas e nas reservas indígenas que oferecem condições para o sucesso, demonstrando sua competitividade na economia e no desenvolvimento regional.
O anterior não é tudo o que precisa ser feito na Amazônia, mas é o principal sob o ponto de vista ambiental. A maior parte das velhas, embora renovadas, idéias expostas pelo IPAM no artigo antes citado devem ser função e prioridade do Ministério da Agricultura e não do de Meio Ambiente. Nenhuma batalha pelo desenvolvimento ideal da Amazônia será ganha se o Ministério da Agricultura, dentre outros, não assume seu rol, que não se limita a apoiar a expansão da soja e da grande agricultura de exportação. Mas, isso é sonhar acordado com o governo atual.
O cenário que pode se esperar é, dentro de uns 20 anos, o desmatamento total de 60 a 80% da Amazônia e sua conversão em terras degradadas e áreas sob uso agropecuário. Sobrarão, se a estratégia funcionar, apenas as áreas verdadeiramente protegidas, uma ou outra porção das reservas extrativistas e parte das terras indígenas, somando de 20 a 40% da floresta amazônica atual. Porém, se o setor público ambiental continuar atuando de forma dispersa e inconsistente, é seguro que nem isso sobrará das florestas amazônicas. O ambientalismo, que nem sabe o que significa priorizar, deve deixar de lado tanta filosofia e tanta sofisticação, reconhecer seu fracasso e re-orientar suas minguadas forças sobre o que é central e no que se pode fazer com razoáveis possibilidades de êxito. Isso, na Amazônia, equivale a proteger uma amostra do que ela foi para que, quando a humanidade sentir na própria carne que seu estilo de desenvolvimento economicista e globalizado é de prazo fixo, seja possível recriar, na base da reserva de recursos, um balanço entre crescimento econômico e florestas naturais ou reconstituídas. O resto, lamentavelmente, é só conversa para boi dormir.
Após cinco décadas reincidindo, sem nenhum sucesso, na promoção do “desenvolvimento racional”, ou seja, “desenvolvimento sustentável”, que é exatamente a mesma coisa, chegou o momento de se provar outra coisa na Amazônia. Não sendo possível nadar contra a corrente do desenvolvimento econômico desenfreado e de seus males correlatos, podemos nos aferrar a uma rocha e esperar que esta diminua para atuar. As áreas protegidas de fato e as reservas indígenas podem ser essas rochas. Tudo indica que, por enquanto, essa é a única alternativa disponível.
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