Fazendo tempo, esperando meu vôo, bebia uma caipirinha razoável e observava distraidamente, como todo mundo faz num aeroporto, os vizinhos de outra mesa e os passantes. Muito perto estava um jovem sentado com seu laptop aberto. Não me interessei muito (não costumo olhar muito para esse gênero) até que na tela da sua máquina apareceu um mapa em belas cores. E eu sabia que conhecia esse mapa. Com efeito, em fração de segundos reconheci o estado de Rondônia, gordinho embora com seu incômodo apêndice incrustado no vizinho Acre, perversão que já provocou “guerras” entre ambos, até com mobilização de suas galhardas polícias militares. Se eu necessitava de confirmação, a tela revelou um grande título que dizia “Des. RO” o que interpretei como Desenvolvimento de Rondônia.
Então olhei melhor para o jovem. Pulcro terno tropical cor creme claro, desses sintéticos indeformáveis, camisa social e gravata. Era branco, alto e fornido, cabelo cortado raso, muito provavelmente um americano desses tantos que vão à Amazônia com propostas sisudas para conciliar seu desenvolvimento com a proteção da natureza. Pela fachada, ele iria falar pelo menos com o governador ou quiçá, estava voltando a Porto Velho após alguma reunião importante com autoridades brasilienses sobre o desenvolvimento do estado.
Essa visão me deu saudades de outra época, há mais de 20 anos, quando eliminando o terno e o laptop, eu esperava o início dos intermináveis “vôos de leiteiro” a Porto Velho (Brasília-Goiânia-Cuiabá-Rio Branco ou Manaus-Porto Velho), no mesmo aeroporto. Carregava, também, a esperança que pudesse contribuir ao desenvolvimento racional (naqueles dias não tinha sido inventado o termo “sustentável”) de Rondônia. Eram os tempos do Polonoroeste, o ambicioso programa de desenvolvimento do noroeste brasileiro, financiado pelo Banco Mundial. As minhas saudades estavam a toda, mais ainda porque o cantor do bar entoou, em perfeito castelhano, “Reloj detén tu camino….” e logo “El día que me quieras….”, dentre outras relíquias musicais, muito anteriores às minhas experiências rondonienses.
E pensei “o que este homem está propondo agora é, seguramente, a mesma coisa que nós propusemos no começo dos anos 1980s”, quando Rondônia era só selva virgem e índios, atravessado por uma trilha carroçável, a futura BR-364 e uns poucos assentamentos de ribeirinhos. Porto Velho apenas tinha um hotel relativamente decente e podiam se comer costelas de tambaqui sem chumbo de um tamanho que faria Obelix, o amigo de Asterix e grande comedor de costelas de javali, morrer de inveja. Naqueles anos, para poder controlar a incipiente, embora já desmedida invasão de nordestinos e de sulistas miseráveis atraídos pela oferta de terras ao longo da estrada em construção, se planejou os primeiros zoneamentos econômico-ecológicos da história da Amazônia.
Aos mapas de uso atual e potencial dos solos, dentre muitos outros, se somaram propostas que equilibravam as áreas para assentamentos humanos, as reservas minerais, as terras indígenas, as terras de uso florestal e as unidades de conservação. Como era óbvio que a gente devia ser consultada, já naquela época, foram feitas consultas públicas visando a obter e, de fato, obtendo consensos sobre as alternativas econômicas para cada zona demarcada. O zoneamento até foi aprovado por lei da assembléia estadual, incluindo até sanções para os infratores. O próprio Teixeira, o “Teixeirão”, famoso governador do território e logo do estado, finalmente entendeu a necessidade de pôr freio à invasão do estado, e até publicou nos meios da época um aviso alertando aos seus concidadãos que Rondônia ainda não estava pronto para receber tão tremendo fluxo migratório.
Mesmos planos
Hoje se sabe que nada, absolutamente nada do zoneamento inicial, nem das suas versões subseqüentes foi respeitado. A própria assembléia que tinha aprovado o zoneamento votava, quase em paralelo, medidas diametralmente contrárias a este e, cada governador, por sua vez, também decidiu a construção de infra-estruturas que faziam tábua rasa das previsões do zoneamento. E os cidadãos ricos ou pobres, como sempre, fizeram o que bem queriam, sem que o poder público interferisse. O que é mais inacreditável é que, apesar da evidência de que o zoneamento de Rondônia e de qualquer outro lugar, por exemplo, o de Mato Grosso, têm sido custosos fracassos após fracassos, ainda tenha gente por ali propondo continuar fazendo-os, especialmente no Ministério do Meio Ambiente.
O zoneamento econômico-ecológico é, na verdade, uma versão tropical do ordenamento territorial europeu que, diga-se de passagem, nem lá funcionou bem. Mas, como a evidência revelou, era utopia demais pretender que isso fosse aplicável nas regiões menos desenvolvidas de um país em vias de desenvolvimento, onde a anarquia é quase total. O único que funcionou e, dadas as circunstâncias bastante bem, foi o zoneamento de fato estabelecido pelo Ibama e seus antecessores (unidades de conservação), pela Funai (terras indígenas) e pelo estado (unidades de conservação estaduais). O resto das zonas virou exatamente o que seu nome significa, ou seja, “uma zona”.
Minhas saudosas lembranças terminaram mal. Minha segunda caipirinha me fez ruminar o absurdo de uma sociedade que nunca aprende do passado. Cada geração redescobre o que a anterior sabe de sobejo que não serve, assume que o instrumento foi apenas mal aplicado e após pintar o ferro velho o lança outra vez como novidade salvadora. Pensei que agora estou começando a entender e justificar a decepção e amargura de meus mestres mais velhos quando filosofam sobre o destino da humanidade. Na próxima oportunidade que espere alguém no aeroporto com uma caipirinha na mão só observarei as mulheres bonitas.
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