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Perigoso estertor do petróleo

Na sua agonia lenta, o petróleo pode exterminar junto com ele os últimos vestígios de um mundo natural que vale muito mais que o ouro negro e seus derivados.

10 de fevereiro de 2006 · 19 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Que o petróleo e outros hidrocarbonetos, na forma como são usados, estão chegando a seu fim, todo mundo sabe. Até o Bush sabe. Ele,com grande esforço intelectual, produz pelo menos uma frase sensata quando diz que “os americanos são viciados em petróleo”. Ao mesmo tempo em que a humanidade se lança a sua procura cada vez mais difícil, já são evidentes os sinais de que, no futuro, a energia que a nossa espécie gasta mal deverá prover de outras fontes. Mas a morte do petróleo e do gás acumulados nas entranhas da Terra não será rápida. Muitas décadas de sofrimento ainda esperam os seres vivos devido a essa agonia, que alimenta as guerras, sustenta as ditaduras e destrói a natureza. Os tempos do petróleo, se a humanidade sobreviver, serão lembrados como o foram os do carvão mineral, com suas seqüelas de lodosas e fedorentas trincheiras em campos de batalha europeus e de operários escravos tisnados de negro e com seus pulmões destruídos.

A arrogância do dinheiro e das transnacionais petrolíferas em contubérnio com os governos, sempre passaram bem acima de qualquer regra válida para outras atividades humanas. Assim invadiram, com poucas restrições, qualquer lugar do planeta, qualquer propriedade, atropelando qualquer argumento ou direito. O petróleo, durante um século, financiou guerras e genocídios. Não é, pois, possível esperar agora, próximo a seu fim e com seu valor mais alto do que nunca, que os que medram dele e não têm nada a perder se comportem de modo razoável. Assim, na América Latina, os estertores do uso massivo de hidrocarbonetos ameaçam brutalizar o pouco que eles mesmos não conseguiram destruir completamente em oportunidades prévias. Refiro-me às florestas, savanas, desertos, pântanos ou fundos marinhos e de qualquer outro lugar onde fique um vestígio dessa energia acumulada.

O último assalto

Os exploradores de petróleo estão iniciando um novo assalto à natureza. Um exame cuidadoso de cada resquício do planeta, como quem busca os sobreviventes de um massacre para não deixar testemunhas. Isso os leva às selvas tropicais da Amazônia, aos pampas da Argentina, ao Chaco do Paraguai e da Bolívia, ao Chocó colombiano, aos desertos do Peru e ao Oceano Atlântico. Nada, nem as terras protegidas como unidades de conservação nem os territórios indígenas é freio para a desesperação ambiciosa dos abutres do ouro negro.

No Peru, a sociedade civil está denunciando o fato de que reservas comunais indígenas (Yanesha, Ashaninka, Machiguenga, Sira e Amarakaeri), uma reserva nacional (Tambopata) e um bosque de proteção (San Matias-San Carlos), todas integrantes do sistema nacional de áreas protegidas, foram entregues pela entidade reguladora Perupetro para prospecção e exploração petrolífera. Sequer o Inrena, a entidade responsável pelas unidades de conservação, foi consultada. Os denunciantes sabem que existem outras áreas protegidas sendo negociadas entre as transnacionais e a Perupetro e reclamam mais ação do Inrena e maior transparência. Deve-se recordar que nos anos 1960s e 1970s o Peru suportou prospecção petrolífera até em área já reservada que logo seria seu Parque Nacional mais famoso, o Manú.

A exploração petrolífera já impacta seriamente numerosas regiões da Amazônia peruana, assim como indiretamente a diversas unidades de conservação lá localizadas. Como no caso do departamento de Loreto, ao norte do rio Amazonas, na Amazônia Central (jazidas de gás do Aguaytia) e, especialmente, na região sul, na bacia do rio Camisea que tem muito gás, ao norte do Parque Nacional do Manú. Em todos os casos, ainda que tenham sido tomados alguns cuidados ambientais e sociais, os impactos são muito severos. De fato, as comunidades indígenas e as áreas protegidas da região não dispõem do pessoal técnico, equipamentos e orçamento necessários para o monitoramento e controle. No caso do Camisea, por imposição do Banco Interamericano de Desenvolvimento, se desenvolveu um programa mínimo de proteção socioambiental. Não obstante, nestes dias ocorreu um severo derramamento em um duto que está contaminando os rios da área e que, oportunamente denunciado pelos monitores indígenas, não gerou nenhuma medida medianamente séria dos responsáveis. Estes só remediam os danos quando estoura um escândalo na imprensa… e a imprensa está cansada desses escândalos.

