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Evolução humana

A julgar pelo barulho que certos homens produzem hoje, involuimos. Neo-macacos estão soltos pelas cidades comportando-se como degenerados exibicionistas.

14 de julho de 2005 · 19 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Após milênios de evolução humana, a música voltou ao mesmo ponto em que estava possivelmente há cerca de 50 mil anos, quando os primeiros homens americanos começaram a pintar as paredes das cavernas da Serra da Capivara, no Piauí. O “tam tam” monótono da madeira arremessada sobre madeira, que nossos antepassados usavam e que os chimpanzés do centro da África ainda usam, subsiste em versão eletrônica no porta malas ou nas caçambas dos veículos dos primitivos modernos. Se existe algum resquício musical acompanhando os golpes violentos, que estouram os tímpanos, ninguém sabe. O “tam tam” é tão poderoso que só isso pode ser percebido.

Lembro minha surpresa quando, há mais de uma década, preso no trânsito de Washington, senti que meu carro vibrava, ou melhor, literalmente, pulava. Ao olhar ao redor vi, com consternação de quem tem experiência sísmica, que todos os carros visíveis estavam afetados pelo mesmo fenômeno. Abaixando a janela pude detectar o que acontecia. Um enorme conversível, a poucos metros de distância, com um jovem de vestimenta estapafúrdia e melenas espiraladas no volante. Ele estava literalmente montado numa máquina de barulho. Como tantas outras coisas ruins, essa moda foi importada e agora é difícil que transcorra sequer um dia sem que se seja vítima das agressões desses proto-homens. A minha exasperação inclui a seus pais e outros parentes, por perpetrar o crime de financiar ou tolerar semelhante aberração. Isso porque é óbvio ululante que os que estão conduzindo essas máquinas já perderam a porção do cérebro requerida para ganhar o dinheiro que gastam.

Ainda há que compreender o que faz um ser humano do século XXI se comportar como um chimpanzé. Que classe de deficiências genéticas, alimentares e sociais ou que acidentes explicam um comportamento tão aberrante? Foi culpa da mãe que os deixou cair no chão quando bebês ou foi o pai que descarregava sua cólera sobre suas cabecinhas quando eram meninos? Se deu algum transtorno no DNA que permitiu aflorar comportamentos da humanidade primitiva já esquecidos? Ou se trata de uma mutação regressiva? O que pode sustentar um comportamento tão suicida e estúpido como esse que começa com a perda total da audição? Ainda mais, os chimpanzés que golpeiam paus contra as raízes tabulares das árvores quiçá são adoradores do barulho, embora eu prefira imaginar que são precursores da música.

Mas, na verdade, tudo indica que fazem isso para se comunicar ou alertar, como faziam as tribos africanas e amazônicas, antes de se comunicar por rádio ou pela internet. Dificilmente pode se atribuir essas funções aos novos selvagens. O curioso é que esse tipo de entes viventes, como os de eras passadas, ademais de migratório é gregário. O colmo da imbecilidade é visível até nas notícias, quando hordas desses neo-macacos juntam-se em praças ou parques para luzir o veículo mais barulhento, para os quais gastam fortunas que, insisto, não ganharam. Apertando as massas cerebrais de centenas de participantes presentes nesses eventos dificilmente se juntaria inteligência suficiente para encher o cérebro de um bugio – macacos bem conhecidos por serem barulhentos, mas definitivamente mais musicais. Demonstrando uma vez mais que as fêmeas humanas são muito mais equilibradas que os machos, é raro que alguma delas invista seu tempo e seu dinheiro em semelhante absurdo. Elas gastam quase tudo o que têm para ficar mais atraentes. Pena que algumas delas o façam apenas para ficar com esses mesmos machos barulhentos… Prefiro imaginar que é porque os pais desses energúmenos têm muita grana.

O que não surpreende é a inércia governamental. Pelo visto a única ocupação do Estado nas suas versões executiva e legislativa é carregar malas – sem esquecer as novíssimas cuecas portadoras de valores – de cá pra lá e de lá pra cá. Entretanto, outros fazem acusações incendiárias que o outro poder do Estado, o Judiciário, se encarregará de engavetar. Para o bem-estar da sociedade esse tipo de comportamento absolutamente anti-social deveria ser combatido com a mesma violência que eles exercem sobre os demais. E não é difícil de fazê-lo. Basta seguir o barulho.

