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Muito jacaré?

Muitos afirmam que o número de jacarés na Amazônia é “excessivo”. As pessoas se esquecem da seca que afetou a região e de como ela alterou a vida dos bichos.

19 de dezembro de 2005 · 19 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Três vezes na mesma semana escutei na televisão que “tem muito jacaré” na Amazônia. As notas faziam referência à Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá (Amazonas) e à Amazônia como um todo. A mensagem era, mais ou menos, que apesar da seca extraordinária assistida na Amazônia, algumas espécies de animais perigosos, como o jacaré, têm populações tão elevadas que deveriam ser exploradas de imediato, sob risco de se acabar com os pobres humanos sobreviventes da seca.

É bom lembrar que ao falar de jacarés apenas se está indicando um nome vulgar que só na América do Sul inclui sete espécies correspondentes a quatro gêneros e a duas famílias. De fato, existem nesta região jacarés que quando adultos alcançam apenas 1,5 metro e outros, como o jacaré-açu, que medem 6 metros ou mais, especialmente no caso do jacaré do Orenoco. No Brasil, provavelmente existem as sete espécies. O jacaré mais comum na Amazônia nem sequer é primo do que abunda no Pantanal, já que pertence a um gênero diferente. Ainda que todos tenham biologia semelhante, cada um tem suas particularidades vitais que devem ser consideradas antes de se planejar sua exploração. De outra parte, alguns são abundantes, mas outros são já muito raros.

Abundância relativa

O que primeiro chamou a minha atenção sobre as reportagens foi procurar compreender por que existiria uma “sobre população” de jacarés ou coisa parecida, imediatamente depois de um fenômeno tão radical como a seca amazônica deste ano. Os jacarés vivem na água e se alimentam quase exclusivamente de animais aquáticos. É verdade que, aparentemente, algumas espécies de jacarés poderiam ter capacidade de resistir às secas mediante um mecanismo de dormência, afundando na lama de lagos e lagoas ressecadas. Mas, daí a serem agora superabundantes tem muita distância. O que eventualmente poderia estar acontecendo é que os que resistiram à seca e à fome estão “mortos de fome” e, portanto, muito ativos na procura de peixes e comida, agora bem mais raros. A maior atividade e agressividade os faz parecer mais abundantes quando, na verdade, provavelmente são muito menos numerosos que antes da seca. Também é provável que a seca tenha expulsado muitos indivíduos de escondidos lagos e lagoas interiores e os levado para os corpos de água principais, onde estão agora concentrados.

Em segundo lugar, me perguntei com que fundamento os apresentadores e comentaristas da televisão tinham concluído, taxativamente, que tinha “jacaré demais”. Até uma sempre bem informada e muito respeitada economista deu uma de ecóloga e confirmou que, assim como na Amazônia, ela tinha visto que no Pantanal havia um excesso de jacarés. Na verdade, na natureza não se pode aplicar o conceito de “excesso”. Se alguma espécie tem populações muito grandes isso responde a uma razão e forma parte de um equilíbrio sofisticado, sempre impecavelmente lógico e que dura o tempo que for preciso.

Até os anos 1940 quem navegava nos rios da Amazônia durante a seca podia observar, literalmente, milhões de jacarés tomando sol nas praias, um ao lado de outro, como hoje estão toras de mogno e outras madeiras preciosas nas balsas que as levam até as serrarias. Os aborrecidos passageiros, para se distrair, exercitavam tiro ao alvo sobre os jacarés com suas carabinas Winchester, desfrutando dos pulos que dava o animal ferido. Logo veio a exploração comercial desses animais, que os deixou à beira da extinção na década de 80. Naquela época saíam a cada ano centenas de milhares de couros de jacaré da Amazônia, outros tantos do Pantanal, e muitos outros indivíduos eram mortos e desperdiçados. Neste ponto, outra vez, apenas se deseja lembrar que as populações de algumas espécies de jacarés sempre foram naturalmente muito abundantes e que, contrariamente ao dizer popular, elas não deprimem a população de peixes de consumo humano. A proibição da caça comercial desses animais possibilitou certa recuperação de suas populações naturais tanto na Amazônia como no Pantanal, embora esteja ainda muito longe do que era ou do que deveria ou poderia ser.

Controle sempre difícil

Não tenho nada contra a caça de jacarés com fins comerciais. Sua caça esportiva só se justificaria se fosse apenas com faca, pois o bichão, ainda que possa ser grande e feio, é fácil de matar a tiros. Tampouco é difícil dele se aproximar na noite, com uma lanterna, e descarregar um machado na sua cabeça ou, quando seu tamanho permite, simplesmente passar um laço no seu pescoço. O sempiterno problema das autorizações de caça comercial de animais selvagens é que, sendo uma atividade quase impossível de controlar, faz com que a proporção de animais ilegalmente mortos seja progressivamente maior e que isso estimule a caça também nos locais proibidos, como nas áreas protegidas.

As outras opções, as dos chamados zôos-criadouros ou manejo intensivo e semi-intensivo, passam, lamentavelmente, pelos mesmos problemas. Por exemplo, é bem conhecido que os criadouros de jacarés no Pantanal se abastecem de ovos de modos inapropriados ou, às vezes, completamente ilegais. Os catadores devem cumprir certas regras como não tirar todos os ovos de um mesmo ninho e deixar o ninho no mesmo estado em que o encontraram, para evitar a ação de depredadores. Mas, essa atividade realizada por trabalhadores mal remunerados ou remunerados por unidade, em locais isolados, é anárquica. Para simplificar a tarefa extraem todos os ovos dos ninhos que encontram, não perdem tempo em fechar os que abrem e, ainda por cima, maltratam as mães. De outra parte, algumas empresas “completam” as quotas de couros produzidos em cativeiro com os de animais extraídos diretamente da natureza. No final, ainda que bem menos grave que na época da caça comercial, as populações de jacaré sofrem um enorme impacto.

Dito de outro modo, não é impossível fazer manejo de jacarés e, se bem feito, isso seria uma garantia para sua sobrevivência como espécie, além de beneficiar as populações locais. É provável que esse seja o caso tão louvado de Mamirauá, onde a exploração de jacaré e de outras espécies é feita por ribeirinhos, os quais têm sido objetos de mais de uma década de educação ambiental. Assim, seguramente já compreenderam que seu futuro depende de seu respeito por algumas regras para manter as populações. Mas, daí a abrir a caça comercial de jacarés por todo canto da Amazônia ou do Pantanal, tem enorme distância. A ignorância de uns pode fazer o jogo dos outros, ou seja, dos que sempre destruíram os bens comuns para benéfico próprio.

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