O caso peruano é comum a muitos outros países. Um dos mais bem conhecidos é o do Parque Nacional de Yasuni, na Amazônia do Equador, explorado por empresas entre as quais a Petrobrás. Essa região ainda sofre dos desastres ocasionados pela Texaco que foi processada por danos avaliados em milhões de dólares por ter despejado mais de 70 bilhões de litros de água de prospecção em córregos da floresta, resultando em danos incalculáveis ao meio ambiente e à saúde das populações locais. Um inventário dos impactos socioambientais dessa operação avaliou os problemas de saúde de 80 comunidades, maiormente de índios Huaorani que habitam o entorno de bases de exploração de petróleo nas províncias de Sucumbíos e Orellana, onde se situa Yasuní. Segundo esse estudo, no ano de 2000, a taxa de mortalidade por câncer dessas populações era da ordem de 32%, o triplo da média nacional e quatro a cinco vezes superiores à incidência em outros locais das províncias onde se fez a pesquisa. A proximidade das áreas de exploração e o tempo de permanência demonstraram ser determinantes sobre a incidência de câncer. Em vinte anos de exploração de petróleo os casos duplicaram e 57% desses apareceram em famílias que viviam a menos de 50 metros de poços e estações.

Nos exemplos do Peru e do Equador o maior impacto se dá sobre populações indígenas, quer seja destruindo seus recursos naturais, ou alterando bruscamente seus estilos de vida tradicionais e, como no caso de Yasuni, provocando problemas de saúde excepcionais. A biodiversidade também é, obviamente, muito prejudicada. De uma parte, sofre de distúrbios por caça, pesca e desmatamentos localizados, contaminação e, se são feitas estradas de serviço, sofre por invasão de pessoal de outras regiões em procura de terra, madeira e minérios. As compensações ambientais e sociais, se são acatadas, jamais cobrem os danos reais.

O pior é que tem se desenvolvido e propagado a mentirosa teoria de que a exploração do petróleo pode conviver com o entorno natural. Diz-se que existem técnicas de prospecção que não ocasionam danos significativos e que a exploração é essencialmente automática e supervisada com helicópteros, sem necessidade de estradas. Se isso é verdade, falta demonstrá-lo. Nas prospecções e explorações visitadas pelo autor, os impactos eram evidentes em todas as partes. Claro que existem operações melhores que outras, como no caso do transporte de gás de Bolívia na sua parte brasileira, o que não é o caso na porção boliviana do gasoduto. Mas, melhor que outras não significa inócuas. A maior parte prejudica e muito, sejam os rastros indeléveis da prospecção no Chaco do Paraguai ou os riscos ambientais que o processamento do gás do Camisea pode provocar até na Reserva Nacional de Paracas, no Oceano Pacífico, ao outro lado dos Andes.

Os leitores, neste ponto, teriam direito a lembrar que sempre foi dito que o petróleo e seus derivados são essenciais para o desenvolvimento econômico e para o bem estar da humanidade e que, sua exploração, como qualquer outra, exige um trade off. Se pensarem isso, têm razão. Só, que neste caso o trade off não é outra coisa que a destruição da natureza até nos pouquíssimos lugares que a humanidade escolheu, com muito cuidado, para preservar amostras da vida no planeta, seja esta natural ou a dos indígenas amazônicos. O petróleo e a humanidade já avassalaram todo o resto, transformado em agricultura, infra-estruturas, cidades, indústrias, veículos motorizados, etc. O petróleo está na origem do efeito estufa e de muitos dos males que afetam a humanidade. Será que antes de acabar, por ele se sacrificará também até os últimos redutos naturais?

A resposta é que o petróleo e os hidrocarbonetos não justificam dano tão descomunal. Ao invés disso é melhor tirar do chapéu dos magos financeiros o que os cientistas já sabem faz tempo: Existem alternativas para a primitiva queima ineficiente de petróleo e hidrocarbonetos. Deixem o saldo desse recurso para outros usos mais nobres e importantes. Comecem a produzir os veículos movimentados a base de hidrogênio, de conversão de energia solar ou nuclear e tantas outras opções que se sabe existem e que, de qualquer modo, as transnacionais venderão no futuro, para seguir fazendo dinheiro. Diga-se de passagem, que a trégua não implica em começar a usar combustíveis “renováveis” como o álcool, na base de cana de açúcar ou de madeira, nem tampouco o chamado biodiesel. Esses são paliativos e o fato de “serem renováveis” é apenas uma ilusão quando se avaliam seus verdadeiros impactos ambientais. Melhor é reorganizar o conceito do transporte e fazer dele um verdadeiro serviço público no lugar do dispendioso, egoísta e exibicionista transporte individual destes dias.

Dêem uma trégua à natureza, deixem-na respirar. Ela os retribuirá muito bem por isso.

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