Esses diminuídos mentais violam todas as leis e regulamentos existentes referentes a ruído e a segurança no trânsito. Basta proibir a instalação desses equipamentos infernais nos automóveis e de castigar aos infratores com as mesmas multas e da mesma forma que se aplicam nos controles de velocidade e o uso do cinto de segurança. Mas nem dá para falar sério… melhor continuar rindo.

Falando disso, tampouco dá para compreender o fascínio exercido sobre algumas mulheres por malandros que não ocultam ser herdeiros diretos dos neanderthais. A cada dia são mais freqüentes os casos de mulheres que dizem ser turistas russas, espanholas, alemãs, inglesas e de outras variedades e que, perdendo tanto a prudência como o pudor, acompanham melenudos nojentos, grosseiramente disfarçados de guias, até os confins da civilização local, onde são submetidas aos mesmos rituais sexuais que a tradição diz que eram utilizados na pré-história. Só que o uso adequado de paus e pedras para subjugar e excitar a fêmea parece ter-se perdido no tempo, e por isso as modernas reprodutoras terminam sendo enterradas meio vivas ou afundadas com pedras no rio ou até na prometida lagoa azul. O que pode atrair um ser humano normal a tais aventuras? Esses malandros nem procuram dissimular o que eles são. Ao contrário, como muitas bestas, ostentam sua maldade primitiva. Então, por que o que é evidentemente risco máximo para a maioria resulta sedutor para algumas, inclusive mulheres educadas e muito vividas? A única explicação, como no caso do barulho eletrônico, parece ser uma recessão genética que implica um retorno às origens ancestrais, defeito que compartilham com seus assassinos.

Tem mais. O que explica as pichações nas paredes recém pintadas, nos sinais de trânsito e outros avisos de interesse público? Os sociólogos inventaram um monte de explicações complexas para escusar esse estranho comportamento. Não é fruto da pobreza ou da ignorância, pois em muitos casos são evidentemente feitos de jovens ricos, sem esquecer que esse é um hobby relativamente caro. Não é protesto, nem sequer política (o que eventualmente seria aceitável), pois a maior parte das pichações nada tem a ver com isso.
Esse comportamento tem muito de maldade pura e simples, uma forma de buscar emoções ilegais, com risco baixo… uma iniciação à delinqüência. Mas, nenhuma dessas teorias é plenamente satisfatória. Algumas vezes as pichações viram artes, embora isso seja mais fruto de uma estratégia de controle do dano, do que pichação genuína. Um jovem que já tem a tinta pode pintar em qualquer lugar: num pedaço de madeira ou de cartão, ou num papel, ou numa lata. Até pode ficar tentado a pintar numa parede branca que se parece a uma tela virgem. Mas, não precisa dispersar tinta à toa nos sinais públicos. Por isso, a explicação mais plausível é que, outra vez, se trate de um comportamento ancestral descontrolado ou degenerado que, vagamente, implica expressão artística, mas que essencialmente é exibicionismo.

Em qualquer caso, não é nada que mereça a menor consideração ou comiseração da sociedade. O que é evidente é que os antigos habitantes, esses que chegaram faz mais de 50 mil anos à Serra da Capivara e a outros lugares do Brasil, e que não possuíam papel, telas ou painéis de madeira para desenvolver sua arte, devem se revolver nas suas tumbas olhando os tristes garranchos, o mal gasto de material e, em síntese, o absurdo comportamento de seus imitadores de hoje.

Fica claro, uma vez mais, que a evolução humana é muito desigual. A maior parte evolui em forma proporcional ao tempo transcorrido. Outra parte, bem menor, se antecipa. E a terceira parte, evolui muito pouco ou degenera-se, formando esse grupo do qual foram mencionadas algumas características. Reproduz-se uma curva estatística normal. A questão é: o que fazer com essa minoria sub-evoluida?

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